São Paulo, domingo, 14 de abril de 2002

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Ponto de fuga

Assassinos e mordomos

Jorge Coli
especial para a Folha

O criado de casaca, ao pôr a mesa, limpa um garfo de prata com uma cuspidinha. Altman, americano de Kansas City, não perdoa. Com humor, lança um olhar sem piedade sobre a vida aristocrática de "Gosford Park", cujo tradicionalismo resvala para o declínio. Essa decadência social é compensada pelas energias que pulsam nos indivíduos, pelos diálogos cuja graça certeira vem temperada com ácido sulfúrico. É como se parodiasse, de modo sutil, mas corrosivo, "Os Vestígios do Dia" (1993), de James Ivory. Os dois filmes são parecidos. Na mansão de campo, inglesa, reúne-se, por alguns dias, um grupo "de boa sociedade", secundado por uma legião de servidores. Ivory, porém, possui uma nostalgia proustiana pelos requintes de outros tempos.
Altman faz a mesquinharia sórdida surgir imediatamente, desde as primeiras cenas, quando a chuva encharca tudo. Maggy Smith, a velha condessa, tiraniza uma jovem criada, encarnada por Kelly Macdonald, novata, ingênua, que intui, no entanto, melhor que todos, as aparências e as verdades. A trama é um "whodunit" [quem matou", mistério à moda de Agatha Christie, onde cada qual tem razões de sobra para executar a vítima. O cineasta faz dessas razões os núcleos mais infames de interesses, de abusos e de injustiças, permeados por dominação sexual.
Altman é fino demais para denunciar, para demonstrar uma tese. Não expõe nunca o "coletivo", a massa coral: constrói um contraponto vigoroso, servindo-se de múltiplos indivíduos ao tecer sua rede, que permite descobrir, por trás, os conflitos de classe.
Genealogia - Altman evocou, sobre seu filme, a doentia relação entre patrões e empregados domésticos, lembrando "O Criado" (1963), de Joseph Losey.
Haveria também duas obras-primas de Renoir e Buñuel, ambas inspiradas no romance "Le Journal d'une Femme de Chambre", de Octave Mirbeau; sem contar, no teatro, "Les Bonnes", de Genet. Altman, porém, amarra esses laços em 25 individualidades diversas, que interagem, sem protagonistas.
Franceses - "Gosford Park" lembra "A Regra do Jogo" (1939), de Jean Renoir. Há uma citação clara: a cena da caça, insistindo no tiroteio que abate os animais. Renoir também examinava, com minúcia, as ambiguidades de indivíduos reagindo em grupo. Altman vai buscar, em Jacques Tati, a figura de seu inspetor desastrado, calcada sobre o personagem de M. Hulot.
Luminoso - "Entre um cinza e outro da tarde abafada/ dócil, o ar me cerca/ mas foge..." São menos de 30 poesias, breves, num livro fino. Momento frágil, em suspenso; as palavras como que asfixiam, silenciosas, dispondo-se sobre o branco do papel. "O Exagero do Sol", de Luiza Franco Moreira, foi editado pela 7 Letras.
Ele encerra sensações corpóreas que contaminam o leitor. São modos femininos de ser, é a poesia mais feminina possível, não por estereótipos ou militâncias, mas porque a escrita brota de intuições carnais, embora tranquilas e sem volúpia. Há um sentido orgânico, que precede sentimentos e consciências, que precede o gesto de escrever. Os vegetais, as árvores, os bichos, águas, atmosfera, "o algodão que os dias se acumulam", "o espaço imóvel e já não limitado", "os abismos que não se domesticam": tudo isso deixou de ser metáfora. Tornou-se alimento primeiro de necessidades poéticas, tanto mais imperiosas quanto mais calmas.
O tempo, nesse livro, é estático, quase imóvel, levado apenas por lentidão secreta e cíclica. A grande beleza contemplativa dos poemas, que não é mística ou metafísica, toca em mistérios adivinhados, em fragmentos que a consciência não domina: "As fibras soltas/ esboçam/ esta fímbria, onde habito// esparsa". O amor não é feito de pulsões e de angústias, ele se resolve em irradiação solar: "Enquanto teu coração me cerca como um halo/ e resplandeço". A vida quotidiana é um pressuposto que inquieta e apequena. Mas desaparece quase, vencida por uma plenitude de ser. Assim se termina "Calma do lar": "O preço de chegar ao outro lado/ nunca penso".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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