São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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AUTORES
Retomada atual dos filmes documentários supre a carência de inventividade do cinema contemporâneo
O novo endereço da ficção

JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

Na primavera passada, enquanto a Cinemateca de Paris prestava homenagem ao cinema-documentário de Chris Marker, o Grand Palais dedicava uma exposição à obra fotográfica de Man Ray. No Museu de Arte Moderna da cidade de Paris, Christian Boltanski atapetara, de alto a baixo, uma imensa sala com fotografias de desconhecidos ou celebridades do passado. No outono, o Museu do Jeu de Paume consagrou sua programação cinematográfica aos documentários do cineasta holandês Van der Keuken. Quatro locais de exposição simultâneos repartiram-se na exposição itinerante "O Corpo e a Cidade", uma vasta instalação construída a partir de séries fotográficas do mesmo artista.
Na Casa Européia da Fotografia, suas imagens de Amsterdã e Sarajevo confinavam com outras exposições igualmente voltadas à celebração ou à denúncia da realidade; no andar de cima, as fotos de Édouard Boubat, consagradas a Lella, evocavam o paraíso perdido e sempre vivo da fotografia de outrora instantes de felicidade fugaz, captados entre duas janelas de mansardas que dominavam o cenário de telhados e gatos, numa Paris dos idos de 45. Subindo as escadas, outras salas davam acesso ao "mundo de Weegee": imagens da infância pobre na Bowery, aglomerações populares diurnas e amores noturnos na praia de Coney Island, vítimas de assassinatos e assassinos detidos na Décima Avenida, crianças boquiabertas no circo ou mocinhas extasiadas nos recitais de Frank Sinatra. Mais adiante estavam expostas as recentes fotografias de Hocine sobre uma Argélia martirizada, que já dividem espaço, no álbum de horrores do século, com o soldado de brigada mortalmente ferido de Robert Capa, o prisioneiro vietcongue abatido à queima-roupa por um oficial americano ou as crianças abrasadas pelo napalm nas estradas do Vietnã.
Essas próprias manifestações inscrevem-se num movimento mais vasto: festivais e debates dão testemunho, por exemplo, da vitalidade do filme-documentário e da reflexão a seu propósito. Há dois anos, um pequeno acontecimento foi criado pelo filme "Reprise", documentário de três horas consagrado a um tema aparentemente tênue: a procura, 30 anos mais tarde, de uma operária revoltada que, em maio de 1968, ocupara um minuto fugaz de um breve filme militante sobre o fim da greve das usinas Wonder. Será que devemos ver nesses fenômenos harmônicos o signo de algum retorno significativo, em tempos de "crise de arte", bem como de crise econômica e social, da representação direta da realidade e do engajamento nos conflitos contemporâneos?
˛Esse tipo de diagnóstico, apesar das aparências, é demasiado simples e explicita algumas confusões. Para começo de conversa, ele repousa na visão simplista da modernidade artística como movimento sistemático de abandono do realismo representativo em benefício dos formalismos da arte pela arte. Pensemos, por exemplo, na idéia preconcebida segundo a qual o desenvolvimento dos meios de reprodução mecânica teria conduzido as artes figurativas rumo aos caminhos da abstração. Isso seria esquecer que Baudelaire, estopim da guerra dos artistas contra os fotógrafos, foi também quem forjou o conceito de uma "pintura da vida moderna", terreno conceitual onde a fotografia encontrou sua legitimidade de arte absolutamente autônoma.
Isso seria esquecer que o primeiro abalo da ordem representativa chamou-se realismo, e não abstração. Não uma fuga formalista diante das exigências da visão, mas, ao contrário, uma forma de sublinhar as convenções e as hierarquias da representação, aproximando mais a lente tanto do romancista quanto do pintor e do fotógrafo, situando-a num ponto de vista mais íntimo, que suspende a lógica das "histórias" e a tradutibilidade do legível em visível ao se fixar no enigma de um rosto ou de uma vida anônimos.
˛Pouco importa que Baudelaire tenha menosprezado a fotografia, e Flaubert, o povo. Tal como a "Lella" de Boubat e os proletários de Weegee, a operária que aparece de maneira fugidia em "Reprise" não é menos filha de Madame Bovary ou da transeunte de Baudelaire. E a ficção-documentário que parte inutilmente em sua busca reconduz as grandes ficções de pesquisa cinematográfica do gênero "Cidadão Kane" à solidariedade primeira da modernidade artística e da vida anônima. A força "realista" do instantâneo fotográfico e da temporalidade cinematográfica está fadada, tal como a do poema baudelairiano, à busca desse objeto perdido "que não se acha/ nunca, nunca!"
