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Comemoração dos 500 anos ajudou a promover reedições de obras clássicas da história nacional
Redescobertas do Brasil
Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha
Por sorte, a comemoração dos 500
anos do descobrimento do Brasil
não tem sido palco somente para dramas
televisivos anacrônicos e manifestações
de aceso ufanismo. O mercado editorial,
por exemplo, tem brindado os leitores
com a edição e a reedição de uma série de
trabalhos indispensáveis para entender a
formação do país e de seu povo. É a essa
linhagem de obras incontornáveis que
pertencem dois livros lançados há pouco: "O Descobrimento do Brasil", de Capistrano de Abreu, e "A Escravidão", de
Joaquim Nabuco.
O livro de Capistrano, um clássico da
nossa historiografia, é uma coletânea de
ensaios publicados entre 1883 e 1908. O
volume veio a público pela primeira vez
em 1929, sendo reeditado em 76. A atual
edição traz uma biografia intelectual do
historiador, assinada por Helio Viana
(1953), e mantém a curta, mas esclarecedora, "nota liminar" de José Honório
Rodrigues, presente na edição de 76.
Dos ensaios que compõem a coletânea,
o mais extenso deles é o primeiro, intitulado "Descobrimento do Brasil" (1883).
Esse estudo funciona como uma espécie
de introdução aos grandes temas que
reaparecerão, tratados com mais detalhes ou sob ângulos novos, nos textos seguintes: a tese da precedência espanhola
no descobrimento do Brasil (Yañes Pinzon, em fevereiro de 1500) -tese já devidamente refutada pela historiografia
brasileira e portuguesa, a viagem de Cabral, as expedições de exploração e defesa da costa brasileira, os povoamentos
pioneiros e, por fim, as primeiras entradas pelo sertão.
As retificações e acréscimos começam
já no segundo estudo (1900), que tem a
viagem de Cabral como objeto de reflexão. Não se trata de uma descrição da
aventura cabralina, mas sim de uma análise dos aspectos que lhe estão relacionados: a intencionalidade ou o acaso da
descoberta do Brasil, a forma correta de
escrever o nome do país (Brasil?, Brazil?),
o local preciso da arribada da frota e ainda a autenticidade da carta de Pero Vaz
de Caminha.
Capistrano, nesse estudo, abraça por
completo (no ensaio de abertura a acolhida é mais ponderada) a hipótese da intencionalidade do descobrimento do
Brasil, avançando, inclusive, uma série
de argumentos em seu favor. O texto traz
ainda uma análise de dois projetos marítimos que predominavam na época,
quando o que estava em jogo era o caminho para a Índia: o português, que buscava a terra dos samorins tateando a costa africana (útil, mas antiquada, segundo
Capistrano), e o espanhol, que o fazia navegando rumo a oeste.
Em "O Descobrimento do Brasil - Povoamento do Solo e Evolução Social"
(1900), terceiro estudo da coletânea, o tema "retomado" e desenvolvido com
mais pormenores é o das navegações anteriores à viagem de Cabral.
O historiador, didaticamente, descreve-nos o gradativo reconhecimento do
mundo (África, América, Índia) levado a
cabo pelos povos da Península Ibérica,
para, em seguida, "conduzir-nos" ao
descobrimento do Brasil e aos primeiros
esforços de colonização. É esse mesmo
cuidado em esmiuçar para o leitor os
acontecimentos que preparam, rodeiam
e sucedem o descobrimento que caracteriza o quarto estudo (1908) -onde Capistrano analisa a carta de Caminha e dá
a conhecer um pouco sobre o seu autor- e o ensaio que encerra o volume,
"História Pátria" (1905). Neste, lançando
mão de variada bibliografia e farta documentação, o historiador descreve as pioneiras expedições de exploração, defesa e
povoamento da costa.
Esses ensaios, embora não tenham sido pensados com esse fim, acabam por
se completar e por dar uma idéia bastante razoável da então inovadora perspectiva que construiu Capistrano do descobrimento do Brasil e da consolidação, ao
longo do século 16, da presença portuguesa na nova terra. Nos dias que correm, o volume, instigante, didático, bem
documentado, generoso em referências
bibliográficas e escrito com clareza, continua a ser uma excelente obra de introdução ao estudo do primeiro século de
existência da América Portuguesa.
Geração abolicionista
Igualmente
sugestivo e indispensável é o opúsculo
"A Escravidão", de Joaquim Nabuco,
que acaba de ser reeditado pela Nova
Fronteira. Escrito por Nabuco em 1870,
depois de ter atuado como advogado de
um negro acusado de duplo homicídio,
esse texto, se ainda não tem o estatuto de
clássico, como a coletânea
de estudos de Capistrano,
em breve poderá vir a tê-lo, pois é uma magistral
síntese das várias posições
contrárias à escravidão
que atravessaram o século
19 brasileiro.
Em suas páginas, reencontramos por exemplo a
voz de José Bonifácio, em
1824, advertindo os seus
compatriotas de que a escrivão estava em via de
criar um país com uma cisão social insuperável, cisão que somente a gradativa libertação dos cativos e a sua gradual integração na sociedade livre poderiam evitar. Reencontramos também as idéias de
Torres Homem que, num ensaio para a
famosa "Revista Niterói" (1936), alertava
para o enorme atraso econômico e tecnológico que o cativeiro de negros trazia
ao país.
Reencontramos ainda a voz de poetas
como Odorico Mendes, José Bonifácio
de Andrada (o Moço), Joaquim Norberto de Sousa e Silva, Trajano Galvão, Fagundes Varela e Castro Alves, os quais
não se cansaram de pintar com cores fortes as crueldades que eram impingidas
aos cativos. Mas reencontramos especialmente a voz de romancistas, higienistas e educadores, todos incansáveis em
denunciar que a degradação moral do
escravo, ocasionada pela violência do cativeiro, estava minando os alicerces da
sociedade do branco.
Nabuco, bem entendido, não escreve
um livro para pintar o "quadro do mal
que o escravo faz de assentado propósito
ou às vezes irrefletidamente ao senhor",
como defende Joaquim Manuel de Macedo no seu romance "As Vítimas-Algozes". As posições do jovem advogado (21
anos) são muito menos rasteiras e parciais e muito mais democráticas e complexas do que as do então consolidado
romancista. Ambos, porém, traduziram
uma corrente de opinião muito forte de
seu tempo, uma corrente que apregoava
ser a escravidão a corruptora moral da
sociedade branca.
A nós, leitores contemporâneos, parece-nos um tanto insólito que se argumente contra o cativeiro dos negros destacando os males que o
flagelo causa às famílias
brancas. Essa linha argumentativa, no entanto,
pesou muito mais sobre a
opinião pública oitocentista do que os muitos versos indignados do autor
de "A Cachoeira de Paulo
Afonso".
O Descobrimento do Brasil
210 págs., R$ 24,50
de Capistrano de Abreu. Ed.
Martins Fontes (r. Conselheiro
Ramalho, 330, CEP 01325-000,
SP, tel. 0/xx/11/239-3677).
A Escravidão
132 págs., R$ 23,00
de Joaquim Nabuco. Ed. Nova
Fronteira (r. Bambina, 25, CEP
22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/537-8770).
Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro
Colonial" (José Olympio).
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