São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

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O nascimento da tragédia

Tradução revela autonomia de "O Silvano", peça de Tchekhov que derivou em "Tio Vânia"

ADERBAL FREIRE-FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O doutor Anton Pavlóvitch Tchekhov, reputado médico russo, foi responsável por uma revolução na área em que era especialista, e as revistas de medicina não deram a menor bola. A especialidade do dr. Tchekhov, o teatro, explica esse desprezo ortodoxo. Fora da literatura médica, no entanto, está se tornando clássica a análise de Peter Szondi, por ter examinado o caso Tchekhov da forma talvez mais concisa e precisa.
Szondi mostra que, para escrever sobre personagens que não conseguem se comunicar e que nunca vivem o aqui e agora, Tchekhov teve que abrir a cena, lugar do diálogo e do presente. Foi essa operação que mudou o teatro.
O autor russo iniciou um processo seguido pelos autores que vieram depois dele e exploraram o palco aberto. Ao mesmo tempo, suas próprias obras têm interessado cada vez mais a atores e diretores, que ainda não terminaram de descobrir todas as possibilidades que a revolução contida nelas oferece.
Pode-se dizer que Tchekhov escreveu para o futuro. Dou de cara com umas declarações do escritor argentino Bioy Casares, feitas aí por meados dos anos 90, em que ele diz: "Agora estou admirando um contista cujos argumentos não estão muito construídos, que é Tchekhov (...). É quem estou lendo com mais agrado (...). Quando eu era mais jovem, pensava que não gostava de Tchekhov". Com isso dos "argumentos não muito construídos", levanta uma bola incrível para quem tem mais de 4.000 toques fazer uma boa interpretação de Tchekhov.
As progressivas admiração e compreensão do escritor já bastam para justificar a edição no Brasil de "O Silvano", uma peça raramente editada pelo fato de ser o texto que originou "Tio Vânia". Outra virtude desta edição é ser uma tradução direta do russo, integrando um movimento de recuperação de clássicos. Acho que vem daí também a grafia mais ou menos recente do nome de Tchekhov, à moda inglesa.
Como sou do tempo de "Tchecov", resisto a essa meia-trava do "k" que antecede a tentativa imprópria do "h" aspirado, inexistente em português. Melhor para os espanhóis, que resolvem fácil com a "jota", em "Chejov".
Já que ando por aqui, a única questão discutível na ótima tradução de Tatiana Lárkina é a do próprio título. Talvez fosse o caso de seguir, aqui sim, ingleses e espanhóis, tomando a mesma liberdade de adaptar que eles tiveram quando chamaram a peça "The Wood Demon" ou "El Genio del Bosque". Tatiana explica em nota que Silvano é um personagem folclórico russo que equivale ao nosso curupira, mas um espetáculo teatral, destino de um texto dramático, não tem pé de página.
Além de oferecer as delícias de um novo Tchekhov, essa edição ainda proporciona os prazeres adicionais da literatura comparada. Tratando-se de um caso de comparativismo mais do que restrito, pois quase compara um texto com ele mesmo, dá água na boca reconhecer o processo de escritura, as transformações. E para os espíritos críticos (ia dizer para os espíritos de porco) ainda sobra a chance de criticar um gênio, achar nele defeitos, a propósito da obra de engenharia que foi transformar as personagens de "O Silvano" nas de "Tio Vânia".
Destaco só os golpes de mestre, como a fusão do dr. Khruschiov com Fiódor, o filho do fazendeiro, o que aumenta as contradições de Ástrov, o "ambientalista" correspondente de "Tio Vânia", e faz dele um deus-e-o-diabo ainda mais caprichado.
Também é habilíssima a combinação de Sonia com seu pretendente Jeltúkhin, feio e desprezado, e a irmã dele, Yúlia, trabalhadora e dinâmica. Pior para a pobre Sonia, que, de uma mulher bela e amada em "O Silvano", se transforma em feia, desprezada e escravizada em "Tio Vânia". Mas, para nós, a operação tchekhoviana constrói, em "Tio Vânia", uma personagem inesquecível.

Travessias
Talvez o melhor de tudo seja a possibilidade de ver a peça em dois registros diferentes, farsa e tragédia, o que, especialmente, autoriza o trânsito livre do humor também na tragédia, onde, aliás, certas situações são mais cômicas.
Da ausência de humor em montagens acadêmicas das peças de Tchekhov é muito culpado seu principal divulgador, o encenador Constantin Stanislavski. Mas, para minimizar sua autoridade, indico uma consulta a outro médico russo, o dr. Mikhail Bulgakov, também dedicado à mesma especialidade do dr. Tchekhov, a clínica teatral.
No seu inacabado "Romance Teatral", nunca publicado no Brasil -atenção editores!-, o dr. Bulgakov escreve uma cena impagável em que o protagonista, um dramaturgo, acompanha os ensaios de sua peça conduzidos por Stanislavski. Usando seu celebrado método, o diretor faz um ótimo ator piorar a cada dia, para desespero do pobre autor, na verdade o próprio Bulgakov. Já que falei de um romance inacabado, é preciso dizer que "O Silvano" é uma peça acabada e independe do conhecimento de "Tio Vânia" para ser uma leitura plena. E excelente.


Aderbal Freire-Filho é diretor teatral.

O Silvano
160 págs., R$ 29 de Anton Tchekhov. Tradução de Tatiana Lárkina. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3457-1545).



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