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Os vivos e os mortos
Desde 1998, quando foi fundada, até o ano passado, 1.041 pessoas morreram com a ajuda da dignitas, que tem entre seus membros 7 brasileiros; morte demora 30 minutos
Alessandro Della Bella - 23.nov.07/Associated Press/Keystone
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Prédio em Schwerzenbach, também na Suíça, onde suicídios assistidos são organizados pela entidade
LUCIANA COELHO
DE GENEBRA
Suco de maçã, pede
Craig Ewert, para
amenizar o gosto dos
barbitúricos que começa a tomar por um
canudinho. Suas mãos não se
movem mais, tolhidas pela
doença neurodegenerativa. Ele
precisa que alguém lhe sirva.
Mas sua voz é clara, e ele
consegue engolir a solução de
pentobarbital sódico.
O quarto de decoração simples, algo melancólica, e a paisagem tacanha nada lembram
o chalé à beira do lago escolhido pelo personagem de Rémy
Girard para morrer no delicado
"As Invasões Bárbaras", filme
de Denys Arcand (2003).
Deitado na cama enquanto a
mulher, Mary, acaricia seus
pés, Ewert escolheu estar ali.
Escolheu morrer e, ativista até
o minuto final, expor sua decisão ao diretor John Zaritsky.
Os últimos dias do professor
americano de 59 anos viraram
o documentário "The Suicide
Tourist" (O Turista Suicida),
sobre o suicídio assistido.
O ano em que Ewert morreu,
2006, foi o ano em que a associação suíça Dignitas mais trabalhou. Foram 195 suicídios
assistidos. Da fundação, em
1998, até o fim de 2009, 1.041
pessoas morreram com sua
ajuda. Seus membros são 5.698
em 61 países, 7 deles brasileiros
(nenhum até hoje morto ali).
A Suíça é um dos quatro países do mundo que permitem a
um doente terminal escolher a
hora de morrer (a Holanda e
Luxemburgo permitem também a eutanásia, e a Bélgica, assim como os Estados americanos de Oregon e Washington,
permite o suicídio assistido).
Temendo a pecha do "turismo suicida", o governo encaminhou dois projetos de lei ao debate público e ao Parlamento.
Um veta o suicídio assistido,
outro o restringe. A consulta
foi encerrada no último dia 1º,
sem apoio majoritário a nenhuma das medidas, conforme
informou à reportagem o Ministério da Justiça.
No segundo semestre, o Legislativo deve tomar uma decisão. Por ora, a lei determina
apenas que o auxílio ao suicida
não deve ser concedido por
"motivos egoístas" e que é preciso um parecer médico para
comprar as drogas fatais.
A maioria dos membros da
Dignitas é formada por estrangeiros porque, diz a associação,
são eles que mais necessitam
de ajuda, já que os suíços podem recorrer a seus médicos
particulares. Mas ser membro
não significa morrer ali um dia.
Muitos apenas apoiam a causa, defendendo a liberdade de
escolha e o conforto de ter seus
momentos finais antes que
uma doença congênita lhe roube a lucidez ou que suportar as
dores não seja mais possível.
Outros querem a opção em
aberto. Pagam para tanto 200
francos suíços (R$ 340) para se
inscrever, mais 80 de anualidade. O processo final custa cerca
de 4.000 francos (R$ 6.700),
mas o valor pode cair dependendo do bolso do paciente.
Comercialização
Um estudo divulgado pela
própria associação diz que, dos
candidatos que recebem luz
verde para morrer ali (cerca de
70% do total), só 13% levam a
decisão a cabo. Para muitos, diz
a organização, a simples perspectiva de poder decidir sobre
sua morte é suficiente.
Isso não livra a Dignitas de
ser acusada de comercializar a
morte. Na mídia suíça e na britânica -vêm do Reino Unido
14% dos que morreram ali, índice só menor que o de alemães-, a crítica é frequente.
A pressão piorou depois que,
em 2008, a Justiça suíça passou
a exigir um segundo parecer
médico para o suicídio e, em
um protesto contra o atraso no
processo, quatro pessoas morreram na associação inalando
gás hélio com uma máscara.
A experiência foi considerada malsucedida pela própria
entidade -a morte demorou
mais do que o previsto e os espasmos provocados pelo gás
nos suicidas levaram a Dignitas
a desaconselhar os acompanhantes a assistirem à cena.
Parte dos relatos da imprensa dão conta de que os associados usaram sacos plásticos para sufocar, mas a Dignitas nega.
