São Paulo, Domingo, 14 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BRASIL 500 D.C.
Sobrevivência do folclore está ligada a sua capacidade de absorver novas influências, como as da música pop e do funk
A circulação da brincadeira

HERMANO VIANNA
especial para a Folha

Catirina é uma mulher danada. No imaginário popular brasileiro trava um combate de vida ou morte com a Amélia. Não é uma mulher de verdade, é uma mulher de capricho, de dengo, de ilusão. Amélia achava bonito não ter o que comer. Catirina, grávida e "à beira de um ataque de nervos", quer comer o que há de melhor. Seu desejo é muito refinado e não se contenta com pouco: ela só pensa em saborear a língua do boi mais querido do patrão do seu marido. Foi esse desejo, extremamente caprichoso, que, em muitos lugares do Brasil, desencadeou a saga da brincadeira do boi, aquela descrita por Luís da Câmara Cascudo como "o primeiro auto nacional na legitimidade temática e lírica e no poder assimilador, constante e poderoso".
Nos anos 90, Catirina mudou. Cansada de língua do boi, ela partiu para buscar diversão e alimento em outras brincadeiras. Muitos folcloristas não admitem esse seu capricho a mais. Em Parintins, por exemplo, Catirina é obrigada a comparecer ao bumbódromo apenas "para manter a tradição". Mas todo espectador percebe: ela participa de toda aquela festa pop-indígena sem a menor empolgação, como se tivesse contando os minutos para sair de cena. Na Zona da Mata pernambucana, região tida como local de origem do folguedo do boi, Catirina realizou seu desejo e trocou de brincadeira: quase não comparece mais às encenações bovinas e gasta todas suas energias brincando feito uma louca, sem função explícita, nos maracatus rurais.
Essa passagem de uma personagem entre duas brincadeiras não é uma novidade no chamado folclore brasileiro. Tudo circula: pedaços de melodias; versos; instrumentos musicais; detalhes de indumentária; trechos de encenações teatrais. Cada mestre de brincadeira, ou cada brincante, não atua como o espectador passivo de um tradição secular sobre a qual não tem nenhum controle e só pode "preservar". Seu papel é mais o de um DJ, ou de qualquer outro produtor musical cibernético, que faz suas próprias colagens a partir de determinado repertório: o gigantesco e multiforme banco de dados da biodiversidade brincante brasileira. Cada mestre recompõe os elementos de todas as outras brincadeiras. Não existe, portanto, problema de origem. Cada brincadeira é, nesse sentido de não estar presa a nenhuma cartilha, absolutamente original. Catirina pode brincar onde quiser, ela não é Amélia: ninguém vai conseguir prendê-la num só lugar.
Para ser mais preciso, e talvez compreensível: existe um "espaço da brincadeira" no Brasil. Esse espaço, como o ciberespaço, tem a estrutura de uma rede, uma rede interbrincadeiras. Cada brincadeira é um nó da rede, estando assim interligada a todas as outras brincadeiras. O erro de muito preservacionista bem-intencionado é achar que, para salvar um folguedo da ameaça de desaparecimento, é necessário isolá-lo do resto do mundo, mantendo à força sua "verdade" ou "autenticidade" (uma idéia avessa à mistura e à "circulação"). Como os militares estrategistas que inventaram a Internet perceberam, o que é preciso "preservar" é a rede, a capacidade de as informações circularem dentro da rede, e não um nó específico. Numa rede "saudável", a destruição de um nó não é ameaça para o todo: as informações encontram logo outros caminhos para fazer novas parcerias, novas ciberbrincadeiras.
Essa questão adquire contornos "sérios", e não apenas relativos aos caprichos de uma tal Catirina, quando sabemos que muitas vezes é nessas brincadeiras que são renegociadas algumas das características mais centrais daquilo que se convencionou chamar de "identidade nacional" ou "raízes do Brasil". Optar por pensar o "espaço da brincadeira" como uma rede é também fazer um esforço para encarar o problema da identidade em outros termos, fora da procura de "raízes".
Vale a pena -mesmo atacando um problema aparentemente tão distante no espaço e no tempo- citar o conceito de "etnogênese", assim como ele é empregado pelo arqueólogo Colin Renfrew em seu estudo sobre o aparecimento dos celtas na pré-história européia. Renfrew mostra como é perda de tempo procurar o local de origem dos celtas. Esse grupo étnico foi "inventado" em vários lugares ao mesmo tempo, por intermédio de uma intensa rede de comércio e trocas culturais. Povos protoceltas da Península Ibérica estavam em contato com povos protoceltas das ilhas britânicas, entre outros lugares. Um inventava uma coisa aqui e trocava sua invenção com coisas de lá. Todos só se tornaram celtas por estarem em contato, em rede. A identidade celta é uma invenção da rede e não de um lugar de origem específico.
Por isso também (dando um salto conceitual bastante arriscado) é perda de tempo buscar o boi original, o boi verdadeiro, o boi verdadeiramente brasileiro, a partir do qual novos bois seriam julgados adequados ou não, autênticos ou não. O boi foi (re)inventado numa rede de festas bovinas que conectava a floresta paraense com o litoral catarinense. E o boi continua a ser uma obra aberta. Por isso, combater o bumbódromo de Parintins como "deturpação", via "desfile de Carnaval", da verdadeira brincadeira é apostar na estagnação brincante, em nome de uma "autenticidade" que não interessa a quem brinca, a quem é o futuro do boi, ou -para soar dramático- a quem é o futuro da identidade "nacional".
É preciso, então, circular, fazer circular, inventar novas conexões. Essas conexões não estão presas necessariamente ao espaço "nacional". Obra aberta é para ser aberta mesmo. O elemento que fortalecerá determinada brincadeira pode ser proveniente da cultura pop americana, por exemplo. Como é o caso da Folia de Reis carioca, que ganhou novo fôlego por causa da popularidade dos bailes funk e da iconografia "heavy metal". A garotada quer ser palhaço de folia porque os grupos de palhaços se ligaram às galeras dos bailes, e nas suas "fardas" de palhaço acabaram entrando símbolos da Nike, Adidas, fotos retiradas da capa do último Iron Maiden e até uma folha estilizada de maconha, bem ao estilo da família Hemp.
Sacrilégio? Traição? Acho difícil que, a essa altura do campeonato, pela "identidade brasileira", alguém ainda coloque as coisas nesses termos. Até porque isso significaria esquecer as lições dos nossos melhores folcloristas. Câmara Cascudo (estamos, neste ano, comemorando o centenário de seu nascimento), elogiando a brincadeira do boi, afirma que "o processo de concatenação, de ajustamento dos vários temas (remix?), é uma assombrosa audácia técnica", audácia que está na base de uma "dinâmica de adaptação que é a justificativa de sua permanência funcional". Sendo assim, só resta conclamar para a salvação de todas as nossas festas: brincantes do meu Brasil, sejam cada vez mais audaciosos!


Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mistério do Samba", entre outros.



Texto Anterior: Cinema - Stela Senra: Um grão de vida
Próximo Texto: Conheça
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.