São Paulo, domingo, 14 de maio de 2000


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Comemoração dos 500 anos ajudou a promover reedições de obras clássicas da história nacional
Redescobertas do Brasil

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

Por sorte, a comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil não tem sido palco somente para dramas televisivos anacrônicos e manifestações de aceso ufanismo. O mercado editorial, por exemplo, tem brindado os leitores com a edição e a reedição de uma série de trabalhos indispensáveis para entender a formação do país e de seu povo. É a essa linhagem de obras incontornáveis que pertencem dois livros lançados há pouco: "O Descobrimento do Brasil", de Capistrano de Abreu, e "A Escravidão", de Joaquim Nabuco.
O livro de Capistrano, um clássico da nossa historiografia, é uma coletânea de ensaios publicados entre 1883 e 1908. O volume veio a público pela primeira vez em 1929, sendo reeditado em 76. A atual edição traz uma biografia intelectual do historiador, assinada por Helio Viana (1953), e mantém a curta, mas esclarecedora, "nota liminar" de José Honório Rodrigues, presente na edição de 76.
Dos ensaios que compõem a coletânea, o mais extenso deles é o primeiro, intitulado "Descobrimento do Brasil" (1883). Esse estudo funciona como uma espécie de introdução aos grandes temas que reaparecerão, tratados com mais detalhes ou sob ângulos novos, nos textos seguintes: a tese da precedência espanhola no descobrimento do Brasil (Yañes Pinzon, em fevereiro de 1500) -tese já devidamente refutada pela historiografia brasileira e portuguesa, a viagem de Cabral, as expedições de exploração e defesa da costa brasileira, os povoamentos pioneiros e, por fim, as primeiras entradas pelo sertão.
As retificações e acréscimos começam já no segundo estudo (1900), que tem a viagem de Cabral como objeto de reflexão. Não se trata de uma descrição da aventura cabralina, mas sim de uma análise dos aspectos que lhe estão relacionados: a intencionalidade ou o acaso da descoberta do Brasil, a forma correta de escrever o nome do país (Brasil?, Brazil?), o local preciso da arribada da frota e ainda a autenticidade da carta de Pero Vaz de Caminha.
Capistrano, nesse estudo, abraça por completo (no ensaio de abertura a acolhida é mais ponderada) a hipótese da intencionalidade do descobrimento do Brasil, avançando, inclusive, uma série de argumentos em seu favor. O texto traz ainda uma análise de dois projetos marítimos que predominavam na época, quando o que estava em jogo era o caminho para a Índia: o português, que buscava a terra dos samorins tateando a costa africana (útil, mas antiquada, segundo Capistrano), e o espanhol, que o fazia navegando rumo a oeste.
Em "O Descobrimento do Brasil - Povoamento do Solo e Evolução Social" (1900), terceiro estudo da coletânea, o tema "retomado" e desenvolvido com mais pormenores é o das navegações anteriores à viagem de Cabral.
O historiador, didaticamente, descreve-nos o gradativo reconhecimento do mundo (África, América, Índia) levado a cabo pelos povos da Península Ibérica, para, em seguida, "conduzir-nos" ao descobrimento do Brasil e aos primeiros esforços de colonização. É esse mesmo cuidado em esmiuçar para o leitor os acontecimentos que preparam, rodeiam e sucedem o descobrimento que caracteriza o quarto estudo (1908) -onde Capistrano analisa a carta de Caminha e dá a conhecer um pouco sobre o seu autor- e o ensaio que encerra o volume, "História Pátria" (1905). Neste, lançando mão de variada bibliografia e farta documentação, o historiador descreve as pioneiras expedições de exploração, defesa e povoamento da costa. Esses ensaios, embora não tenham sido pensados com esse fim, acabam por se completar e por dar uma idéia bastante razoável da então inovadora perspectiva que construiu Capistrano do descobrimento do Brasil e da consolidação, ao longo do século 16, da presença portuguesa na nova terra. Nos dias que correm, o volume, instigante, didático, bem documentado, generoso em referências bibliográficas e escrito com clareza, continua a ser uma excelente obra de introdução ao estudo do primeiro século de existência da América Portuguesa.

Geração abolicionista
Igualmente sugestivo e indispensável é o opúsculo "A Escravidão", de Joaquim Nabuco, que acaba de ser reeditado pela Nova Fronteira. Escrito por Nabuco em 1870, depois de ter atuado como advogado de um negro acusado de duplo homicídio, esse texto, se ainda não tem o estatuto de clássico, como a coletânea de estudos de Capistrano, em breve poderá vir a tê-lo, pois é uma magistral síntese das várias posições contrárias à escravidão que atravessaram o século 19 brasileiro.
Em suas páginas, reencontramos por exemplo a voz de José Bonifácio, em 1824, advertindo os seus compatriotas de que a escrivão estava em via de criar um país com uma cisão social insuperável, cisão que somente a gradativa libertação dos cativos e a sua gradual integração na sociedade livre poderiam evitar. Reencontramos também as idéias de Torres Homem que, num ensaio para a famosa "Revista Niterói" (1936), alertava para o enorme atraso econômico e tecnológico que o cativeiro de negros trazia ao país.
Reencontramos ainda a voz de poetas como Odorico Mendes, José Bonifácio de Andrada (o Moço), Joaquim Norberto de Sousa e Silva, Trajano Galvão, Fagundes Varela e Castro Alves, os quais não se cansaram de pintar com cores fortes as crueldades que eram impingidas aos cativos. Mas reencontramos especialmente a voz de romancistas, higienistas e educadores, todos incansáveis em denunciar que a degradação moral do escravo, ocasionada pela violência do cativeiro, estava minando os alicerces da sociedade do branco.
Nabuco, bem entendido, não escreve um livro para pintar o "quadro do mal que o escravo faz de assentado propósito ou às vezes irrefletidamente ao senhor", como defende Joaquim Manuel de Macedo no seu romance "As Vítimas-Algozes". As posições do jovem advogado (21 anos) são muito menos rasteiras e parciais e muito mais democráticas e complexas do que as do então consolidado romancista. Ambos, porém, traduziram uma corrente de opinião muito forte de seu tempo, uma corrente que apregoava ser a escravidão a corruptora moral da sociedade branca.
A nós, leitores contemporâneos, parece-nos um tanto insólito que se argumente contra o cativeiro dos negros destacando os males que o flagelo causa às famílias brancas. Essa linha argumentativa, no entanto, pesou muito mais sobre a opinião pública oitocentista do que os muitos versos indignados do autor de "A Cachoeira de Paulo Afonso".



O Descobrimento do Brasil
210 págs., R$ 24,50 de Capistrano de Abreu. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/11/239-3677).

A Escravidão
132 págs., R$ 23,00 de Joaquim Nabuco. Ed. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/537-8770).



Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).


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