São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998

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Os disfarces de um dândi


Leia entrevista com Saulo Pereira de Mello, organizador dos "Diários" e diretor do Arquivo Mário Peixoto


da Equipe de Articulistas

Saulo Pereira de Mello, que conviveu com Mário Peixoto por mais de 40 anos, é o principal guardião da obra do artista. Realizou nos anos 70, ao lado de Plínio Sussekind Rocha, a restauração de "Limite", que salvou o filme do desaparecimento, e publicou em 1979 o roteiro fotográfico do filme, plano a plano.
Além de ser a maior autoridade crítica sobre a obra do cineasta, Pereira de Mello dirige o Arquivo Mário Peixoto, no Rio, desde sua fundação, em 1996. O arquivo funciona numa sala da Videofilmes, produtora do cineasta Walter Salles, que mantém financeiramente a instituição.
Todo o material escrito e iconográfico deixado por Mário Peixoto está recolhido no arquivo, depois de ter sido confiado a Saulo Pereira de Mello pelo filho do cineasta.
A proposta do arquivo, além de manter esse acervo -livros, cartas, fotos etc.-, é ampliar a documentação por meio de uma "pesquisa ativa", seja gravando depoimentos de pessoas que tiveram alguma relação com Mário Peixoto, seja recolhendo material disperso pelo Brasil e pelo exterior.
Além disso, o Arquivo Mário Peixoto vem publicando aos poucos a obra do cineasta. Já lançou, em parceria com a editora Sette Letras, o roteiro decupado de "Limite", o volume de poemas "Mundéu" e a primeira versão (de 1933) do romance "O Inútil de Cada Um".
As próximas publicações incluem os dois roteiros citados acima, o livro "Poemas de Permeio com o Mar", a fortuna crítica de "Limite", um volume de contos e, num tomo só, 15 roteiros e argumentos escritos por Peixoto.
Pereira de Mello, que comanda tudo isso ao lado da mulher, Ayla Pereira de Mello (também presente à entrevista), recebeu a Folha no arquivo, no alto do outeiro da Glória, e falou com entusiasmo durante duas horas sobre Mário Peixoto, "Limite", cinema, literatura e amizade.
Lamentou o interesse superficial dos "curiosos", pediu para não ser fotografado e mostrou-se mo desto ao comentar sua parceria com Mário Peixoto no roteiro de "Outono ou o Jardim Petrificado": "Foi um roteiro escrito a duas mãos e duas patas. As mãos eram do Mário e as patas eram minhas".
Ao final da entrevista, Pereira de Mello fez questão de dizer que o arquivo "é fruto da generosidade de um moço chamado Walter Salles". Segundo ele, o diretor de "Central do Brasil" ajudou Mário Peixoto em seus últimos anos de vida, não apenas financeiramente (pagou-lhe enfermeiras, médicos e remédios), mas também com seu apoio moral e afetivo.

Folha - O que de mais importante o "Diário" de 1927 revela sobre Mário Peixoto?
Saulo Pereira de Mello -
Acho que é o documento mais importante que existe sobre Mário, porque dá todos os parâmetros para entender, principalmente, o romancista, que não é tão conhecido. Mas também dá uma boa indicação do que veio a ser "Limite".
O Mário vivia dizendo que o tempo não existe, que ele tinha ódio do tempo, que o tempo era destruidor. Ao longo do diário você percebe esse horror ao fluir do tempo. A perspectiva do que virá aparece sempre no diário como algo assustador.
O Mário descobriu na Inglaterra que o mundo é uma coisa ruim, da qual ele precisava se defender. Uma das maneiras de ele se defender era se disfarçar, se esconder, usar o mimetismo, que aliás é algo que ele vai transformar em categoria artística.
Folha - Viria daí o seu dandismo?
Mello -
O dandismo não tanto, mas sim aquele seu vezo de se disfarçar. O Mário era como o "Predador" do Schwarzenegger, aquele ser que você nunca vê direito. Ou como o índio apache, que apaga as próprias trilhas. Isso é uma forma de defesa.
Ele inventou milhares de histórias sobre ele mesmo. Isso é comum nos artistas, mas nele é muito marcante. E esse "Diário" da Inglaterra não tem isso. Ele está naquela fase de amadurecimento, se aprontando como homem, e põe tudo ali.
É curioso encontrar na segunda versão de "O Inútil de Cada Um", que é uma quase-memória, ou uma paramemória, todas as categorias de pensamento que aparecem no "Diário", só que mais elaboradas e transformadas.
