São Paulo, domingo, 14 de abril de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

"Impressões de um Amador" reúne artigos sobre arte e cultura escritos por Gonzaga Duque entre 1882 e 1909

Uma crítica dissidente

Orna Levin
especial para a Folha

Toda reunião de textos dispersos, por princípio, estabelece uma ordenação de conjunto para uma produção que, na origem, nasceu como peça avulsa. Às vezes, o disperso vem na condição de matéria jornalística, concebido em sintonia com a imediatez das coisas cotidianas. Outras vezes, trata-se de textos que foram publicados em revistas de circulação restrita. Uma coletânea de avulsos, necessariamente, procede à organização das unidades textuais, criando uma cadeia de sentidos que expande as possibilidades dadas à leitura do fragmento isolado. E do conjunto surgem novas relações, seja dos textos entre si, seja destes com os espaços onde são veiculados.
É nesta preocupação de conservar a multiplicidade do jogo de sentidos entre o estado de dispersão dos textos e a totalidade resultante do conjunto, isto é, o livro, que reside, a meu ver, o ponto alto do trabalho de organização dos dispersos de crítica de Gonzaga Duque (1863-1911). Em "Impressões de um Amador", Vera Lins e Júlio Castañon Guimarães procuram manter os vestígios da fragmentação inicial dos inúmeros artigos de Gonzaga Duque publicados na imprensa, entre 1882 e 1909. Ao mesmo tempo, tomam o livro que os colige como um percurso de leitura de seu projeto crítico.
São matérias extraídas das colunas de arte e cultura que ele manteve em "Gazetinha", "A Semana", "Kosmos" e "Diario do Commercio", entre outros. A reconstituição da trajetória de intervenções constantes e contínuas, embora em veículos diferenciados, permite o conhecimento mais aprofundado de seu método crítico, com as hesitações, avanços e contradições que lhe são característicos.
Para garantir a reverberação dos escritos de circunstância, tanto a força dos ensaios de reflexão quanto o flagrante da crônica de época, os organizadores optaram pela disposição cronológica dos textos, aliada ao seu agrupamento segundo os periódicos em que tiveram estampa.
Assim, o leitor pode acompanhar a visita do jovem Gonzaga Duque aos ateliês e galerias e, mais adiante, vê-lo reivindicando o direito de comunicar suas impressões sobre a evolução dos estudos, como os de Firmino Monteiro, Antonio Parreiras e Castagneto.
Cético em relação ao meio burguês brasileiro, tacanho e mal preparado, ele defende a necessidade da crítica no estímulo ao aprimoramento dos artistas e à educação do público. Nota-se, a propósito, a descrição minuciosa das telas, os comentários sobre a escolha dos temas e do gênero, além dos juízos sobre o talento e a competência dos expositores.
Como crítico, Gonzaga Duque dedicou-se a refletir sobre a arte brasileira com base em critérios estéticos modernos, que valorizavam a liberdade criadora e a imaginação, simpático que era ao impressionismo de Manet (1832-1883). Tentou distanciar-se dos modelos acadêmicos e detectar os valores individuais, para os quais sempre reservava um elogio entusiástico.
A recepção de quadros como "Fuga para o Egito", de Almeida Jr., e "A Tarantela", de Bernardelli, atestam seu empenho em enaltecer os dissidentes pelo uso dos pincéis, da cor ou da luz. Aliás, o espírito contestador e o tom de protesto que atravessam muitos dos artigos é também a ênfase central de seu romance simbolista "Mocidade Morta" (1899), que tem como tema o mundo dos artistas insubmissos.
Neste espectro tão amplo de textos, nos quais Gonzaga Duque trata das artes plásticas, das artes decorativas, da arquitetura e da literatura -nela reverencia a originalidade excepcional de personalidades rebeldes, como Cruz e Souza e Lima Barreto-, encontramos as manifestações de uma voz independente, capaz de dar apoio aos estreantes, protestar contra a mentalidade vigente e questionar as políticas públicas. Sobretudo, uma voz que representa a sensibilidade tocada por uma época de agitações, que vale a pena conhecer.


Orna Messer Levin é professora da Universidade Estadual de Campinas e autora do livro "Figurações do Dândi" (ed. Unicamp).


Impressões de um Amador
385 págs., R$ 36,00
de Gonzaga Duque. Júlio Castañon Guimarães e Vera Lins (orgs.). Ed. UFMG (av. Antônio Carlos, 6.627, Biblioteca Central, sala 405, campus Pampulha, CEP 31270-901, Belo Horizonte, MG, tel. 0/xx/ 31/ 3499-4650).


Texto Anterior: Leia alguns verbetes
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.