De qualquer forma, o hélio
foi abolido até segunda ordem.
A overdose de barbitúricos é
ainda o método preferencial.
A repercussão levou a associação a ter problemas com
seus senhorios. O apartamento
no centro de Zurique usado nos
primeiros dez anos já havia sido trocado. Mais uma vez o final do contrato foi antecipado,
e a busca só acabou em uma casa azul na periferia, tão ampla
quanto frugal.
Na descrição de uma sócia, "é
muito tranquila" e mais inspiradora do que o barulhento
apartamento do centro, onde
as cadeiras de rodas custavam a
chegar. Na descrição do "Wall
Street Journal", a despeito do
jardim que aparece nas fotos,
fica numa região industrial, ao
lado de um bordel.
Citando o tratamento quase
sempre pejorativo, a Dignitas é
arredia com a imprensa. A Folha procurou a associação há
meses, e depois novamente por
três semanas, quando obteve
respostas pontuais.
Pequena organização
Durante esse período, mergulhou em sua documentação e
partiu atrás da história de pessoas que tenham morrido ali
(leia na página ao lado).
"A Dignitas é apenas uma organização minúscula com uma
carga pesada de trabalho. Nossa capacidade de atender às solicitações da mídia são muito limitadas", escreveu à repórter
Ludwig Minelli, o fundador da
associação e até hoje o condutor da maioria dos processos.
Dias antes, um funcionário
dissera por telefone que atender ao Brasil não era interesse
do grupo, que nos últimos meses limitou-se a dar entrevistas
ao "Journal" e ao "Monde".
Minelli, 77, é um advogado
que trabalhou com direitos humanos nos anos 70 e 80 e nos
90 serviu como conselheiro jurídico de dois diretores da Exit,
outra associação suíça que ajuda doentes terminais que queiram se matar. "Ambos tiveram
problemas com o conselho da
entidade, e, em ambos os casos,
a assembleia da Exit teve de tomar uma decisão", contou.
"Da primeira vez, nós ganhamos, da segunda, um membro
proeminente do grupo levou
300 simpatizantes para nos tirar de lá. Na noite seguinte, em
17 de maio de 1998, a Dignitas
tinha sido fundada. Um dia depois já funcionava, pois os
acompanhantes mais experientes da Exit vieram comigo."
Os "acompanhantes" são
pessoas com treinamento para
manusear a medicação e acompanhar o suicídio, mas não necessariamente médicos.
Em seu perfil no "Journal", a
adesão de Minelli à causa é atribuída ao fato de ter visto sua
avó definhar após pedir que um
médico a ajudasse a morrer.
A maioria das pessoas que
trabalha na Dignitas, segundo
afirmou um funcionário que
não quis se identificar, é voluntária. Mas nenhum número sobre o quadro é divulgado.
"Que diferença faz se são 10,
20, 30 pessoas? É idiota focar
nesse tipo de detalhe", afirmou
o funcionário. "O importante é
a filosofia por trás do trabalho
único que fazemos." Viver com
dignidade, morrer com dignidade, estampa o logo.
Todo suicídio é hoje monitorado por dois acompanhantes
profissionais. O processo, da visita inicial à morte, também
não ocorre mais num único dia.
Apesar das exceções em casos ditos urgentes, agora é necessária uma fase inicial de
conversas e checagem de histórico médico. Uma vez autorizado a morrer, o paciente espera
três ou quatro dias em novo
turno de exames e conversas.
Na ainda inédita versão em
inglês de seu estatuto, passada
à Folha, a organização prega
demover seus membros do suicídio. E a Dignitas proclama
ajudar numa morte eficaz, pois
suicídios frustrados têm alto
custo emocional e financeiro.
Descreve o processo de morte, que leva cerca de 30 minutos uma vez que as drogas são
ingeridas, e afirma ser ele indolor, devido à carga anestésica
dos barbitúricos.
Na preparação, o grupo recomenda a ingestão de 70 tabletes de metoclopramida para
evitar o vômito quando as drogas fatais caem no estômago.
Um dos pontos que o estatuto não responde, no entanto, é
se membros com a decisão resoluta de morrer ali, mas com
uma doença que não seja crônica, ainda são autorizados a
prosseguir -no início, eram.
O suicídio, em 2008, de um
jogador de rúgbi britânico de
23 anos, que ficara paraplégico
após um acidente em uma partida, levou à abertura de uma
investigação, ainda inconclusa.
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