São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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De volta a Barthes

Colóquio discute o legado da obra do pensador francês 20 anos após sua morte

Leyla Perrone-Moisés
especial para a Folha

No início de dezembro, aconteceu um colóquio internacional sobre a obra de Roland Barthes (1915-1980), na Universidade Yale (EUA). O título do encontro -"Back to Barthes, 20 Years After" (De Volta a Barthes, 20 Anos Depois)- indicava o intuito de rever sua obra, 20 anos após seu desaparecimento. Os participantes eram, na quase totalidade, americanos, franceses e ingleses. Como foi observado pelo público, quando a este foi dada a palavra, era um encontro de "stars". Basta citar, entre os americanos, os nomes de Susan Sontag e Jonathan Culler, entre os franceses, Michel Deguy e Antoine Compagnon, entre os ingleses, Geoffrey Bennington. Nesse contexto, eu era a única vinda de fora.
Nas semanas anteriores, haviam sido prestadas duas homenagens parisienses ao teórico do "prazer do texto": um colóquio no Collège International de Philosophie e outro no Collège de France. No primeiro, foi discutida a questão da "herança de Barthes", expressão considerada inadequada, sendo preferível falar de uma "familiaridade sem linhagem". A atualidade do ensaísta foi ressaltada pelo escritor Guy Scarpetta, que, recusando a imagem corrente de "dândi hedonista", enfatizou "a vigilância crítica, a intolerância ao discurso dos bons sentimentos, que seria necessário reativar na guerra de linguagens em que vivemos hoje". Scarpetta lembrou que Barthes foi tudo, menos um "mestre": "Ele sempre funcionou como um superego leve, não autoritário, presente, sim, mas de leve, apenas atrás da orelha". A homenagem do Collège de France, instituição em que Barthes ingressou, segundo ele mesmo, como um "sujeito impuro", foi mais convencional, segundo o relato do jornal "Le Monde".
O colóquio de Yale permitiu, àqueles que dele participaram, ter uma visão geral do que representa hoje o nome de Roland Barthes no mundo anglófono -já que os franceses ali presentes ensinam frequentemente em universidades americanas. Segundo os organizadores, Peter Brooks e Naomi Schor, "mais do que tentar integrar ou sistematizar a obra de Barthes -projeto que o próprio Barthes rejeitaria-, o evento buscava representar as várias faces e vozes dessa obra e entender sua importância para a crítica literária e cultural da atualidade". Peter Brooks, diretor do Whitney Humanities Center de Yale e autor de importantes obras teóricas ("The Novel of Wordliness", "Reading for the Plot" e "Pyschoanalysis and Storytelling"), dirigiu o colóquio com grande elegância e notável discrição, já que não apresentou nenhuma comunicação e se limitou a dar a palavra aos colegas.
Susan Sontag, como não poderia deixar de ser, foi a grande estrela do encontro. Sontag falou sobre a fotografia, à luz do livro de Barthes sobre o tema ("A Câmara Clara", Ed. Nova Fronteira). Numa fala prévia ao colóquio, durante o almoço, a escritora fez uma série de considerações sobre o que ela chamou de "representações da atrocidade": em que medida as fotos de guerra ou de massacres são um testemunho e um alerta ou, pelo contrário, banalizam e estetizam esses eventos horríveis, tornando-os suportáveis e inócuos. Na comunicação apresentada dentro da programação do colóquio, ela voltou a falar da fotografia, mas sobretudo se defendeu de algumas críticas indiretas, e talvez involuntárias, feitas por Jonathan Culler, na sessão anterior.
Jonathan Culler, conhecido professor da Universidade Cornell (EUA) e autor de "Sobre a Desconstrução - Teoria e Crítica do Pós-Estruturalismo" (Ed. Rosa dos Tempos) e "As Idéias de Barthes" (Cultrix/Edusp), falou dos riscos de considerar Barthes apenas como "escritor", minimizando sua obra teórica. Sontag, autora de "Roland Barthes, Writing Itself", sentiu-se visada e declarou que considerar Barthes fundamentalmente como escritor foi o modo que ela achou mais adequado naquele momento (fim dos anos 70). Não esclareceu se essa ainda era a sua visão atual, mas a utilização da teoria barthesiana sobre a fotografia, feita por ela, mostra que essa visão foi ampliada posteriormente.
Raymond Bellour, francês especialista em cinema que já tem dado cursos sobre o assunto no Brasil, falou da relação de Barthes com essa arte. Françoise Gaillard, professora da Universidade de Paris 7, falou sobre "A Paixão pelo Significado" e lembrou que Barthes nunca deixou de lado suas preocupações políticas de origem marxista ou que estas jamais o deixaram em paz, já que em "Roland Barthes por Roland Barthes", da fase final do autor, há uma "Censura de Brecht a R.B.", em que ele cita o autor alemão (1898-1956) quando este diz que não há escolha entre ser objeto ou sujeito da política e que, portanto, não se pode "viver com pouca política".

