São Paulo, domingo, 14 de abril de 2002

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Memórias "quente" e "fria" podem explicar como os dois regimes totalitários ainda hoje provocam indignação em níveis diferenciados

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A meia-vida do nazismo e do stalinismo

O historiador Robert Conquest disse certa vez que, apesar de condenar as atrocidades soviéticas, ele "sente" que o Holocausto nazista foi pior do que os crimes do stalinismo. Muitas pessoas concordam com ele, mesmo reconhecendo a natureza hedionda dos crimes comunistas: grandes setores da população relegados à fome por motivos políticos, limpeza étnica, dezenas de milhares de assassinatos judiciais, as mortes em massa na rede de campos de trabalho forçado. Outros observadores negam que os crimes nazistas tenham sido mais hediondos que os stalinistas e afirmam que o fato de o nazismo ter sido alvo de mais censura se deve à perspectiva peculiar dos intelectuais ocidentais, alguns dos quais eram marxistas de longa data e alguns dos quais eram judeus. Não pretendo discutir neste momento qual experiência foi, de fato, mais atroz. Em lugar disso, estou interessado na questão de saber qual experiência permaneceu mais indelevelmente impressa na memória, tanto a histórica quanto a pessoal. Procuro sugerir essa diferença com o uso dos termos "memória quente" e "memória fria".

Legado menos definido
Existem razões poderosas pelas quais a memória do nazismo seja considerada quente, comparada à que se tem do comunismo. O regime nacional-socialista precisou de uma guerra terrível para ser derrubado. Os Estados comunistas não iniciaram uma guerra mundial (apesar de terem sido coniventes com conflitos locais, como a Guerra da Coréia) e sobreviveram até chegar a uma fase mais branda, algo que Vaclav Havel [escritor e presidente da República Tcheca] qualificou como "pós-totalitarismo". Instalado na Hungria pelos soviéticos para acabar com a revolta de 1956, János Kádar pôde introduzir uma era mais suave, a do chamado "comunismo "gulash'". Era inevitável que essa fase do pós-totalitarismo deixasse um legado histórico menos definido. Os historiadores continuam a trazer à tona exemplos da crueldade comunista. No entanto, a cada vez que isso acontece, depois de um ou dois anos o ultraje moral esfria, pelo menos fora dos limites da Europa Oriental. Já o Holocausto, pelo contrário, vem ganhando cada vez mais significado como elemento da memória coletiva do Ocidente.


A pergunta que sempre ressurge em nossos museus do Holocausto é "será que eu teria tido a coragem de dizer "deixe-os tranquilos, o que vocês estão fazendo é maldade'?"


Discutimos a construção de memoriais e museus do Holocausto, mas raramente chegamos nem sequer a considerar a hipótese de erguer monumentos em memória das vítimas do stalinismo. Peregrinos e turistas visitam Auschwitz e Dachau, mas não Vorkuta ou Katyn. Professores universitários ainda podem pendurar retratos de Marx e Lênin em suas salas de trabalho, mas os de Hitler ou Himmler, não. A indignação anticomunista se manteve forte por alguns anos após 1989. A impressão que se tinha era que as contínuas revelações da cumplicidade de alguns indivíduos com a Stasi [polícia secreta da ex-Alemanha Oriental", o processo de purificação tcheco -que impediu determinados comunistas de ocupar cargos públicos na nova democracia tcheca- e as disputas eleitorais fossem preservar a memória do comunismo como força maligna.

Destinos distintos
Mas esses sentimentos de ultraje foram se enfraquecendo com o tempo. Os partidos políticos pós-comunistas, como o Partido Social-Democrata (SPD) alemão ou os partidos ditos "socialistas" da Polônia, Hungria e Romênia continuam sendo concorrentes tolerados, enquanto o Partido da Liberdade austríaco, de Jörg Haider, ou a Frente Nacional britânica ainda suscitam reações de horror de seus adversários. A pergunta permanece: por que o arquipélago Gulag não exerceu o mesmo impacto visceral que o Holocausto nazista? Uma explicação possível é que aqueles que sofreram às mãos do nazismo não são os mesmos que sofreram sob o comunismo. Os alemães ocuparam a Europa Ocidental e a Oriental, mas os soviéticos impuseram seu regime apenas à Rússia e à Europa do leste. Judeus e não-judeus viveram destinos distintos. Ademais, o alvo dos nazistas era uma comunidade de vítimas muito mais "orgânica". O Holocausto não foi uma simples limpeza étnica, não foi apenas o terror estocástico do stalinismo, o deslocamento insensato de tártaros da Criméia para o interior nem mesmo a morte pela fome de boa parte da população da Ucrânia. O terror stalinista era estocástico -ou seja, um atroz jogo de adivinhação-, porque ninguém podia prever quem seria o próximo a ser "desmascarado" e exposto como conspirador ou destruidor. Já o terror nazista golpeava suas vítimas de acordo com suas características perceptíveis, sobretudo segundo sua origem étnica já assinalada de longa data, no caso dos judeus. O terror estocástico possui meia-vida mais curta; o terror com alvo determinado deixa memórias quentes. Outro fator a ser levado em conta é o problema da cumplicidade. É claro que a cumplicidade também é um tema que faz parte da história do comunismo. Mas, no período do chamado pós-totalitarismo, esse tipo de cumplicidade já não custava às vítimas suas vidas. O passado nazista, por outro lado, leva todo o mundo a indagar: "Como eu teria agido?". A pergunta que sempre ressurge em nossos museus do Holocausto, nossas visitas a antigos campos de concentração, nossa contemplação da trilha ferroviária no Gruenewald Bahnhof, não é "será que eu teria sido nazista?", mas "será que eu teria tido a coragem de dizer àqueles que vinham fazer uma prisão "deixe-os tranquilos, o que vocês estão fazendo é maldade'?". Creio que a maioria de nós teme que nossa resposta teria sido "não". A memória quente é aquela que concerne a muitos de nós -não porque sejamos maus, mas porque nossa coragem é limitada.

Sentimento de vergonha
O passado comunista não envolveu um exame de consciência tão doloroso. Poucos ex-comunistas evidenciam grande sentimento de vergonha pelo que fizeram. Mas o caráter central e sempre presente do anti-semitismo levou ao surgimento de profundos sentimentos de vergonha. A memória do nazismo na Alemanha, creio eu, passou a construir-se basicamente em torno da consciência da cumplicidade, e deixou filhos e netos envergonhados, embora não culpados.
A vergonha também está presente nos Estados ex-comunistas. A amplamente difundida colaboração com a Stasi não poderia deixar de contribuir para a vergonha. Mas a vergonha diante de tal cumplicidade tem estado restrita àqueles que de fato colaboraram. Aqueles que não colaboraram não sentem a necessidade de confessar a si mesmos que poderiam facilmente tê-lo feito. Afinal, eles viveram sob o regime, foram testados e não se deixaram corromper. Assim, a "memória" do fascismo nos pede para pensarmos não sobre se teríamos sido fascistas, mas se teríamos sido antifascistas, e a resposta, com frequência, é um "não" que nos inquieta. O comunismo fez a seus circunstantes uma pergunta menos dolorosa, e a maioria deles tem menos vergonha com que conviver.

Charles S. Maier é diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade Harvard (EUA).
Tradução de Clara Allain.


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