|
Texto Anterior | Índice
A última de Manoel
O principal diretor português, que está completando 101 anos, fala de sua nova película, baseada em um conto do escritor realista eça de queiroz, e se diz contra "fazer uma experiência" no cinema
MARCO RODRIGO ALMEIDA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Pouco antes de completar 101 anos (seu aniversário foi na sexta-feira), o cineasta português Manoel
de Oliveira disse, em entrevista à Folha, que a morte não o assusta, apesar de pensar mais nela. "O que me acompanha é uma certa melancolia", conta.
Quem acompanha sua obra, no
entanto, sabe que tal desencanto não interrompeu sua capacidade criativa. Desde o início da
década de 1990, ele tem lançado em média um filme por ano.
Em visita ao Brasil, foi homenageado com a Ordem do Mérito Cultural, no Rio de Janeiro, em novembro passado. No dia seguinte, recebeu o título de doutor honoris causa da
Universidade Federal de Minas Gerais, onde também participou do projeto Sentimentos do Mundo, que debateu sua obra.
Na mesma noite, voltou para Lisboa. "É difícil ter fôlego para acompanhá-lo", disse Aniello
Avella, professor de história da cultura dos países de língua portuguesa na Universidade de Roma, 40 anos mais jovem.
O mais recente filme do cineasta, "Singularidades de uma Rapariga Loura" (ainda sem
previsão de lançamento no Brasil), baseado em um conto de Eça de Queiroz, foi exibido
na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo deste ano.
O primeiro, o curta "Douro, Faina Fluvial", foi lançado em 1931.
O tempo parece correr sempre a favor de Manoel de Oliveira, que iniciou sua principal
fase artística com "Amor de Perdição" (1978), quando já tinha 70 anos.
Na entrevista a seguir, concedida em Belo Horizonte num dos intervalos de sua apertada
agenda, o diretor falou de sua relação com os atores, de como
preserva o mistério dos personagens e do respeito que tem
pela obra de grandes romancistas -além de Eça de Queiroz
(1845-1900), outros como Camilo Castelo Branco (1825-90).
FOLHA - "Singularidades de uma
Rapariga Loura" é a primeira adaptação que o sr. faz de uma obra de
Eça. Por que escolheu esse conto,
que não é uma de sua obras mais famosas?
MANOEL DE OLIVEIRA - Não é famosa, mas é das minhas prediletas. Na verdade, foi José Régio [escritor português, 1901-69] quem me indicou a leitura.
Eu andava muito com ele. O
Régio era um homem extremamente sabedor, muito intuitivo. Dizia-me que esse conto era
das coisas mais interessantes do Eça.
Muitos anos depois, quando pensei em fazer um filme sobre Eça, lembrei-me desse título e
então fui ler o conto. Gostei muito.
Primeiro escrevi um roteiro que se passava na mesma época
do conto. Depois atualizei para o presente porque o produtor
do filme me disse que as tipoias, os guarda-roupas, os transeuntes, tudo era muito impróprio,
muito caro.
Era muito difícil de fazer, pois isso se passava no centro
de Lisboa. Hoje, a cidade está perdendo o caráter de antigamente. Agora há prédios novos,
muitos modernos. E, é claro, os empreiteiros. Os prédios modernos são todos iguais, é tudo
a mesma coisa. Muito vidro, muito pouco recato. Gente da rua vê o que está a passar no interior das casas.
FOLHA - Além de ter atualizado a
história, o sr. deu mais destaque a
Luísa, a rapariga do título. No filme,
ela é uma personagem mais complexa.
OLIVEIRA - Mas o filme segue à
risca o conto. Não é melhor do
que o conto. Pode estar mais ou
menos à altura dele, mas não é
melhor. Ele principia numa tipoia em que vão dois passageiros. Esses dois passageiros são
arrumados numa casa para dormir, no mesmo quarto, um a cada lado.
O conto diz que se conta a um desconhecido o que se não conta à mulher ou a um amigo. E de
fato é isso, às vezes um desconhecido é um pretexto para um
desabafo. Macário [o protagonista], já um homem de idade,
já um velhote, desabafa com o outro sujeito, com o narrador, um caso de amor de sua juventude.
A transformação que fiz é que, além de ser jovem, Macário começa o filme fazendo
uma viagem para se recuperar da decepção amorosa pela qual passava. Mas a viagem é secundária.
E, em vez de ser a outro cavalheiro, é a uma senhora que ele
conta sua história. Uma senhora que ouve atentamente, com
os olhos fixos. É uma atitude,
um sinal de que a pessoa está muito interessada. Todo movimento é distrativo.
Os realizadores que fazem muitos movimentos, que colocam a câmera para cima, para
baixo, de longe e assim sucessivamente, estão a tirar toda a
atenção daquilo que se passa, não estão a fixar nada.
FOLHA - Em "Singularidades...", a
história aparentemente se passa
nos dias de hoje, mas os costumes,
as relações entre as personagens
são típicos do século 19 e, os diálogos, iguais aos do conto. O sr. não
pensou em alterá-los?