Ninguém comentou por que é por demais evidente que "literatura" é uma palavra fora de moda no discurso universitário norte-americano

Michel Deguy, um dos mais importantes poetas franceses atuais, além de filósofo e crítico literário, partiu da observação de que Barthes não gostava de poesia (escreveu muito pouco a esse respeito), mas que seu pensamento é fecundante para os poetas. Falou sobre o estilo de Barthes, um discurso monocórdio no qual, como ele mesmo disse de Benveniste, de repente saltam palavras inesperadas, justas, poéticas. Declarou que, como poeta, resiste à "difamação da analogia" por Barthes; a uma tendência deste ao dualismo que não vai até a desconstrução; ao uso da psicanálise como "último discurso", indexado na sexualidade e no desejo. Mas declarou ser adepto da "batmologia" praticada por Barthes e que consiste em: renunciar a ter razão, a levar vantagem sobre outro que pretendia ter razão antes; encontrar a justiça no desprendimento; chegar à "eudoxia", conhecimento obtido com a participação dos sentidos.
Antoine Compagnon, professor da Sorbonne e autor de obras muito conhecidas, inclusive no Brasil ("O Trabalho da Citação", "O Demônio da Teoria" e "Cinco Paradoxos da Modernidade", todas publicados pela ed. UFMG), falou dos "livros imaginários de Barthes". Confessou ter se aproximado com medo de certos livros de Barthes que "transformam valores em atos" e que mostram lados do escritor que ele não queria ver. E que só muito recentemente leu o último diário de Barthes, no qual ele mesmo, o então jovem Compagnon, é personagem de uma "soirée de Paris", descrita melancólica e ironicamente pelo autor.
Não ficou muito claro, pelo menos para mim, que "lados de Barthes" Compagnon temia. Em compensação, ficou demasiadamente claro o lado de Barthes que o expositor seguinte, D.A. Miller, da Universidade Columbia (EUA), privilegia. Miller é o autor de um livro intitulado "Bringing Out Roland Barthes" (literalmente: tirando Roland Barthes do Armário), no qual ele pinçou apenas os trechos em que Barthes trata da homossexualidade. Sua comunicação no colóquio seguiu a mesma linha de leitura gay, interpretando a declaração frequente de Barthes de que "não tinha nada a dizer" e sua recusa das linguagens que se auto-exibem como uma defesa contra o "terror social" exercido contra os homossexuais. Posteriormente, em conversas de corredor, alguns dos franceses que conheceram Barthes de perto mostravam-se irritados por essa leitura, já que a homossexualidade jamais foi negada por ele, mas está longe de ser prioritária em seus textos.
Os dois ingleses seguintes foram corretos sem grandes novidades. Malcolm Bowie, de Oxford, falou de "Barthes sobre Proust", e Diana Knight, de Nottingham, bordou considerações sobre "Por Onde Começar", conhecido texto de Barthes sobre o trabalho de pesquisa. Geoffrey Bennington, de Sussex, foi mais original. Bennington é um brilhante discípulo de Derrida e co-autor (com este) de um livro sobre o filósofo. Seu "Derridabase" é um precioso guia para percorrer os caminhos da desconstrução. Bennington falou da "selflessness" barthesiana, fez o elogio da "vacância da imagem" em "Roland Barthes por Roland Barthes" e na "Câmara Clara", da relação por este estabelecida entre subjetividade (imagem plena de si mesmo) e imagem (sempre má, sempre morta), uma relação não-dialética, que se configura, no texto barthesiano, como "fading" (enfraquecimento) do sujeito.
Dois outros expositores se destacaram. Pierre Saint-Amand, um haitiano professor da Universidade Brown (EUA), fez uma comunicação muito sedutora sobre "A Preguiça de Barthes". De fato, em numerosos textos Barthes fala de sua tendência à preguiça, à procrastinação, ao adiamento. Saint-Amand analisou esses textos como adiamento do gozo e exercício da autonomia do sujeito, que intervém no tempo, interrompe seu curso útil e coloca o corpo erotizado fora da cadeia de produção comercial.
