São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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MEMÓRIA
Dois contos jornalísticos de um aristocrata do bolchevismo
Tudo é ficção

OTAVIO FRIAS FILHO
Diretor de Redação

Os jornalistas se dividem entre os que escrevem e os que editam, cada lado considerando que o outro é mais ou menos inepto para fazer o que faz. Cláudio Abramo (1923-1987), uma das personalidades mais decisivas da modernização do jornalismo brasileiro, sempre foi um editor. Era proverbial sua capacidade de identificar talentos, formar equipes, planejar coberturas, conceber edições, desenhar páginas. Sua influência se irradia até hoje através das gerações e das escolas jornalísticas, antagônicas até, que o reivindicam como modelo precursor.
Sua prosa jornalística, em boa parte redigida às pressas e subscrita por pseudônimos jocosos, ficou, assim, um pouco relegada. O principal foi fixado em livro na coletânea de depoimentos e artigos publicada por seu filho, o matemático e também jornalista Cláudio Weber Abramo, no ano seguinte ao de sua morte ("A Regra do Jogo", Companhia das Letras, 1988). Cláudio Abramo usava três pseudônimos frequentes: Carlos Hard, para as catilinárias; John Poison, para os artigos sibilinos; Anna Freund, para ajudar amigos ou perseguidos pelo regime militar. Havia também José ou João da Silva, "pedreiro", que interpelava as autoridades municipais de um ângulo popular, mas expressando-se em português elevadíssimo.
Os dois textos que o Mais! publica hoje foram editados, respectivamente em 13 e 30 de março de 1975, no primeiro caderno da Folha. Eram as primeiras semanas do governo Geisel, a censura à imprensa começava a ser levantada. Foram assinados por "FT", mas algum consciencioso arquivista da época teve o cuidado de assinalar a verdadeira autoria, à mão. Passariam despercebidos, mesmo assim, aos olhos dos pesquisadores, apesar de estarem entre os melhores textos que Cláudio Abramo escreveu.
Liberado de qualquer escrúpulo estilístico, já que era necessário empregar recursos de ficção para reportar fatos urgentes, o jornalista faz uma paródia da crônica política da época, com evidente rendimento humorístico. Mais do que isso, o texto forceja os limites do jornalismo em direção à literatura, permanecendo, porém, num lusco-fusco de ambiguidade e ironia. Não se deve imaginar que fossem artigos típicos na imprensa da época. Ao contrário, seu tom é deliberadamente excêntrico, alusivo ao extremo, às vezes arcaizante -tudo isso, justamente para chamar a atenção do leitor atento, acostumado a ler nas entrelinhas.
É comum na imprensa que em momentos críticos o proprietário da publicação funcione como repórter. Certo dia meu pai chegou com informações fragmentárias de que se esboçava, nos bastidores da "abertura", uma reedição da Frente Ampla de 1966, a frustrada aproximação entre Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart contra o governo dos generais. Só quem viveu essa época pode ter noção de como pequenas movimentações políticas tinham importância crucial, histórica, não meramente administrativa como hoje. Cláudio se dispôs a redigir um texto para bom entendedor, tomando todos os cuidados que o bom senso requeria em face de uma ditadura que ainda dava todas as cartas.
Daí surgiu "Cosí (Se Vi Pare)", "Assim É Se Lhe Parece", título tomado à peça mais famosa de Pirandello. O personagem com "perfil de ave" que tem o busto de Napoleão sobre a mesa é Lacerda, que foi alcunhado de "o corvo" por Samuel Wainer, seu inimigo histórico. A enigmática "voz", que aparece em seguida, é o jornal "O Estado de S. Paulo". Na mesa de outro personagem aparece um busto de Lincoln pintado de amarelo: esse é Jânio. Por último, o homem que com todas aquelas cifras "construiria mil cidades, não uma" evidentemente é JK. A narrativa do artigo prefigura as meias-verdades diante de um suposto interrogatório policial-militar: "Carneggie nunca escreveu tal livro", "não há cidade moderníssima construída em vales", "o grande arquiteto norte-americano jamais desenhou cadeiras" (mas ele desenhou).
"Cosí È (Se Vi Pare) - II" adota um andamento de literatura policial e cinema americano. Nessa história intrincada, cuja origem objetiva se perdeu, há uma impressionante semelhança com a nossa atual cultura de grampos telefônicos. São trechos de diálogos entre personagens com nomes comicamente americanos, nos quais o que se esconde sugere muito mais do que é dito em termos de negociatas, propinas e extorsão. A única indicação factual não poderia ser mais eufemística: o relato é "uma caricatura do que talvez tenha acontecido com a não muito remota indicação, para uma alta posição, de conhecida personalidade de um rico e poderoso rincão". Até hoje lemos notas assim na imprensa.
Surgiu todo um hagiológio de esquerda, sobretudo no meio acadêmico, em torno de Cláudio Abramo após sua morte. Criou-se uma figura de estampa que reduz a exuberância de sua personalidade como jornalista e intelectual. O Cláudio Abramo sentimental, "democrata", politicamente correto, é uma invenção desses intérpretes. Sua utopia, certa vez comentou, era uma fusão do Mayflower com o Soviete de Petrogrado.
Uma espécie de aristocrata do bolchevismo, ele era, como todo mundo, dilacerado por contradições. A generosidade de seu espírito e o colorido de seu talento eclético é que davam dimensão ampliada a essas contradições, mesmo quando elas provinham de meros caprichos e manias, o que era frequente. Homem austero e elegante, atormentado por uma consciência moral implacável, ele desprezava o jornalismo (especialmente em sua versão beletrista), pensava em política 24 horas por dia, foi exímio desenhista e alegava, sem prova conclusiva, ser carpinteiro nas horas vagas.
Não é possível estabelecer o sentido das iniciais "FT", que ele só empregou aqui. Como o único elemento em comum entre os dois textos, além do título, é que ambos terminam com a fórmula "tudo é ficção", parece lícito supor que o pseudônimo sejam as iniciais dessa expressão, invertidas como num anagrama.



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