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MEMÓRIA
Costa era uma unanimidade
CARLOS LEMOS
especial para a Folha
Sempre houve uma unanimidade entre os arquitetos no momento de se eleger alguém de grande
relevância entre eles: Lucio Costa
surgia e surge sem contestações.
Nome envolto em legenda, quase mágico, guardado no subconsciente de todos como de prestígio
incontestável, até por jovens mal
vividos, que, respeitosamente,
emitem o parecer sobre um grande arquiteto: Lucio Costa.
Às vezes, nem sabem o que ele
fez de importante, além de Brasília. O nome, no entanto, vem na
ponta da língua, numa lição
aprendida com reverência.
Sabemos da hegemonia da arquitetura carioca dos anos 30 aos
50, anos difíceis, permeados pela
Segunda Guerra, quando as obras
em geral foram prejudicadas pela
cessação das importações de material de construção e praticamente tudo teve que ser improvisado
aqui, num país que nem indústria
siderúrgica possuía.
E nesse clima de carências materiais é que surge a modernidade na
arquitetura entre nós -foi ela a
última das artes a romper com o
passado acadêmico, uns 15 anos
após a Semana de Arte Moderna.
Rompimento deflagrado por Lucio na cidade atrelada ao academicismo eclético ensinado pela Escola Nacional de Belas Artes.
A partir dos meados da década
de 30, a arquitetura moderna carioca surgiu travestida tanto como
meio de expressão do novo governo revolucionário, que banira a
oligarquia cafezista, como uma
manifestação sensível de nossos
jovens arquitetos que souberam
captar e dar feições locais aos ensinamentos dos grandes teóricos,
especialmente Le Corbusier.
Muita gente passou até a ver
uma "identidade nacional" naquela arquitetura praticada no Rio
e fora dele por profissionais irmanados na nova corrente carioca.
Essa produção moderna inesperada chegou até a merecer belo livro
editado pelo Museu de Arte Moderna de Nova York. E, atrás disso
tudo, estava Lucio Costa.
E não se pense que Lucio sempre
foi pessoa atirada, panfletária,
proselitista ou grande comunicólogo. Nada disso: sempre pertenceu à confraria silenciosa dos tímidos, capazes de fazer com que suas
idéias cheguem longe.
Timidez cônscia do alcance de
suas palavras e exemplos. Sempre
desprendido e confiante no resultado prático de suas idéias de modernização, em que necessariamente estava ímplicita a nova tecnologia da construção.
A chave era essa: para uma nova
técnica, uma nova estética. Dentro
desse posicionamento, confiante
na sensibilidade e na inteligência,
só via garantia de êxitos na criatividade que os acadêmicos historicistas não podiam alcançar porque a sua atuação se resumia no
manuseio de regras velhas, em que
a invenção era proibida.
Lucio percorreu todos os caminhos do aprendizado da arquitetura. Foi aluno da Escola Nacional
de Belas Artes e seguidor das lições
de José Mariano Carneio da Cunha, o apóstolo da revivescência
da arquitetura colonial no Rio.
Por isso, viajou por Minas e Nordeste em busca do vocabulário
tradicionalista para a nova gramática neocolonial. Daí sua competência e dedicação exemplar na
chefia dos trabalhos de tombamento de monumentos históricos
no antigo Sphan.
Logo depois de formado, nos
fins da década de 20, teve "anos
de purgação", quando leu com
sofreguidão toda a obra de Le Corbusier e trabalhos, também, de
Gropius e Mies van der Rohe.
Logo após essa "conversão" ao
modernismo racionalista, é chamado, em 1930, pelo ministro
Francisco de Campos, para assumir a diretoria da Escola Nacional
de Belas Artes, cujo ensino de arquitetura pretendeu reformular
totalmente.
Levou Warchavchik para o Rio
como seu assistente, introdutor
entre alunos das posturas do funcionalismo do mestre francês.
A semente plantada germinou,
embora Lucio logo tenha saído do
encargo por falta de apoio político
e devido à pressão dos professores
refratários à reforma efetuada.
Germinou e frutificou, sendo Lucio reconhecido como o mentor
de todos, o abridor de portas.
Nada vaidoso, despojado de ambições, sempre procurou repartir
êxitos. No caso do projeto do edifício do Ministério da Educação,
por exemplo, em vez de enfrentar
o problema sozinho, exigiu o
comparecimento de todos os colegas concorrentes modernistas não
premiados no concurso havido.
Daí, a célebre equipe de arquitetos pioneiros, cujo trabalho se
transformou num verdadeiro divisor de águas, superando o ranço
eclético da modernidade progressista carioca, que acabou tomando
conta do Brasil todo.
Outro exemplo: em 1939, depois
de vencer o concurso de projetos
referentes ao pavilhão do Brasil,
da New York World's Fair, exige
que Oscar Niemeyer, o segundo
colocado, participe dos trabalhos.
Humilde e sabedor de sua capacidade ímpar, apresentou-se à comissão organizadora do concurso
nacional para a escolha do plano
urbanístico da nova capital brasileira, por meio de um portador,
pouco antes de terminar o prazo,
com simples rolos de papel onde
estavam as suas ponderações e riscos esquemáticos, enquanto os
outros concorrentes enviavam
maquetes, painéis com fotomontagens, perspectivas e desenhos
mil. Venceu a todos.
Desambicioso, não conseguiu
chegar a um acordo em 1970 com a
Prefeitura do Rio quanto aos seus
honorários relativos ao projeto de
urbanização da Baixada de Jacarepaguá, onde estava incluído o plano diretor da Barra da Tijuca.
A prefeitura acabou concordando com prestações mensais ao arquiteto decorrentes de um modesto lote de títulos municipais.
Enfim, um homem diferenciado
que levou o exercício da profissão
a uma qualidade verdadeiramente
exemplar e, por isso, é justamente
o exemplo do arquiteto a ser seguido, e isso logo nos leva a dizer
que ele é o patrono de todos nós.
Carlos Alberto Cerqueira Lemos é arquiteto e
autor de "O Que É Arquitetura" (ed. Brasiliense).
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