Essas categorias vêm da relação dele com os colegas, com os professores, e da reflexão dele sobre tudo isso. Ele diz o que está se passando com clareza. É como uma fase pré-mimetismo, que dá uma chave para tudo.
Folha - O horror de Mário Peixoto ao fluir do tempo reapareceria, segundo o sr., em "Limite" e em "O Inútil de Cada Um". Que outros elementos da obra dele já podem ser detectados no "Diário"?
Mello -
O que o próprio título do filme diz: a consciência absoluta e aterrorizante da limitação humana que esse fluir do tempo impõe. Isso é menos visível em "Limite" do que no "Inútil". "Limite" é um resultado do "Diário" da Inglaterra, quando ele diz: "O mundo é ruim, é limitador, e o futuro é terrível". Essa idéia da limitação está toda no "Diário". Em "Limite" ele exorciza aquele horror que trouxe da Inglaterra.
Agora, o romance tem uma história curiosa. Ele escreveu a primeira versão, a pequena, em 1934. Essa versão está toda incluída na nova, que ele publicou no fim da vida. Ele não mudou nada, só inseriu outras coisas e mudou o estilo. O curioso é que a versão de 1934 tem uma estrutura parecida com a de "Limite". Não é propriamente um romance narrativo. É uma constelação de personagens que se alteram num tempo literário, não linear.
Folha - Essa primeira versão tem um cunho bem modernista, que ele alterou muito na segunda versão. O segundo é mais memorialístico, tem frases mais longas...
Mello -
Ele procura frases mais proustianas. Se o "Limite" é uma constatação do horror do tempo, o romance é uma tentativa de abolir o tempo. Há uma mistura dos tempos. De repente você se sente num mundo sem tempo, sem espaço, meio amorfo. Ele tenta fazer um eterno presente.
Folha - Do ponto de vista da formação estética, ou da formação do gosto, o que o "Diário" revela?
Mello -
Os filmes que fazem mais impressão sobre ele são dois filmes alemães: "Sonho de Valsa" e, principalmente, "Metropolis". Ele viu "Metropolis" em Eastbourne, com lugar marcado. Ele sempre revelou para nós, amigos, uma grande admiração pelo cinema alemão.
Folha - Isso contraria um pouco os críticos que viam no "Limite" uma grande influência das vanguardas francesas...
Mello -
Exato. E Mário dizia outra coisa: que morria de rir com Buñuel. Embora comparem o filme dele aos primeiros do Buñuel ("Um Cão Andaluz" e "L'Age D'Or"), ele era até sarcástico, achava gozado aquele burro em cima do piano, aquela mão no chão. Ele dizia: "Isso não é cinema, meu filho".
Ele tinha uma grande admiração pelo "Caligari", e por todo o cine ma alemão de um modo geral. Uma vez ele me disse: "O maior cinema que já existiu foi o cinema alemão silencioso". E você sente isso em "Limite", principalmente no uso do movimento de máquina. O movimento de máquina alemão pretendia transmitir o interior do personagem, dispensando o uso de letreiros. O Murnau, principalmente, de quem ele gostava muito.
A maioria dos textos sobre "Limite" publicados entre 1930 e 32 destacavam duas coisas: que os atores trabalhavam sem maquilagem e que o filme não tinha letreiros. O Octavio de Faria tinha uma teoria, que aparece no "Fan" e no Chaplin Club, que era a teoria da continuidade absoluta, que dizia que o filme deveria ser feito com o menor número de cortes possível, de preferência com um "take" só, e sem nenhum letreiro. Isso em 1928, 1929.
Folha - Isso era muito avançado para a época...
Mello -
Pois é. Se eu tivesse tempo, paciência e idade, gostaria de mostrar que toda a teoria cinematográfica do Bazin está prevista e feita por Octavio de Faria. Não é à toa que eram dois católicos. Tudo o que o Octavio diz, diz até melhor -mais resumidamente e com mais força- que o André Bazin. Octavio de Faria foi o primeiro grande "film scholar" brasileiro.
Folha - Mário Peixoto mitificava sua própria vida, virava quase um personagem de si mesmo. Isso seria uma forma de se defender do mundo, que ele sentia como algo hostil?
Mello -
Era, certamente, um movimento de defesa. O "Diário" da Inglaterra não mostra essa mitificação. O que ele mostra é a chegada de um menino de 19 anos, criado num ambiente grande-burguês, rico e luxuoso, que de repen te se vê sozinho num colégio inglês. Os colégios ingleses não são famosos pelo conforto, e nem pela brandura. Eram o lugar onde eram endurecidos os gestores do império.
