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"Mapas e História", de Jeremy Black, traça o desenvolvimento e a adulteração da cartografia
e mostra como o realismo geográfico tomou o lugar das alegorias e do simbolismo religioso
Guerra dos mundos
DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA
O
"Theatrum Orbis Terrarum", o primeiro atlas histórico, publicado em 1570,
teve 40 edições. O autor,
Abraham Ortélio, conseguiu comprar uma casa nova em Antuérpia
com os direitos obtidos pelas vendas. Mas seu feito não é a regra: os
atlas históricos tornaram-se populares apenas no século 19, juntamente
com o desenvolvimento da indústria
editorial, a educação em massa e o
nacionalismo.
"Mapas e História - Construindo
Imagens do Passado", do historiador Jeremy Black, é uma história dos
atlas históricos. Como Black é britânico, a narrativa se organiza implacavelmente ao redor dos fatos. Mas a
crítica está em todos os lugares.
A cartografia histórica só pôde se
estabelecer sobre um terreno filosófico esboçado no século 17, com uma
mudança na noção do tempo que
gerou a periodização da história e
uma paralela alteração na noção de
visão, pela qual a descrição do mundo e o "realismo" geográfico tomaram o lugar das alegorias e do simbolismo religioso.
A França ocupa lugar de destaque
no desenvolvimento da cartografia
histórica. Os mapas de Nicolas Sanson, da década de 1640, já se preocupavam em identificar a Gália romana, fornecendo instrumentos intelectuais para justificar o expansionismo dos Bourbon, e outros autores delimitavam a França sob o domínio de Clóvis, inaugurando o mito contemporâneo da "França de
mil anos", que é compartilhado por
De Gaulle, Miterrand e Le Pen.
Função estratégica
Cronos, o tempo, é o senhor da legitimidade. O Estado-nação ergueu
a ponte que reuniu a história à geografia e as engajou na missão patriótica de fabricação das histórias nacionais.
Nos mapas do século 17, as fronteiras "internas", que delimitavam espaços de poder e tributação tradicionais, não se distinguiam facilmente
das fronteiras "internacionais". Tudo mudou depois da Revolução
Francesa, que transferiu a soberania
para o povo e entalhou, definitivamente, a nação e o território nacional na consciência política européia.
Mapas históricos desempenham,
tanto quanto os arsenais militares,
funções estratégicas e diplomáticas.
O Ministério do Exterior francês
criou sua seção geográfica em 1772 e,
logo depois, adquiriu a coleção de
cerca de 10 mil mapas do geógrafo
d'Anville.
A cartografia histórica tornava-se
um poderoso traço de união entre os
eruditos, as chancelarias e os Exércitos. Black não conta, mas, no Brasil,
o barão do Rio Branco derrotou as
pretensões territoriais argentinas e
francesas lançando mão de um conhecimento superior derivado da
compilação e da interpretação de
documentos cartográficos coloniais.
As Províncias Unidas alcançaram
a unidade e a soberania com a Guerra dos 80 Anos (1568-1648). Mesmo
assim, entre 1697 e 1701, Menso Alting publicou um atlas histórico com
14 mapas representando as Províncias Unidas desde o século 1º a.C. até
o século 13.
O anacronismo, um expediente
clássico da história da "formação"
das nações, é um componente vital
de grande parte dos atlas históricos.
O segundo volume do "Atlas d'Histoire et de Géographie", de Drioux e
Leroy, publicado em 1867 e adaptado às normas da educação pública
francesa, celebrava a evolução da
"França eterna", em estágios sucessivos de glória crescente, sob Carlos
Magno, os Bourbon, Napoleão e Napoleão 3º.
Formação da pátria
Patriotismo, expansionismo, imperialismo. Atlas poloneses do início
do século 19 enfocavam a partilha do
país entre Rússia, Prússia e Áustria,
configurando uma plataforma geopolítica para a restauração da unidade. Atlas escolares alemães do final
daquele século conferiam às guerras
de Bismarck o sentido de cumprimento de um destino. Enquanto isso, a cartografia histórica inglesa se
concentrava na extensão do império
e traçava paralelos entre a "Pax Britannica" e a "Pax Romana".
O paradigma da Roma clássica
aparece em outros lugares, até mesmo no "Atlas de Portugal", de Aristides Girão, publicado em 1959, sob o
regime de Salazar.
O século 20 ocupa a metade da
obra na qual a narrativa perde um
pouco da força e do foco, como reflexo das dificuldades de abordagem
de um fenômeno que se torna excessivamente multifacetário, abrangendo atlas nazistas, comunistas, liberais nacionalistas, terceiro-mundistas e étnicos.
Mas a faca analítica de Jeremy
Black continua afiada e oferece passagens como essa: "Os conceitos
modernos de espaço são essencialmente aqueles difundidos por potências ocidentais e delimitados por
seus topógrafos no século 19. Os povos não-ocidentais que buscam entender sua história têm de enfrentar
o problema de descrever cartograficamente um período pré-ocidental
quando as noções indígenas de espaço eram diferentes e são, portanto,
difíceis de descrever em termos da
linguagem territorial cartográfica
moderna de linhas nítidas".
Papel cinza
O alemão Friedrich Benicken lançou, na década de 1820, atlas históricos que usavam novas tecnologias
gráficas. O projeto ambicioso foi um
fracasso de vendas, em parte devido
ao uso de papel cinza.
A edição brasileira de "Mapas e
História" incorre no mesmo erro: a
opção por papel reciclado afeta a legibilidade dos mapas, que são em
preto-e-branco. Na edição original,
da Yale University Press, os mapas
são impecáveis, e alguns estão impressos em cores. Mais: a tradução,
em algumas passagens, cria a falsa
impressão de que Black escreve mal.
Nada disso deveria afastar o leitor
interessado na produção das imagens que sustentam a linguagem política contemporânea.
Demétrio Magnoli é doutor em geografia
humana pela USP.
Mapas e História
428 págs., R$ 62
de Jeremy Black. Trad. de Cleide Rapucci.
Edusc (r. Irmã Arminda, 10-50, CEP 17011-160, Bauru, SP, tel. 0/xx/14/ 3235-7219).
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