OLIVEIRA - Não toquei no diálogo porque não seria cordial tocar no diálogo de Eça, sobretudo não estando ele já vivo. Por outro lado, acho que é muito curioso esse modo de dizer, que
é perfeitamente aceitável hoje, mas tem um cunho muito particular, um cunho escrito por
um homem que manipulava a língua admiravelmente.
São os dois grandes: Camilo Castelo Branco, que é um romântico, e Eça de Queiroz, que é um realista.
São dois vultos muito importantes da nossa literatura.
FOLHA - Apesar de admirar Eça, o
sr. já declarou que o realismo por vezes o aborrece. O que o desagrada
nesse estilo?
OLIVEIRA - Por exemplo, em "Os
Maias" e em outros livros, há
descrições muito extensas.
Descreve muito o tapete, os diferentes tipos de tapetes, os
móveis, aquela coisa toda. Era
típico do realismo da época. A
pintura poderia traduzir isso, não é?
O realismo hoje já não se distrai com o ambiente. É diferente. Mas acho que, nesse conto
do Eça, o diálogo é muito bonito e dá um certo sabor.
FOLHA - Em "Singularidades...",
Luísa é uma personagem que não chegamos a compreender totalmente. Quando retomou "A Bela da
Tarde" (1967), de Buñuel, no filme "Sempre Bela" (2006), o sr. também
não esclareceu o que aconteceu com
aqueles personagens. Antes, aprofundou ainda mais o mistério que já
existia na história original. Como o
sr. desenvolve seus personagens?
OLIVEIRA - Minha explicação das personagens é o desenvolvimento da ação. Essa qualidade artística dá uma expressão intuitiva e vai para além da capacidade natural delas. Quer
dizer, elas ficam muito mais humanas, no bom ou no mau sentido. O que dá às atrizes e
aos atores a possibilidade de transpor uma realidade que normalmente não se vê.
No meu filme "A Caixa" [1994], isso é muito revelador.
Há duas mulheres que se encontram, com filhos no colo, e medem sua força feminina, sua
capacidade feminina. Isso é extraordinário, ultrapassam suas próprias personalidades.
Na vida corrente, não são da mesma maneira.
Bem, as atrizes estão realmente exprimidas. Porque arte é expressão. Eu não gosto muito dessa coisa que dizem agora, "vou fazer uma experiência". O José Régio, por exemplo, dizia que experiência se faz em casa.
Quando se faz um filme, uma pintura, não se está a experimentar coisa nenhuma. Está-se a dar, totalmente a dar, a dar na sua totalidade. E o que vai é aquilo, sai bem ou sai mal, mas
não se está a fazer uma experiência coisa nenhuma.
FOLHA - Como o sr. consegue envolvimento, entrega por parte dos
atores?
OLIVEIRA - Dou muita liberdade aos atores. Não me oponho ao
que eles fazem; vejo o que fazem, se está bem, eu digo bem; se está mal, digo "não, não, faça
assim, faça assado, desta ou daquela maneira".
Eles leem o papel, estudam e criam seu personagem. O verdadeiro ator é muito bonito e
muito determinado. Seja qual for sua técnica. Eu deixo que faça como achar melhor.
FOLHA - Seus últimos filmes estão mais curtos. "Singularidades..." tem apenas 63 minutos, "Cristóvão Colombo - O Enigma" (2007) tem 75 e "Sempre Bela" (2006) tem 68 minutos. O sr. fez filmes muito longos por algum tempo. A experiência lhe permite ir direto ao ponto?
OLIVEIRA - Não. Creio que, quando a gente começa a ter
uma vida muito longa, começa a fazer filmes mais curtinhos (risos). Não sei... "Amor de Perdição" [1978] tem quatro horas e 20 minutos.
Na França foi um sucesso, a crítica adorou o filme. Em Portugal foi um desastre.
Enfim... Minha posição é clara. Há realizadores que buscam, invocam prêmios. Eu sigo
os meus princípios. Dizem que
ninguém é perfeito no seu próprio país. Embora não seja perfeito, coisa boa não há de se esperar na própria casa.
FOLHA - O sr. faz 101 anos e seus
filmes possuem enorme frescor e vitalidade. Como o sr. se sente?
OLIVEIRA - Eu me sinto mais novo (risos). A morte não me assusta, o sofrimento, sim. O que
me acompanha é uma certa
melancolia. Porque vi desaparecerem muitas pessoas queridas. Primeiro os pais, depois os
irmãos e mesmo os amigos.
Não tenho nenhum amigo da
minha idade que diga "ó, rapaz,
lembra-se de quando tínhamos
17 anos e tal...". É uma melancolia muito forte.
Pensa-se mais na morte. Estou casado há 70 anos com a
Maria Isabel. Ela quer que eu
morra primeiro. E eu quero que
ela morra primeiro (risos). Para
que ela seja acompanhada na
sua morte [no seu enterro], para que eu seja acompanhado na
minha morte [no meu enterro].
Mas não está nas nossas
mãos decidir, não é mesmo?
É claro, a gente pensa "o que
será depois da morte da minha
mulher", mas não posso perguntar o que será depois da minha morte. A gente sabe que é
inútil.
O homem é um bicho de uma
curiosidade infinita, mas de um
conhecimento muito limitado.
Texto Anterior: +lançamentos Índice
|