Aquilo chocou Mário Peixoto, e ele se sentiu perdido. Ele tinha perdido a mãe muito cedo, aos 14 anos. A mãe foi substituída por uma avó riquíssima e boníssima, que o adorava e fazia suas vontades. E de repente ele se vê sozinho, sem vovó, sem as primas, sem a avenida Rio Branco nos domingos, sem Petrópolis, sem a fazenda de Volta Redonda, num quartinho inglês frio e úmido. Ele diz: "Esta mos numa terra de homens ou nu ma terra de sapos?". Folha - Sem essa experiência inglesa, "Limite" não seria possível?
Mello -
É arriscado dizer isso. O aparecimento de "Limite" não depende só do Mário Peixoto. Acho que dependia da própria evolução do cinema, que pedia um filme como aquele. Mas certamente a passagem dele pela Inglaterra fez com que ele se investisse desse "espírito hegeliano" que o tornou o homem indicado para atender àquela demanda histórica.
Folha - O sr. faz referência a umas "cartas terríveis" que Mário Peixoto recebeu das primas em 25 de maio de 1927, mas ele não chega a dizer o assunto dessas cartas. Elas existem ainda? De que tratam essas cartas?
Mello -
Essas cartas não existem mais. Pode-se supor o assunto de que tratavam. Ele ganhou da avó uma Kodak Baby Brown e andou tirando umas fotos. Algumas dessas fotos causaram um problema aqui no Brasil, na família de Mário Peixoto. Essa foto aqui, por exem plo (Mário Peixoto de mãos dadas com um colega de escola), é uma brincadeira que, para uma família extremamente católica, de extração burguesa e austera, parecia uma brincadeira de péssimo gosto, de "falta de linha".
Folha - Entre as revelações do "Diário", ainda que muito indiretas e discretas, estaria a sua dificuldade em lidar com a própria sexualidade?
Mello -
Acho que isso não é coisa que cavalheiros comentem. Está muito em moda isso, mas eu vou ter que ser franco com você. Eu não gostaria que um homem que foi meu amigo por mais de 40 anos e que respeito enormemente como artista e como pessoa cortês...
Acho que esse porão é da conta dele. Há indicações, sim, de que uma das descobertas que ele poderia ter feito na Inglaterra teria sido a da própria sexualidade. No próprio "Diário" parece que ele é um pouco inconsciente disso.
Mas acho que isso nada tem a ver com a coisa mais importante dele, que é o filme. Embora isso apareça razoavelmente bem no segundo "Inútil".
Folha - O fato de realizar muito jovem um filme extraordinário como "Limite" teve um efeito fatal na personalidade de Mário Peixoto? Ele teria se tornado prisioneiro dessa obra genial?
Mello -
É uma pergunta difícil e pertinente. Antes de interpretar, eu vou dar uma série de fatos. É muito estranho, surpreendente até, que um rapaz de 22 anos tenha feito aquilo. Se você coloca "Limite" ao lado dos outros filmes brasileiros da época, é uma coisa arrasadora.
Houve um certo momento em que se duvidava de que tivesse sido ele o autor do filme. Diziam: "Foi o Edgar Brasil, foi o Octavio de Faria, foi o Ruy Costa, foi o Fulano, foi o Sicrano...". Mas aí a gente foi atrás dessas pessoas e elas disseram: "Não, era ele que fazia mesmo. Fazia até o quadro, os atores eram submissos a ele, o Edgar Brasil era sumisso a ele". Aquele menino de 22 anos se impôs, com muita delicadeza, cortesia, paciência, à equipe toda, e o filme saiu aquilo.
O que a gente fica se perguntando é o seguinte: será que não era o "espírito" do cinema que precisava de um filme que encerrasse o cinema silencioso, que fosse a sua súmula? E será que esse filme acabou sendo feito no Brasil porque aqui não havia firma produtora, não havia censura de Estado (como na ex-União Soviética), não havia a censura do "box office" dos Estados Unidos, nem as pressões psicanalíticas do expressionismo alemão? Porque o Mário Peixoto fez o filme como ele quis. É o verdadeiro filme de autor.
Folha - Quem não tem nada, não tem nada a perder.
