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Ponto de fuga
Assassinos e mordomos
Jorge Coli
especial para a Folha
O criado de casaca, ao pôr a mesa, limpa um garfo de
prata com uma cuspidinha. Altman, americano de
Kansas City, não perdoa. Com humor, lança um olhar
sem piedade sobre a vida aristocrática de "Gosford
Park", cujo tradicionalismo resvala para o declínio. Essa
decadência social é compensada pelas energias que pulsam nos indivíduos, pelos diálogos cuja graça certeira
vem temperada com ácido sulfúrico. É como se parodiasse, de modo sutil, mas corrosivo, "Os Vestígios do
Dia" (1993), de James Ivory. Os dois filmes são parecidos. Na mansão de campo, inglesa, reúne-se, por alguns
dias, um grupo "de boa sociedade", secundado por
uma legião de servidores. Ivory, porém, possui uma
nostalgia proustiana pelos requintes de outros tempos.
Altman faz a mesquinharia sórdida surgir imediatamente, desde as primeiras cenas, quando a chuva encharca tudo. Maggy Smith, a velha condessa, tiraniza
uma jovem criada, encarnada por Kelly Macdonald,
novata, ingênua, que intui, no entanto, melhor que todos, as aparências e as verdades. A trama é um "whodunit" [quem matou", mistério à moda de Agatha Christie, onde cada qual tem razões de sobra para executar a
vítima. O cineasta faz dessas razões os núcleos mais infames de interesses, de abusos e de injustiças, permeados por dominação sexual.
Altman é fino demais para denunciar, para demonstrar uma tese. Não expõe nunca o "coletivo", a massa
coral: constrói um contraponto vigoroso, servindo-se
de múltiplos indivíduos ao tecer sua rede, que permite
descobrir, por trás, os conflitos de classe.
Genealogia - Altman evocou, sobre seu filme, a doentia relação entre patrões e empregados domésticos,
lembrando "O Criado" (1963), de Joseph Losey.
Haveria também duas obras-primas de Renoir e Buñuel, ambas inspiradas no romance "Le Journal d'une
Femme de Chambre", de Octave Mirbeau; sem contar,
no teatro, "Les Bonnes", de Genet. Altman, porém,
amarra esses laços em 25 individualidades diversas, que
interagem, sem protagonistas.
Franceses - "Gosford Park" lembra "A Regra do Jogo" (1939), de Jean Renoir. Há uma citação clara: a cena
da caça, insistindo no tiroteio que abate os animais. Renoir também examinava, com minúcia, as ambiguidades de indivíduos reagindo em grupo. Altman vai buscar, em Jacques Tati, a figura de seu inspetor desastrado, calcada sobre o personagem de M. Hulot.
Luminoso - "Entre um cinza e outro da tarde abafada/ dócil, o ar me cerca/ mas foge..." São menos de 30
poesias, breves, num livro fino. Momento frágil, em
suspenso; as palavras como que asfixiam, silenciosas,
dispondo-se sobre o branco do papel. "O Exagero do
Sol", de Luiza Franco Moreira, foi editado pela 7 Letras.
Ele encerra sensações corpóreas que contaminam o
leitor. São modos femininos de ser, é a poesia mais feminina possível, não por estereótipos ou militâncias,
mas porque a escrita brota de intuições carnais, embora
tranquilas e sem volúpia. Há um sentido orgânico, que
precede sentimentos e consciências, que precede o gesto de escrever. Os vegetais, as árvores, os bichos, águas,
atmosfera, "o algodão que os dias se acumulam", "o espaço imóvel e já não limitado", "os abismos que não se
domesticam": tudo isso deixou de ser metáfora. Tornou-se alimento primeiro de necessidades poéticas,
tanto mais imperiosas quanto mais calmas.
O tempo, nesse livro, é estático, quase imóvel, levado
apenas por lentidão secreta e cíclica. A grande beleza
contemplativa dos poemas, que não é mística ou metafísica, toca em mistérios adivinhados, em fragmentos
que a consciência não domina: "As fibras soltas/ esboçam/ esta fímbria, onde habito// esparsa". O amor não é
feito de pulsões e de angústias, ele se resolve em irradiação solar: "Enquanto teu coração me cerca como um
halo/ e resplandeço". A vida quotidiana é um pressuposto que inquieta e apequena. Mas desaparece quase,
vencida por uma plenitude de ser. Assim se termina
"Calma do lar": "O preço de chegar ao outro lado/ nunca penso".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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