São Paulo, domingo, 14 de fevereiro de 2010

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Ponto de Fuga

Notas de viagem


Sem repetições nem fórmulas, a arte de James Ensor expõe a estupidez e a crueldade dos homens

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Dias de luz, em meio a um inverno chuvoso. Há sempre, em Paris, um tom de aquário cinza-azulado que filtra tudo.
No Museu d'Orsay, a grande nave é uma festa, apesar da arquitetura solene que Gae Aulenti inventou para completar a antiga estação de trem. Os visitantes andam, param, correm, riem, fotografam, fotografam-se.
Os museus fazem parte, do modo mais límpido, das casas do sonho coletivo, escreveu Walter Benjamin. Ele os associou também aos "grands magazins", às lojas de departamento e aos bazares, em sua crítica a uma sociedade que transforma tudo em mercadoria. Orsay faz pensar um pouco nisso, mas sem a condenação pessimista.
Vistas do alto, as pessoas que percorrem a grande nave parecem felizes apenas por se encontrarem ali, compartilhando o espaço das esculturas que as recebem: a "Mulher Picada por uma Cobra", de Clésinger, a "Safo", de Pradier, os estupendos negros de Cordier, o "Ugolino" e a "Dança" de Carpeaux, que incidiriam tanto sobre Rodin, e outras, pontuam o percurso.
À direita, o imenso quadro de Couture, "Os Romanos da Decadência", contraposto a "O Ateliê do Artista", de Gustave Courbet, tela também enorme, mas escura, difícil de expor, megalomaníaca exibição do próprio gênio convencido de si.
Tela estupenda de severidade e de audácia, que assinala o fim desses quadros gigantescos, sem os quais nenhum artista conseguia então ser considerado de fato grande.

Assombração
"Na minha cabeça os ventos passam,/ Ventos que passam sob a porta,/ E os ratos negros de alto a baixo/ Povoam minha cabeça morta./ -Quebrem-lhes vértebras e patas."
Trecho do poema "Canção de Louco (nº 3)", de Émile Verhaeren, em seu livro "Os Campos Alucinados".
Verhaeren era belga, e em sua Bélgica, durante a virada do século 19 para o 20, soprou nas artes um espírito simbolista e perverso, absurdo e inconformado. Verhaeren consagrou um livro à análise de James Ensor, seu contemporâneo, pintor a quem o Museu d'Orsay consagrou uma exposição. Ela foi concentrada em tamanho. A grande tela "Entrada de Cristo em Bruxelas", do museu Getty, de Los Angeles, não veio. Ensor a pintou em 1889: foi recusada mesmo pelo grupo de vanguarda ao qual ele pertencia.
Mas outros quadros cruciais estiveram presentes, e a mostra desenhou bem a trajetória do artista. As primeiras obras fogem ao triunfo solar do impressionismo para buscar ambientes interiores: são bem próximas de Vuillard, com escuros inquietantes, porém.
Depois, explosões de luzes artificiais, em mundos que evocam ao mesmo tempo Turner e Odilon Redon.
No final dos anos 1880, iniciam-se os quadros enraivecidos, furiosos, as máscaras horrendas, as caveiras acusadoras, metáfora dos comportamentos coletivos convencionais e hipócritas. Daí para a frente, até sua morte, em 1949, o mundo foi para Ensor uma fonte de angústia inquieta.
Sem repetições nem fórmulas, sua arte expõe a estupidez e a crueldade dos homens.

Aprumo
Os quadros de Manet são construídos com um equilíbrio clássico nada impressionista. Foram reunidos em duas das supremas salas de Orsay. A iluminação lhes exalta a vida interior: estão lá como seres ardentes e intensos.

Lusco-fusco
Tristes são as galerias dos grandes formatos no Louvre. De David a Delacroix e Delaroche, todos estão lívidos sob a luz zenital. A grande beleza que possuem parece uma arredia promessa mal vislumbrada. Porém, depois que os olhos se esforçam, magnífica grandeza surge como recompensa.


jorgecoli@uol.com.br


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