Mello -
- Exato. É numa sociedade pré-industrial que a expressão do autor fica inteiramente livre. Ele tinha uma base técnica suficiente e uma liberdade que vinha do fato de que ninguém queria saber daquilo. Um segundo fato sobre "Limite" é a relação que Mário Peixoto manteve com o filme ao longo da vida. Essa relação tem duas vertentes. Primeira: o Mário guardava tudo, até alfinete, relacionado ao filme. Ele cuidou do filme. Se o filme existe hoje, é por causa desse zelo.
A outra relação de Mário Peixoto com "Limite" é quase oposta. Uma vez, diante de mim e do Plínio Sussekind Rocha, ele disse: "Cinema nunca foi o meu negócio. Meu negócio é literatura".
Você pode pensar que isso era gênero, mas não era não. "Limite" foi aquela constatação do horror, mas o que ele queria mesmo era resolver o horror, e isso ele fez na literatura.
Ele dizia principalmente que "Limite" ocultava, empanava, impedia o desenvolvimento literário dele. De onde você pode concluir que, de fato, talvez ele quisesse ser escritor.
Mas o filme que fez mal a ele não foi "Limite". Foi "Onde a Terra Acaba". Porque foi um filme diferente de "Limite", foi um filme narrativo, nos moldes americanos, que ele começou em 1931 e não acabou, e que teve a produção mais cara do cinema brasileiro da época.
Folha - E por que não acabou?
Mello -
Eles brigaram. A Carmen Santos (produtora e atriz) não era mole. E ele também não. Foi um choque.
Folha - O que sobreviveu do filme?
Mello -
Tem um copião solto de mais ou menos dez minutos, muitas fotos, um "scrap book" e o "scenario" (roteiro). Uma das coisas que nós vamos publicar é esse roteiro, junto com a história de tudo o que aconteceu na produção e uma entrevista que fiz com Mário Peixoto sobre o filme.
Folha - Essa narrativa mais tradicional de "Onde a Terra Acaba" se ria um passo atrás em relação a "Limite"?
Mello -
Acho que não, embora eu respeite muito mais "Limite". "Onde a Terra Acaba" seria uma tentativa de fazer um cine-romance, enquanto o "Limite" era um cinepoema, em sua estrutura. Era um filme não-narrativo sem ser de "avant-garde". Foi a única peça de cinema desse tipo que apareceu no mundo. Um filme não-narrativo que não é composto por imagens aleatoriamente organizadas. Ele tem um princípio construtivo sólido, com um tema fortemente desenvolvido e reiterado. Pode ser comparado a uma peça musical, nesse aspecto, ou a um poema.
Folha - Há uma falsa crítica de Ei senstein sobre "Limite", que teria sido forjada por Mário Peixoto. Ele queria aumentar ainda mais o mito em torno do filme?
Mello -
Mário Peixoto forjou mesmo essa crítica, mas penso que a explicação não é uma suposta intenção de mitificar ainda mais o filme. A crítica que ele inventou do Eisenstein é parte da insegurança dele, do medo. Ele nunca teve certeza de que "Limite" era realmente um grande filme.
Ele suspeitava que sim porque o Vinícius de Morais dizia que era, o Octavio de Faria também, Plínio Sussekind da Rocha também. Mas ele não tinha certeza disso, porque a maioria das pessoas virava a cara para o filme. Porque não entendiam, claro.
Folha - Então ele forjou a crítica do Eisenstein para convencer a si mesmo de que o filme era genial?
Mello -
Para ver se dava, de alguma forma, um impulso ao filme, para ver se as pessoas prestavam mais atenção a ele. É algo muito mais doloroso do que uma simples mitificação. A maioria das críticas que saíram na imprensa quando "Limite" foi exibido foi feita sob a orientação dele. Estudei as críticas e constatei isso.
Claro que isso foi absolutamente ineficaz em termos de atrair público ou conseguir um distribuidor para o filme. O cara da Paramount mandou parar a projeção no pri meiro rolo.
Folha - O filme não teve exibição comercial?
Mello -
Não, nunca. Só existiram duas sessões: uma em 17 de maio de 31 e outra no começo de 32, patrocinada por uma revista meio sofisticada da época, chamada "Bazar". Depois, houve exibições ocasionais. Em 1942, quando Orson Welles esteve aqui, o Vinícius exibiu o filme para ele.
Folha - Qual foi a reação do Orson Welles?
Mello -
Perguntei isso ao Vinícius. Ele disse que o Orson Welles tinha dito: "Gosh! Marvellous!". Eu suspeito que o Orson Welles estava bêbado e dormiu. Você sabe que ele vivia de porre. Mas não existe uma opinião oficial sua sobre "Limite".


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