É por isso, também, que o filme dito "documentário" e seu "revival" atual abandonam a oposição simplista entre ficção e realidade. O que dá corpo à ficção, de fato, não é a invenção de uma história, é a construção de uma rede de signos e de agenciamento de signos capazes de quebrar o regime ordinário do desfile de imagens e da associação de palavras às coisas. Desse ponto de vista, a importância que assume a forma documentária não trai um repúdio à ficção, mas, ao contrário, um interesse renovado pelos recursos ficcionais próprios à arte cinematográfica.
Eis o paradoxo: os filmes de ficção manifestam hoje muito pouca invenção ficcional. Eles tendem a dividir-se em dois grandes gêneros. De um lado, existe a infraficção, da forma como é ilustrada particularmente pela comédia de costumes à francesa. Nesse caso, a ficção é reduzida à exibição de signos sociais e culturais, a atitudes e formas de linguagem que fazem reconhecer e partilhar um mesmo imaginário social. De outro, existe a ultraficção dos filmes-catástrofe: a realidade não se impõe mais sob a forma de semelhança familiar, mas, inversamente, como irrupção de choques sensoriais. De um lado, a ficção familiar, a canção miúda da vida sempre igual e sempre diferente; de outro, o cenário da catástrofe sempre iminente. Os grandes gêneros da "ficção" cinematográfica tendem, assim, a reproduzir uma partilha geopolítica do mundo entre Europa e América.
O que rompe essa partilha encontra-se nas margens: na extraordinária vitalidade do cinema que nos vem do Extremo Oriente, mas também da retomada da ficção documentária. De fato, esta última rompe as lógicas complementares dos jogos de espelho sociológicos e das overdoses de estímulos de exceção. Ela quebra os encadeamentos familiares de imagens e de significados que compõem o regime sensível da opinião ao remeter, de um lado, à nudez das imagens e, de outro, à indagação sobre a possibilidade de os reunir num sentido histórico. É assim, por exemplo, que Chris Marker nos convida, em "O Túmulo de Alexandre", a romper o ramerrão do discurso sobre os malefícios funestos da utopia partindo em busca de um cineasta soviético, cujos filmes comunistas foram continuamente censurados pelo poder do próprio nome, Alexander Medvedkin.
˛Ele nos defronta com uma série de imagens da Rússia pré-comunista, comunista e pós-comunista: cortejos imperiais do início do século e pompas religiosas reencontradas na Rússia de hoje; escadarias reais de Odessa, que um pedestre desce em 90 segundos, e escadarias ficcionais do "Encouraçado Potemkin", que uma multidão leva sete minutos para descer a toda velocidade; filmes documentários ou ficcionais que Medvedkin rodou para a glória de um regime que os recusou, mandando filmar grandes paradas stalinistas em seu lugar; entrevistas do diretor hoje morto e testemunhos daqueles que descobriram seus filmes. Em seis "cartas" endereçadas ao desaparecido, ele constrói os cenários capazes de dar sentido a tais imagens, aproveitando a ocasião, afinal, para confrontar a história do "reino das sombras" cinematográfico e a das "sombras do reino" utópico, para refletir sobre a história do século por meio do olhar do cinema sobre sua própria história. É assim que o documentário revela seus poderes, que de modo algum são "diretos", sendo antes a mais complexa, a mais polifônica das ficções.
˛De maneira análoga, Van der Keuken rompe o repositório político-ficcional do mundo num filme como "Amsterdam Global Village", que implode o território dos conhecimentos sociológicos ao seguir os trajetos que ligam os "residentes" de Amsterdã a seus locais de origem: um vilarejo boliviano dos Andes, a Tailândia ou a Tchetchênia em guerra. É assim, também, que ele dispõe, em imensos painéis, suas fotos de Sarajevo, onde a regularidade dos imóveis da arquitetura comunista é transpassada pela regularidade dos impactos das balas sérvias; uma estudante contempla, atrás de sua janela, essas imagens de paredes uniformemente perfuradas que ela vê como sua cidade destruída e que nós, por cima de seu ombro, vemos como uma superfície cravejada de balas, estranhamente análoga àquelas que puderam inventar as raspagens ou as perfurações das vanguardas pictóricas do passado. Aqui, mais uma vez, o olhar documentário explora, a igual distância da comiseração e do esteticismo, o parentesco enigmático dos traços da história e das formas artísticas. Foi talvez para esse endereço que, nos dias de hoje, a ficção se mudou.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e um dos nomes centrais da filosofia francesa atual. É autor de "O Dissenso", "O Desentendimento" (Ed. 34), "A Noite dos Proletários", entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.



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