São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998

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A Torre

1
O que farei com esta absurdidade, Esta caricatura, coração? Decrepitude atada à minha idade Como à cauda de um cão? Jamais terei sentido Tão grande, tão apaixonada, tão incrível A fantasia, nem houve olho e ouvido Que mais quisessem o impossível - Não, nem quando menino, com inseto e anzol, Ou mais humilde verme, no alto de Ben Bulben, Eu tinha a desfrutar todo um dia de sol. Devo mandar às favas minha Musa, Ter Platão ou Plotino por amigo, Até que fantasia, olho e ouvido, Cedam à mente e virem escalpelo Da idéia abstrata; ou ser escarnecido Por uma lata presa ao tornozelo.

2
Passo pelas muralhas e reconto Os alicerces de uma casa e o ponto Onde a árvore, como um dedo sujo, sai do chão, E solto a imaginação. À luz do dia declinante apelo às Memórias e retinas De antigas árvores ou ruínas - Que eu gostaria de inquirir a todas elas.

Atrás do monte, Mrs. Frech viveu, e um dia - Todos os castiçais e candeias que havia A iluminar o mogno escuro e o vinho, Um servidor que se fazia de adivinho Dos caprichos da dama do condado Com as tesouras do jardim cortou as Orelhas de um granjeiro ousado E as trouxe em prato recoberto, como broas.

Na juventude ouvi, mais de uma vez, a Canção sobre uma bela camponesa Que vivia num áspero recanto. Louvavam sua tez e seu encanto Lembrando que quando ela aparecia, Ébrios da própria fantasia, Os granjeiros juntavam-se na praça, Tanto a canção gabava a sua graça.

Alguns, enlouquecidos com o canto Ou com os brindes que a louvavam tanto, Ergueram-se da mesa, decididos A testar a miragem e os sentidos. Mas um trocou a lua da poesia Pela luz veraz do dia - A música mexeu com o seu prumo, No pântano de Cloone se foi, sem rumo.

Estranho, esta canção a fez um cego, Mas, quanto mais eu penso, mais eu nego Que seja estranho; a tragédia, considero, Teve início com outro cego, Homero, E Helena, que traiu a nós, viventes. Ah, que da luz de sol e lua Um único raio flua, Pois se eu vencer, farei mentes dementes.

E eu mesmo criei Hanrahan E o carreguei, bêbado ou não, pela manhã, De um dos muitos chalés da vizinhança. Às ordens de um ancião, como criança, Trombou, tombou, tateou, pra lá, pra cá, Joelhos rotos por compensação E o horrível esplendor de uma paixão. Coisas que imaginei há vinte anos já.

A turma carteava num canteiro; E quando foi a vez do trapaceiro, Ele tratou as cartas com tal arte Que fez das suas um carteado à parte: Cães de caça tomaram o lugar Das cartas, e uma foi a lebre. Hanrahan, em sua febre, Seguiu-lhes o ladrido até chegar...

Até onde chegou não sei -já basta. Devo lembrar alguém de alma tão gasta Que nem a orelha do inimigo, exposta, Nem a canção faria mais disposta. Uma figura que virou legenda E à qual não sobrou um só vizinho Para contar-lhe as pedras do caminho - Proprietário falido da vivenda.

Antes da perdição, por muitos anos, Guerreiros rudes, botas couraçadas, Mãos de ferro, subiram as escadas Estreitas, e alguns deles que os arcanos Da Memória preservam, imortais, Com altos gritos, vista acesa, Vêm-nos roubar o sono e a paz E os seus dados ressoam sobre a mesa.

Invoco a todos, venha toda a gente: O velho desmontado ou indigente; O cego e errante arauto da beleza; Hanrahan, que um jogral tomou por presa Pelos campos sem Deus; e essa mulher Que orelhas, mais que ouvidos, quer; O afogado de amor por uma loa Das Musas más na lama da lagoa.

Os velhos -ricos, pobres, homens ou mulheres-, Que andaram por aqui, passaram esta porta, Em público ou privado, acaso deblateram Como eu contra a velhice, agora? Mas encontrei uma resposta nesse clã Tão impaciente para ir embora; Pois vão; mas deixem-me Hanrahan, Que eu necessito de sua múltipla memória.

Velho fauno, um amor em cada esquina Extrai de tua mente toda a mina, Tudo o que no sepulcro descobriste, Pois sabes computar cada loucura, Cada cega imersão, cada imprevisto Sonho de ser que um suave olhar atrai, Ou um toque ou um ai, Ao labirinto de outra criatura.

Acaso a fantasia é compelida À mulher ganha ou à mulher perdida? Se à que perdeste, admite o teu esbulho: Por mera covardia ou por orgulho, Pseudoconsciência ou sutileza vaga, Refugiste de um grande labirinto, E se a memória volve o sol é extinto Por um eclipse e o dia já se apaga.

3
É tempo do meu testamento. Eu lego aos que ficam de pé E vão contra a corrente até O alto da fonte e cedo Lançam o anzol, sem medo Da pedra gotejante. Lego O orgulho que carrego: O orgulho dos que não têm fé Na Causa ou no Estado, Nem nos tiranos que escarravam Nem nos escravos escarrados. De gente como os Burke e Grattan Que dá -recusando a recusa, Orgulho como o da manhã Quando a luz jorra profusa, Ou o da cornucópia cheia Ou da chuva que aflora Quando o rio é só areia, Ou o do cisne- na hora Em que ele fixa o olhar Num reflexo da aurora Escolhendo um recanto Do lago para alçar O seu último canto. Meu credo aqui proclamo. Eu zombo de Plotino E a Platão eu exclamo: Morte e vida eram nada Até o homem fazê-las E lhes dar um destino Com as armas e a carga Da sua alma amarga. Sim, sol e lua e estrelas. Proclamo, sem receio, Que, mortos, vamos retornar Para criar o devaneio De um Paraíso translunar.

Eu preparei a minha meta Com a culta arte italiana, Pedras da Grécia soberana, Imagens de poeta, Palavras de mulher, Amor e desengano, Tudo o que o homem quer Para o seu sobre-humano Sonho-espelho de ser.

No oco do tronco as gralhas Gritam juntando a rama. Galho após galho, empilham. A ave-mãe com carinho Ali fará sua cama Para aquecer o ninho.

Eu lego o orgulho e a fé Aos que ficam de pé, Galgam o alto do monte Para lançar o anzol Na linha do horizonte. Desse metal fui feito Até ser alquebrado Por este ofício estreito.

Preparo a alma, agora, Votando-a ao estudo Numa douta demora, Até o fim de tudo. Sangue que deteriora, Desgaste da memória, Estancamento mudo. Ou, ainda pior, A morte dos que outrora Foram grandes, do olhar Que fez sustar o alento - Como as nuvens no ar Quando o sol cai e um lento Grito de ave ressoa Na sombra que se escoa.

WILLIAM BUTLER YEATS

Tradução de AUGUSTO DE CAMPOS



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