Philippe Roger, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França) e autor de um dos melhores livros sobre Barthes ("Roland Barthes, Roman"), falou sobre o "desejo de romance" declarado por Barthes em sua última fase.
Na mesa-redonda com todos os participantes, que encerrou o congresso, um professor de Yale observou que aqueles scholars ali reunidos, vários deles responsáveis pela difusão do estruturalismo e do pós-estruturalismo nos Estados Unidos, pareciam estar fazendo o "trabalho de luto" daquelas teorias e daquele grande momento teórico que foram os anos 60 e 70. Raymond Bellour, sem concordar com a palavra "luto", disse que foi, de fato, um grande momento, não só para a teoria, mas também para a criação, já que no cinema havia então Godard, Truffaut, a nouvelle vague, que, atualmente, a França passa por um "flat moment" e que talvez a criação esteja acontecendo em outros lugares.
Peter Brooks observou que pouco se disse sobre o Barthes crítico e teórico da literatura. Ninguém comentou por que é por demais evidente que "literatura" é uma palavra fora de moda no discurso universitário norte-americano. Uma aluna, no público, animou a discussão perguntando por que ninguém tinha falado do Barthes marxista entusiasta do teatro de Brecht. Françoise Gaillard, que tinha tocado no assunto em sua comunicação, disse que atribuía isso a um certo mal-estar relativo ao discurso marxista, nos Estados Unidos e na França, desde a queda do Muro de Berlim.
Foi então extremamente interessante o debate entre Martin Jay, da Universidade da Califórnia, entusiasta um pouco ingênuo da aplicação das "Mitologias" (Ed. Bertrand Brasil) de Barthes para desmistificar os mitos norte-americanos (como "as louras de Hollywood"), e a mesma Françoise Gaillard, que testemunhou o absoluto desinteresse de seus alunos parisienses por esse tipo de exercício, já que os jovens europeus não se identificam com essa atitude de suspeita dos signos e vivem numa espécie de "evidência do bem". Pessoalmente, eu diria uma "evidência do mal": hoje, todos sabem que a mídia e a publicidade enganam, que tudo é aparência a serviço do mercado e que todos se acomodam a essa situação. O próprio Barthes, quando tentou retomar as "Mitologias", nos anos 70, desanimou diante do triunfo descarado da ideologia burguesa.
Foi ponto pacífico, no final, que se devia resistir à canonização de Barthes, cujos textos já fazem parte dos programas oficiais dos liceus franceses. Que ser excessivamente fiel a Barthes seria trair Barthes. O que me parece difícil é estabelecer o "juste milieu" entre a leitura fiel de seus textos -sobretudo da "Aula" (Ed. Cultrix), sobre a qual centrei minha comunicação- e a leitura livre e infiel dos mesmos. Nos dois extremos, encontra-se o perigo da imagem: canônica, numa ponta, ou "qualquer coisa", na outra. Como ele disse no colóquio de Cerisy dedicado à sua obra, ao cair na fritura da linguagem alheia, ele se sentia transformado em "batata frita".
O que ficou evidente foi a tendência a privilegiar agora o Barthes crítico da ideologia (sem aprofundar muito a base marxista dessa crítica), o teórico da imagem (auto-imagem, publicidade, fotografia), enfim o "crítico cultural". Barthes teórico e crítico literário, aquele que dizia "amo a literatura de um modo dilacerante, no próprio momento em que ela definha" ("Deliberação"), está atualmente em segundo plano, encoberto por outras imagens, outras mitologias.

Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Inútil Poesia" (Companhia das Letras).



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