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AUTORES
Retomada atual dos filmes documentários supre a carência de inventividade do cinema contemporâneo
O novo endereço da ficção
JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha
Na primavera passada,
enquanto a Cinemateca de
Paris prestava homenagem ao cinema-documentário de Chris Marker, o
Grand Palais dedicava
uma exposição à obra fotográfica de Man Ray. No
Museu de Arte Moderna
da cidade de Paris, Christian Boltanski atapetara,
de alto a baixo, uma imensa sala com fotografias de
desconhecidos ou celebridades do passado. No outono, o Museu do Jeu de
Paume consagrou sua programação cinematográfica
aos documentários do cineasta holandês Van der
Keuken. Quatro locais de
exposição simultâneos repartiram-se na exposição
itinerante "O Corpo e a
Cidade", uma vasta instalação construída a partir
de séries fotográficas do
mesmo artista.
Na Casa Européia da Fotografia, suas imagens de
Amsterdã e Sarajevo confinavam com outras exposições igualmente voltadas
à celebração ou à denúncia
da realidade; no andar de
cima, as fotos de Édouard
Boubat, consagradas a
Lella, evocavam o paraíso
perdido e sempre vivo da
fotografia de outrora instantes de felicidade fugaz,
captados entre duas janelas de mansardas que dominavam o cenário de telhados e
gatos, numa Paris dos idos de 45.
Subindo as escadas, outras salas
davam acesso ao "mundo de
Weegee": imagens da infância pobre na Bowery, aglomerações populares diurnas e amores noturnos na praia de Coney Island, vítimas de assassinatos e assassinos
detidos na Décima Avenida, crianças boquiabertas no circo ou mocinhas extasiadas nos recitais de
Frank Sinatra. Mais adiante estavam expostas as recentes fotografias de Hocine sobre uma Argélia
martirizada, que já dividem espaço, no álbum de horrores do século, com o soldado de brigada mortalmente ferido de Robert Capa, o
prisioneiro vietcongue abatido à
queima-roupa por um oficial americano ou as crianças abrasadas
pelo napalm nas estradas do Vietnã.
Essas próprias manifestações
inscrevem-se num movimento
mais vasto: festivais e debates dão
testemunho, por exemplo, da vitalidade do filme-documentário e da
reflexão a seu propósito. Há dois
anos, um pequeno acontecimento
foi criado pelo filme "Reprise",
documentário de três horas consagrado a um tema aparentemente
tênue: a procura, 30 anos mais tarde, de uma operária revoltada que,
em maio de 1968, ocupara um minuto fugaz de um breve filme militante sobre o fim da greve das usinas Wonder. Será que devemos
ver nesses fenômenos harmônicos
o signo de algum retorno significativo, em tempos de "crise de arte", bem como de crise econômica e social, da representação direta
da realidade e do engajamento nos
conflitos contemporâneos?
˛Esse tipo de diagnóstico, apesar das aparências, é demasiado
simples e explicita algumas confusões. Para começo de conversa, ele
repousa na visão simplista da modernidade artística como movimento sistemático de abandono
do realismo representativo em benefício dos formalismos da arte
pela arte. Pensemos, por exemplo,
na idéia preconcebida segundo a
qual o desenvolvimento dos meios
de reprodução mecânica teria
conduzido as artes figurativas rumo aos caminhos da abstração. Isso seria esquecer que Baudelaire,
estopim da guerra dos artistas
contra os fotógrafos, foi também
quem forjou o conceito de uma
"pintura da vida moderna", terreno conceitual onde a fotografia
encontrou sua legitimidade de arte
absolutamente autônoma.
Isso seria esquecer que o primeiro abalo da ordem representativa
chamou-se realismo, e não abstração. Não uma fuga formalista
diante das exigências da visão,
mas, ao contrário, uma forma de
sublinhar as convenções e as hierarquias da representação, aproximando mais a lente tanto do romancista quanto do pintor e do fotógrafo, situando-a num ponto de
vista mais íntimo, que suspende a
lógica das "histórias" e a tradutibilidade do legível em visível ao se
fixar no enigma de um rosto ou de
uma vida anônimos.
˛Pouco importa que Baudelaire tenha menosprezado a fotografia, e Flaubert, o povo. Tal como a
"Lella" de Boubat e os proletários
de Weegee, a operária que aparece
de maneira fugidia em "Reprise"
não é menos filha de Madame Bovary ou da transeunte de Baudelaire. E a ficção-documentário que
parte inutilmente em sua busca reconduz as grandes ficções de pesquisa cinematográfica do gênero
"Cidadão Kane" à solidariedade
primeira da modernidade artística
e da vida anônima. A força "realista" do instantâneo fotográfico e
da temporalidade cinematográfica
está fadada, tal como a do poema
baudelairiano, à busca desse objeto perdido "que não se acha/ nunca, nunca!"
