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+(s)ociedade
Sofrimento cordial
Para brasileiro, forma de sentir a dor e o luto prende-se menos ao conceito e mais à intuição
OSWALDO GIACOIA JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nascida do espanto,
da admiração genuína, a palavra do
filósofo tem o dom
de apreender, elaborar e formular o que caracteriza essencialmente um tempo
ou figura do mundo.
René Descartes [1596-1650],
o pai da modernidade filosófica, é um exemplo maior dessa
capacidade de colocar em relação o pensamento e a verdade.
Decepcionado com a aridez
das disputas escolásticas e confiante nos poderes da razão esclarecida pela lógica e pelas
matemáticas, ele vislumbrou
aquilo que pode ser considerado como o espírito dos tempos
modernos.
No célebre "Discurso do Método", Descartes considerava
que, ao invés "dessa filosofia
especulativa que se ensina nas
escolas, se pode encontrar uma
outra prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros,
dos céus e de todos os outros
corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos
os diversos misteres de nossos
artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são
próprios, e assim nos tornar
como que senhores e possuidores da natureza".
A profecia cartesiana, inspiradora da Ilustração, realizou-se plenamente nos séculos que
se seguiram àquele em que viveu o filósofo.
Efetivamente, a emancipação da razão humana em relação à ignorância e à superstição
teve o efeito de livrar-nos do
medo, de prover nossa segurança e bem-estar e de nos instalar no mundo na condição de
"senhores e possuidores da natureza".
A racionalidade lógica conseguiu desvendar os mais ocultos
mistérios e colocar a serviço da
humanidade as forças e recursos naturais.
Ilustração
Um pouco mais tarde, outro
ícone francês também trilharia
o mesmo caminho cartesiano
da Ilustração, estendendo o ímpeto da racionalidade técnico-científica a todos os domínios
da cultura e do espírito.
Com efeito, o positivista Augusto Comte ousou a racionalização da própria religião, transformando as tecnologias sociopolíticas em catecismo da humanidade, e a ciência política
em religião positivista, com
suas divindades, dogmas, sacerdócio e culto.
Assistimos há pouco, chocados, à tragédia do voo 447 da
Air France, em que os "elementos", em sua positividade bruta,
parecem ter se revoltado contra seus novos senhores e possuidores, com seus esquemas e
conceitos.
Temos, de um lado, um aparelho tecnológico de altíssima
complexidade e valor, uma aeronave inteligente, artefato no
qual se encontrava embutido
um volume extraordinário de
saber, capaz de realizar prodígios em termos de transporte e
segurança.
Queda
Esse avião parece ter sido
abatido em pleno voo, na noite
de 31 de maio.
Todo mundo acompanhou as
notícias, cada povo de acordo
com seu caráter próprio, a seu
modo, com o espírito que o particulariza. Interessante observar o contraste entre as reações
oficiais e populares dos franceses e dos brasileiros.
As autoridades francesas, a
Air France, as instâncias militares e civis competentes primaram pela sobriedade, pela
discrição, pela objetividade no
trato com os parentes das vítimas, no modo de elaboração
dos lutos privado e público.
Nomes foram resguardados,
a reação governamental foi
pronta e eficiente, o mesmo se
diga do aparato militar de resgate mobilizado tanto na França como no Brasil. Sem estardalhaço, sem sensacionalismo,
sem grandiloquência de gritos
e gestos, com eficácia e racionalidade cartesiana.
No Brasil, as formas de reação foram e estão sendo muito
diversas.
Nosso processamento do luto tem outras coordenadas, somos mais intuitivos e sentimentais, na felicidade como no
infortúnio.
Este último, entre nós, é metabolizado afetivamente com
paixão, somos ávidos de cenas e
palavras sensacionais, nosso
sofrimento tem a forma da ferida exposta, temos necessidade
de falar obsessivamente do que
aconteceu, de acompanhar passo a passo as movimentações,
repisamos incessantemente os
mesmos fatos, multiplicamos
hipóteses, somos pródigos em
elucubrações.
Ligação com o trágico
Antes de tudo, temos necessidade de nos mantermos ligados ao trágico acontecimento,
de alguma forma.
Somos solidários na dor, mas
temos que fazer muito barulho.
Afinal, somos o país do Carnaval, do samba e do futebol, da
produção espetacular, mesmo
do horrível.
Não nos condenemos por isso, pois essa forma de luto tem
a ver com nossa maneira de ser.
Percebemos aqui a diferença
entre uma valorização da razão
e do conceito, por um lado, e
uma valorização do elemento
intuitivo, sensível, por outro.
O homem intuitivo, quando
sofre, sofre com veemência,
com espalhafato.
Como afirmou certa vez
Nietzsche, o homem intuitivo,
no sofrimento, "é tão irracional
quanto na felicidade, grita alto
e nada o consola. Como é diferente, sob o mesmo infortúnio,
o homem estoico, instruído pela experiência e que se governa
com conceitos!".
"Ele, que de resto só procura
retidão, verdade, imunidade a
ilusões, proteção contra as tentações de fascinação, desempenha agora, na infelicidade, a
obra-prima do disfarce: não
traz um rosto humano, palpitante e móvel, mas como que
uma máscara com digno equilíbrio de traços, não grita e nem
sequer altera a voz; se uma boa
nuvem de chuva se derrama sobre ele, ele se envolve em seu
manto e parte a passos lentos,
debaixo dela."
Modos de sentir e pensar são
maneiras de ser. O fundamental é apenas uma autêntica solidariedade na dor, na vivência
do luto, na assimilação do choque, cuja violência brutal dilacera os horizontes de sentido
que criamos para nos curar das
feridas da existência.
OSWALDO GIACOIA JR. é professor de filosofia
na Universidade Estadual de Campinas (SP) e
autor do "Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea" (Publifolha).
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