São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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"John, temos de dizer adeus"


Inglesa conta como levou o irmão para se submeter ao suicídio assistido em Zurique, em 2003


DE GENEBRA

Lesley Close não gosta de voar. Mas, na manhã de 26 de maio de 2003, a assessora administrativa britânica subiu em um avião com o irmão, John, para a primeira viagem juntos ao exterior.
Era uma promessa que fizera quatro meses antes a seu herói de infância, que com nove anos a mais lhe apresentara à bicicleta e ao violão.
Naquela tarde ainda, em um apartamento no centro de Zurique na época usado pela associação Dignitas, John, um consultor de tecnologia da informação e ex-músico de 55 anos, morreria. No momento e da forma escolhidos por ele. Mas não no lugar que preferia.
"John estava aborrecido em ir para a Suíça. Ele achava que deveria poder ter ficado em casa", diz Lesley à Folha.
Ela acha que o irmão -que fora diagnosticado com uma doença neurológica em 2001 e vinha desde então assistindo à degeneração de seu sistema nervoso- teria morrido diante de um canto envidraçado de seu apartamento em Milton Keynes, cidade acanhada ao norte de Londres, "provavelmente durante o pôr do sol".
Não que John estivesse sozinho quando ergueu a mão para receber de Erica (sobrenome omitido), a acompanhante da Dignitas encarregada de ajudá-lo, a dose extra de barbitúricos numa seringa adaptada a seu tubo de alimentação.

Tarde adorável
Lesley estava sentada a seu lado, na cama. Peggie, a namorada que, entre idas e vindas, o conhecia havia 27 anos, também. Margaret, a irmã mais velha, a quem coubera tomar conta dos dois mais novos, observava no quarto. E Michael, o cunhado, completava a cena.
Dois dias antes, por sugestão de Michael, John dera uma festa em um pub da cidade. Não foi a tarde de sábado mais bonita.
"Mas foi uma tarde adorável", lembra Lesley. "John tinha medo de chorar e as pessoas terem a ideia errada" (um dos problemas que a doença traz é o descontrole sobre o choro ou o riso, explica ela).
"E ele chorou, na festa, mas ninguém entendeu errado."
Hoje uma ativista, ela diz que não foi fácil então, mas aceitou a decisão do irmão, em meados de janeiro de 2003.
John Close foi o sétimo britânico a morrer na Dignitas (até o fim de 2009, somavam 134), o que levou a família a hesitar sobre as consequências legais e a omitir a viagem ao máximo, embora não a intenção.
A Inglaterra veta o suicídio assistido e prevê 14 anos de prisão para quem ajuda alguém a se matar. Mas a Justiça tem sido leniente com quem vai ao exterior. Nenhum caso entre esses culminou na prisão.
E, em fevereiro, a Procuradoria demarcou com diretrizes uma espécie de território seguro para a prática, visando quem vai morrer fora do país, já que ter ajuda de médicos britânicos para isso é inviável.
Mas quando John tomou sua decisão, apenas dois britânicos haviam morrido na Dignitas. O primeiro foi Reg Crew, um ex-estivador de 74 anos de Liverpool cuja história, noticiada à exaustão naquele inverno, inspirou o consultor, acometido pela mesma doença.
Desde que soube da associação suíça até a morte por barbitúricos, foram menos de quatro meses. Do diagnóstico à decisão, quase dois anos. O quadro piorara rapidamente.
Quando tomou conhecimento da doença -um tipo de esclerose no qual os neurônios motores se degeneram sem causa determinada, atrofiando músculos e disparando espasmos e reflexos-, John tinha dificuldade de falar ao telefone.
"Em janeiro de 2003, ele já ficava direto na cadeira de rodas e não conseguia engolir, tinha de usar um tubo de alimentação. Não podia falar. Não fazia quase nada sozinho."
Foi aí que passou a ter uma enfermeira em tempo integral. "John sempre foi muito independente", diz Lesley.
A irmã ressalta que, por mais seguro que o ex-músico estivesse da decisão, os percalços não foram poucos. O mais difícil foi a esfera privada, com a mãe, de formação cristã, se colocando contra a ideia. "John era o único filho homem, o queridinho, e ela achava que suicídio é um pecado cuja punição é não ir para o céu", diz Lesley, que, como o irmão, não partilha de crença nenhuma.
Por problemas de saúde -a ex-enfermeira de guerra morreria algum tempo depois em um asilo-, ela não pôde acompanhar o filho à Suíça.

Barbitúricos e seringa
Os Close desembarcaram no aeroporto de Zurique no fim da manhã de segunda-feira e foram recebidos por Ludwig Minelli, fundador da Dignitas e até hoje o responsável direto pelos pacientes. A despeito das descrições controversas a seu respeito, Lesley o retrata como "a pessoa mais graciosa, encantadora, humana e misericordiosa" que já conheceu.
Seguiram os seis para a casa de Minelli, que fazia as vezes de escritório da Dignitas, onde o ativista suíço bombardeou a família de perguntas. "A essa altura ele já tinha lido o histórico médico, e queria ter certeza de que John e todos nós sabíamos o que estávamos fazendo."
Lesley entendia, e diz se sentir até hoje confortada. "Se eu estivesse sofrendo o que meu irmão estava sofrendo, desejaria que meu fim fosse sereno assim. Foi impressionante."
Cada morte na Dignitas é acompanhada por alguém com credenciais médicas, que cuida dos medicamentos. Foi por isso que Erica entrou no quarto no meio da tarde com os barbitúricos numa seringa.
"Ele ergueu a mão que funcionava, ávido. Peguei-a antes que alcançasse a seringa e disse, "John, temos de dizer adeus"."
A família havia falado tanto durante o dia sobre como a droga agiria rápido que Lesley temia não ter tempo de dizer nada. Àquela altura, John só se alimentava pelo tubo, e havia quebrado o jejum no voo apenas com um pouco de líquido. De estômago semivazio, ela achava que os barbitúricos teriam efeito quase imediato.
"Peguei a mão dele, e os demais falaram. Quando chegou a minha vez, eu queria dizer mais", relata. "Mas a única coisa que eu conseguia falar é que eu ia sentir tanto, tanto a falta dele. O último som que ele ouviu foi meu choro."
John Close foi cremado. Pela cremação, as drogas e os gastos de manutenção sua irmã calcula ter pago 1.200 (no câmbio de então, R$ 5.800) que tinha à mão -menos, calcula ela, do que a Dignitas gastara.
Lesley, Margaret, Michael e Peggy nunca foram processados por ajudá-lo a morrer. (LC)


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