São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

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"Mapas e História", de Jeremy Black, traça o desenvolvimento e a adulteração da cartografia e mostra como o realismo geográfico tomou o lugar das alegorias e do simbolismo religioso

Guerra dos mundos

DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA

O "Theatrum Orbis Terrarum", o primeiro atlas histórico, publicado em 1570, teve 40 edições. O autor, Abraham Ortélio, conseguiu comprar uma casa nova em Antuérpia com os direitos obtidos pelas vendas. Mas seu feito não é a regra: os atlas históricos tornaram-se populares apenas no século 19, juntamente com o desenvolvimento da indústria editorial, a educação em massa e o nacionalismo.
"Mapas e História - Construindo Imagens do Passado", do historiador Jeremy Black, é uma história dos atlas históricos. Como Black é britânico, a narrativa se organiza implacavelmente ao redor dos fatos. Mas a crítica está em todos os lugares.
A cartografia histórica só pôde se estabelecer sobre um terreno filosófico esboçado no século 17, com uma mudança na noção do tempo que gerou a periodização da história e uma paralela alteração na noção de visão, pela qual a descrição do mundo e o "realismo" geográfico tomaram o lugar das alegorias e do simbolismo religioso.
A França ocupa lugar de destaque no desenvolvimento da cartografia histórica. Os mapas de Nicolas Sanson, da década de 1640, já se preocupavam em identificar a Gália romana, fornecendo instrumentos intelectuais para justificar o expansionismo dos Bourbon, e outros autores delimitavam a França sob o domínio de Clóvis, inaugurando o mito contemporâneo da "França de mil anos", que é compartilhado por De Gaulle, Miterrand e Le Pen.

Função estratégica
Cronos, o tempo, é o senhor da legitimidade. O Estado-nação ergueu a ponte que reuniu a história à geografia e as engajou na missão patriótica de fabricação das histórias nacionais.
Nos mapas do século 17, as fronteiras "internas", que delimitavam espaços de poder e tributação tradicionais, não se distinguiam facilmente das fronteiras "internacionais". Tudo mudou depois da Revolução Francesa, que transferiu a soberania para o povo e entalhou, definitivamente, a nação e o território nacional na consciência política européia.
Mapas históricos desempenham, tanto quanto os arsenais militares, funções estratégicas e diplomáticas. O Ministério do Exterior francês criou sua seção geográfica em 1772 e, logo depois, adquiriu a coleção de cerca de 10 mil mapas do geógrafo d'Anville.
A cartografia histórica tornava-se um poderoso traço de união entre os eruditos, as chancelarias e os Exércitos. Black não conta, mas, no Brasil, o barão do Rio Branco derrotou as pretensões territoriais argentinas e francesas lançando mão de um conhecimento superior derivado da compilação e da interpretação de documentos cartográficos coloniais.
As Províncias Unidas alcançaram a unidade e a soberania com a Guerra dos 80 Anos (1568-1648). Mesmo assim, entre 1697 e 1701, Menso Alting publicou um atlas histórico com 14 mapas representando as Províncias Unidas desde o século 1º a.C. até o século 13.
O anacronismo, um expediente clássico da história da "formação" das nações, é um componente vital de grande parte dos atlas históricos. O segundo volume do "Atlas d'Histoire et de Géographie", de Drioux e Leroy, publicado em 1867 e adaptado às normas da educação pública francesa, celebrava a evolução da "França eterna", em estágios sucessivos de glória crescente, sob Carlos Magno, os Bourbon, Napoleão e Napoleão 3º.

Formação da pátria
Patriotismo, expansionismo, imperialismo. Atlas poloneses do início do século 19 enfocavam a partilha do país entre Rússia, Prússia e Áustria, configurando uma plataforma geopolítica para a restauração da unidade. Atlas escolares alemães do final daquele século conferiam às guerras de Bismarck o sentido de cumprimento de um destino. Enquanto isso, a cartografia histórica inglesa se concentrava na extensão do império e traçava paralelos entre a "Pax Britannica" e a "Pax Romana".
O paradigma da Roma clássica aparece em outros lugares, até mesmo no "Atlas de Portugal", de Aristides Girão, publicado em 1959, sob o regime de Salazar.
O século 20 ocupa a metade da obra na qual a narrativa perde um pouco da força e do foco, como reflexo das dificuldades de abordagem de um fenômeno que se torna excessivamente multifacetário, abrangendo atlas nazistas, comunistas, liberais nacionalistas, terceiro-mundistas e étnicos.
Mas a faca analítica de Jeremy Black continua afiada e oferece passagens como essa: "Os conceitos modernos de espaço são essencialmente aqueles difundidos por potências ocidentais e delimitados por seus topógrafos no século 19. Os povos não-ocidentais que buscam entender sua história têm de enfrentar o problema de descrever cartograficamente um período pré-ocidental quando as noções indígenas de espaço eram diferentes e são, portanto, difíceis de descrever em termos da linguagem territorial cartográfica moderna de linhas nítidas".

Papel cinza
O alemão Friedrich Benicken lançou, na década de 1820, atlas históricos que usavam novas tecnologias gráficas. O projeto ambicioso foi um fracasso de vendas, em parte devido ao uso de papel cinza.
A edição brasileira de "Mapas e História" incorre no mesmo erro: a opção por papel reciclado afeta a legibilidade dos mapas, que são em preto-e-branco. Na edição original, da Yale University Press, os mapas são impecáveis, e alguns estão impressos em cores. Mais: a tradução, em algumas passagens, cria a falsa impressão de que Black escreve mal. Nada disso deveria afastar o leitor interessado na produção das imagens que sustentam a linguagem política contemporânea.


Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana pela USP.

Mapas e História
428 págs., R$ 62 de Jeremy Black. Trad. de Cleide Rapucci. Edusc (r. Irmã Arminda, 10-50, CEP 17011-160, Bauru, SP, tel. 0/xx/14/ 3235-7219).



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