São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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Em "A Epopéia Bandeirante", Antonio Celso Ferreira reconstitui a formação histórica da figura do paulista

O panteão do desbravador e do caipira

Milton Ohata
especial para a Folha

Numa das narrativas de "Três Mulheres de Três PPPês", de 1977 (ed. Paz e Terra), vemos um burguês madurão alimentar antigas veleidades literárias em plena crise conjugal. Frustrado no casamento e inspirado pelas comemorações da revolução de 1932, a personagem escreve um "Louvor à Dama Paulista", pensando nos sacrifícios das senhoras da época em prol dos interesses do Estado contra o centralismo de Getúlio Vargas. A situação tem o seu ridículo, mas um crítico notou que Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977) não queria com isto repisar questões que o modernismo em arte há muito liquidara. "Pelo contrário, ele as invoca dentro mesmo da vigência indigente que na prática elas conservaram, para expô-las ao vexame de uma reiteração aprimorada." O livro de Antonio Celso Ferreira nos leva ao próprio ambiente em que se formou a personagem satirizada por Paulo Emílio. Ambiente já então embolorado, mas feito de otimismo, mitificação do passado e beletrismo chapa-branca, num período que vai do auge do café aos primeiros tempos da industrialização. Neste intervalo, muitos paulistas se perguntaram o que era afinal "ser paulista", um sintoma claro do incômodo diante das levas crescentes de migrantes e imigrantes atraídos pela expansão econômica que mudavam rapidamente a composição demográfica da região. A resposta tomou pé em duas figuras emblemáticas que muitas vezes se fundiram numa só: a do antigo bandeirante meio branco, meio índio que, embarafustando com heroísmo pelo sertão, foi aos poucos sedentarizando-se, até se fixar modestamente como o caipira dos quadros de Almeida Jr.

Fora de esquadro
O paulista dos tempos da colônia representava um tipo fora de esquadro, que supostamente desenhou o futuro mapa do Brasil. No caipira, viu-se um reservatório de pureza que a modernização tendia a aniquilar. O progresso recente mudava a posição de São Paulo no conjunto do país e as duas figuras indicavam, com desajeitamento de novo rico, tanto o ânimo de se fazer reconhecido quanto as dúvidas diante de uma situação nova. Com alguma indecisão expositiva, devida talvez ao conjunto grande e variado de documentos que utilizou, o autor do livro faz um mapeamento das variações do tema e principalmente da sua continuidade na literatura e na historiografia regionais. A persistência se deveu a uma liga peculiar mas convencional de um cânone literário passadista, o da antiga epopéia, e a uma forma "ancien régime" de vida cultural, a das academias. O primeiro inspirou "um modelo épico de enredamento da história paulista" (pág. 24), aqui tomado no sentido que Hayden White dá à narrativa histórica -esta é indiferente aos conteúdos narrados e chega mesmo a determinar seu encadeamento interno. A segunda vinha ao encontro do desejo da elite política de tradicionalizar com verniz literário suas posições recém-conquistadas. Tudo tende a formar um pequeno sistema de autores, obras e público, que começa na forma canhestra do "Almanach Litterario de São Paulo", publicado na província entre 1876 e 1885. E continua nas sessões e escritos, cheios de oratória bacharelesca, do Instituto Histórico e Geográfico (fundado em 1894) e da Academia Paulista de Letras (1909). Talvez o melhor do livro esteja no reconhecimento de algo dessa dinâmica na obra de alguns escritores modernistas (notadamente Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo), num terreno que seria em tese avesso a ela. As análises do livro buscam identificar o que há de literário na história e vice-versa. Nessa linha, o autor mais sugere que analisa, mas as sugestões são muitas e certamente serão debatidas entre os especialistas de ambas as áreas. Um bom ponto a discutir seria o desempenho do modelo épico nas mais variadas formas (discursos, poesia, ficção, historiografia etc.), que uma análise mais detida poderia mostrar em seus efeitos involuntariamente cômicos, desencontrados, enigmáticos. É a qualidade literária dos escritos que não alcança o gênero? Ou o gênero antigo não passa de perfumaria?

Algumas ausências
Até onde sei, toda essa produção conserva mais o tom elevado da epopéia que propriamente suas formas, tom que pode ser identificado já na "Nobiliarquia" de Pedro Taques, escrita no século 18, mas só publicada no seguinte -e não por paulistas. Nessa linha, uma objeção ao livro cobraria a ausência de Afonso Taunay (1876-1958), o historiador cuja obra mais se prestaria ao crivo analítico aqui utilizado. Ainda assim, como situar a prosa antienfática de Paulo Prado e Alcântara Machado, também eles membros do Instituto Histórico e da Academia Paulista? Outra limitação talvez decorra do recorte institucional adotado, impedindo uma análise mais desataviada do diálogo vivo entre as obras e entre seus autores. Disso fica a sensação de relativa imobilidade dos temas, que ressurgem constantemente nos cercadinhos das instituições, mas parecem não se adensar nem configurar um processo histórico-literário específico. O mesmo pode ser dito quanto a alguns historiadores fundamentais para o argumento do livro, cuja periodização vai até 1940, quando a pesquisa universitária tenderia a desbancar o saber artesanal. Sabemos entretanto que Afonso Taunay ocupou a primeira cadeira de História do Brasil na USP, sendo sucedido por Alfredo Ellis Jr., o outro representante maior da antiga historiografia, até a década de 50.

História inacabada
Creio que o livro ganharia se a periodização chegasse até 1954, ano do tão festejado quarto centenário de São Paulo. A data também marca um ponto de inflexão na história brasileira. Fundeada no Sudeste por Getúlio Vargas, que nesse mesmo ano se suicidaria, a indústria nacional vinha de ultrapassar a agricultura no conjunto do PIB. O país entrava nos anos dourados da bossa nova e, logo a seguir, na agitação política que levou ao golpe de 1964. Nele e nos anos de chumbo que seguiram, o papel da burguesia paulista foi decisivo -e as consequências sentimos até hoje. Francisco de Oliveira viu no processo o que chamou de "hegemonia inacabada", pela qual São Paulo dá as costas ao país política e culturalmente, embora continue à frente da economia. Em outras palavras, alinha-se com a nova fase do capitalismo ao descartar justificações ideológicas e opta por exercer uma hegemonia tão-somente através do mercado. Os velhos tempos da epopéia bandeirante eram então uma página virada.


Milton Ohata é doutorando em história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professor na Escola da Cidade.


A Epopéia Bandeirante
372 págs., R$ 35,00 de Antonio Celso Ferreira. Editora Unesp (pça. da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/ xx/11/3242-7171).



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