É por isso, também, que o filme
dito "documentário" e seu "revival" atual abandonam a oposição simplista entre ficção e realidade. O que dá corpo à ficção, de
fato, não é a invenção de uma história, é a construção de uma rede
de signos e de agenciamento de
signos capazes de quebrar o regime ordinário do desfile de imagens e da associação de palavras às
coisas. Desse ponto de vista, a importância que assume a forma documentária não trai um repúdio à
ficção, mas, ao contrário, um interesse renovado pelos recursos ficcionais próprios à arte cinematográfica.
Eis o paradoxo: os filmes de ficção manifestam hoje muito pouca
invenção ficcional. Eles tendem a
dividir-se em dois grandes gêneros. De um lado, existe a infraficção, da forma como é ilustrada
particularmente pela comédia de
costumes à francesa. Nesse caso, a
ficção é reduzida à exibição de signos sociais e culturais, a atitudes e
formas de linguagem que fazem
reconhecer e partilhar um mesmo
imaginário social. De outro, existe
a ultraficção dos filmes-catástrofe:
a realidade não se impõe mais sob
a forma de semelhança familiar,
mas, inversamente, como irrupção de choques sensoriais. De um
lado, a ficção familiar, a canção
miúda da vida sempre igual e sempre diferente; de outro, o cenário
da catástrofe sempre iminente. Os
grandes gêneros da "ficção" cinematográfica tendem, assim, a
reproduzir uma partilha geopolítica do mundo entre Europa e América.
O que rompe essa partilha encontra-se nas margens: na extraordinária vitalidade do cinema
que nos vem do Extremo Oriente,
mas também da retomada da ficção documentária. De fato, esta
última rompe as lógicas complementares dos jogos de espelho sociológicos e das overdoses de estímulos de exceção. Ela quebra os
encadeamentos familiares de imagens e de significados que compõem o regime sensível da opinião
ao remeter, de um lado, à nudez
das imagens e, de outro, à indagação sobre a possibilidade de os
reunir num sentido histórico. É
assim, por exemplo, que Chris
Marker nos convida, em "O Túmulo de Alexandre", a romper o
ramerrão do discurso sobre os
malefícios funestos da utopia partindo em busca de um cineasta soviético, cujos filmes comunistas
foram continuamente censurados
pelo poder do próprio nome, Alexander Medvedkin.
˛Ele nos defronta com uma série de imagens da Rússia pré-comunista, comunista e pós-comunista: cortejos imperiais do início
do século e pompas religiosas
reencontradas na Rússia de hoje;
escadarias reais de Odessa, que
um pedestre desce em 90 segundos, e escadarias ficcionais do
"Encouraçado Potemkin", que
uma multidão leva sete minutos
para descer a toda velocidade; filmes documentários ou ficcionais
que Medvedkin rodou para a glória de um regime que os recusou,
mandando filmar grandes paradas
stalinistas em seu lugar; entrevistas do diretor hoje morto e testemunhos daqueles que descobriram seus filmes. Em seis "cartas"
endereçadas ao desaparecido, ele
constrói os cenários capazes de
dar sentido a tais imagens, aproveitando a ocasião, afinal, para
confrontar a história do "reino
das sombras" cinematográfico e a
das "sombras do reino" utópico,
para refletir sobre a história do século por meio do olhar do cinema
sobre sua própria história.
É assim que o documentário revela seus poderes,
que de modo algum são
"diretos", sendo antes a
mais complexa, a mais polifônica das ficções.
˛De maneira análoga,
Van der Keuken rompe o
repositório político-ficcional do mundo num filme
como "Amsterdam Global Village", que implode
o território dos conhecimentos sociológicos ao seguir os trajetos que ligam
os "residentes" de Amsterdã a seus locais de origem: um vilarejo boliviano
dos Andes, a Tailândia ou
a Tchetchênia em guerra.
É assim, também, que ele
dispõe, em imensos painéis, suas fotos de Sarajevo, onde a regularidade
dos imóveis da arquitetura
comunista é transpassada
pela regularidade dos impactos das balas sérvias;
uma estudante contempla,
atrás de sua janela, essas
imagens de paredes uniformemente perfuradas
que ela vê como sua cidade
destruída e que nós, por
cima de seu ombro, vemos
como uma superfície cravejada de balas, estranhamente análoga àquelas que
puderam inventar as raspagens ou as perfurações
das vanguardas pictóricas
do passado. Aqui, mais
uma vez, o olhar documentário explora, a igual
distância da comiseração e
do esteticismo, o parentesco enigmático dos traços da história e das
formas artísticas. Foi talvez para
esse endereço que, nos dias de hoje, a ficção se mudou.
Jacques Rancière é professor da Universidade
de Paris 8 (França) e um dos nomes centrais da
filosofia francesa atual. É autor de "O Dissenso",
"O Desentendimento" (Ed. 34), "A Noite dos Proletários", entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.
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