São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998

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MEMÓRIA
Costa era uma unanimidade

CARLOS LEMOS
especial para a Folha

Sempre houve uma unanimidade entre os arquitetos no momento de se eleger alguém de grande relevância entre eles: Lucio Costa surgia e surge sem contestações.
Nome envolto em legenda, quase mágico, guardado no subconsciente de todos como de prestígio incontestável, até por jovens mal vividos, que, respeitosamente, emitem o parecer sobre um grande arquiteto: Lucio Costa.
Às vezes, nem sabem o que ele fez de importante, além de Brasília. O nome, no entanto, vem na ponta da língua, numa lição aprendida com reverência.
Sabemos da hegemonia da arquitetura carioca dos anos 30 aos 50, anos difíceis, permeados pela Segunda Guerra, quando as obras em geral foram prejudicadas pela cessação das importações de material de construção e praticamente tudo teve que ser improvisado aqui, num país que nem indústria siderúrgica possuía.
E nesse clima de carências materiais é que surge a modernidade na arquitetura entre nós -foi ela a última das artes a romper com o passado acadêmico, uns 15 anos após a Semana de Arte Moderna.
Rompimento deflagrado por Lucio na cidade atrelada ao academicismo eclético ensinado pela Escola Nacional de Belas Artes.
A partir dos meados da década de 30, a arquitetura moderna carioca surgiu travestida tanto como meio de expressão do novo governo revolucionário, que banira a oligarquia cafezista, como uma manifestação sensível de nossos jovens arquitetos que souberam captar e dar feições locais aos ensinamentos dos grandes teóricos, especialmente Le Corbusier.
Muita gente passou até a ver uma "identidade nacional" naquela arquitetura praticada no Rio e fora dele por profissionais irmanados na nova corrente carioca. Essa produção moderna inesperada chegou até a merecer belo livro editado pelo Museu de Arte Moderna de Nova York. E, atrás disso tudo, estava Lucio Costa.
E não se pense que Lucio sempre foi pessoa atirada, panfletária, proselitista ou grande comunicólogo. Nada disso: sempre pertenceu à confraria silenciosa dos tímidos, capazes de fazer com que suas idéias cheguem longe.
Timidez cônscia do alcance de suas palavras e exemplos. Sempre desprendido e confiante no resultado prático de suas idéias de modernização, em que necessariamente estava ímplicita a nova tecnologia da construção.
A chave era essa: para uma nova técnica, uma nova estética. Dentro desse posicionamento, confiante na sensibilidade e na inteligência, só via garantia de êxitos na criatividade que os acadêmicos historicistas não podiam alcançar porque a sua atuação se resumia no manuseio de regras velhas, em que a invenção era proibida.
Lucio percorreu todos os caminhos do aprendizado da arquitetura. Foi aluno da Escola Nacional de Belas Artes e seguidor das lições de José Mariano Carneio da Cunha, o apóstolo da revivescência da arquitetura colonial no Rio.
Por isso, viajou por Minas e Nordeste em busca do vocabulário tradicionalista para a nova gramática neocolonial. Daí sua competência e dedicação exemplar na chefia dos trabalhos de tombamento de monumentos históricos no antigo Sphan.
Logo depois de formado, nos fins da década de 20, teve "anos de purgação", quando leu com sofreguidão toda a obra de Le Corbusier e trabalhos, também, de Gropius e Mies van der Rohe.
Logo após essa "conversão" ao modernismo racionalista, é chamado, em 1930, pelo ministro Francisco de Campos, para assumir a diretoria da Escola Nacional de Belas Artes, cujo ensino de arquitetura pretendeu reformular totalmente.
Levou Warchavchik para o Rio como seu assistente, introdutor entre alunos das posturas do funcionalismo do mestre francês.
A semente plantada germinou, embora Lucio logo tenha saído do encargo por falta de apoio político e devido à pressão dos professores refratários à reforma efetuada. Germinou e frutificou, sendo Lucio reconhecido como o mentor de todos, o abridor de portas.
Nada vaidoso, despojado de ambições, sempre procurou repartir êxitos. No caso do projeto do edifício do Ministério da Educação, por exemplo, em vez de enfrentar o problema sozinho, exigiu o comparecimento de todos os colegas concorrentes modernistas não premiados no concurso havido.
Daí, a célebre equipe de arquitetos pioneiros, cujo trabalho se transformou num verdadeiro divisor de águas, superando o ranço eclético da modernidade progressista carioca, que acabou tomando conta do Brasil todo.
Outro exemplo: em 1939, depois de vencer o concurso de projetos referentes ao pavilhão do Brasil, da New York World's Fair, exige que Oscar Niemeyer, o segundo colocado, participe dos trabalhos.
Humilde e sabedor de sua capacidade ímpar, apresentou-se à comissão organizadora do concurso nacional para a escolha do plano urbanístico da nova capital brasileira, por meio de um portador, pouco antes de terminar o prazo, com simples rolos de papel onde estavam as suas ponderações e riscos esquemáticos, enquanto os outros concorrentes enviavam maquetes, painéis com fotomontagens, perspectivas e desenhos mil. Venceu a todos.
Desambicioso, não conseguiu chegar a um acordo em 1970 com a Prefeitura do Rio quanto aos seus honorários relativos ao projeto de urbanização da Baixada de Jacarepaguá, onde estava incluído o plano diretor da Barra da Tijuca.
A prefeitura acabou concordando com prestações mensais ao arquiteto decorrentes de um modesto lote de títulos municipais.
Enfim, um homem diferenciado que levou o exercício da profissão a uma qualidade verdadeiramente exemplar e, por isso, é justamente o exemplo do arquiteto a ser seguido, e isso logo nos leva a dizer que ele é o patrono de todos nós.


Carlos Alberto Cerqueira Lemos é arquiteto e autor de "O Que É Arquitetura" (ed. Brasiliense).



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