|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O nascimento da tragédia
Tradução revela autonomia de "O Silvano", peça de Tchekhov que derivou em "Tio Vânia"
ADERBAL FREIRE-FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
doutor Anton Pavlóvitch
Tchekhov, reputado médico russo, foi responsável
por uma revolução na área
em que era especialista, e as revistas
de medicina não deram a menor bola. A especialidade do dr. Tchekhov,
o teatro, explica esse desprezo ortodoxo. Fora da literatura médica, no
entanto, está se tornando clássica a
análise de Peter Szondi, por ter examinado o caso Tchekhov da forma
talvez mais concisa e precisa.
Szondi mostra que, para escrever
sobre personagens que não conseguem se comunicar e que nunca vivem o aqui e agora, Tchekhov teve
que abrir a cena, lugar do diálogo e
do presente. Foi essa operação que
mudou o teatro.
O autor russo iniciou um processo
seguido pelos autores que vieram
depois dele e exploraram o palco
aberto. Ao mesmo tempo, suas próprias obras têm interessado cada vez
mais a atores e diretores, que ainda
não terminaram de descobrir todas
as possibilidades que a revolução
contida nelas oferece.
Pode-se dizer que Tchekhov escreveu para o futuro. Dou de cara com
umas declarações do escritor argentino Bioy Casares, feitas aí por meados dos anos 90, em que ele diz:
"Agora estou admirando um contista cujos argumentos não estão muito construídos, que é Tchekhov (...).
É quem estou lendo com mais agrado (...). Quando eu era mais jovem,
pensava que não gostava de Tchekhov". Com isso dos "argumentos
não muito construídos", levanta
uma bola incrível para quem tem
mais de 4.000 toques fazer uma boa
interpretação de Tchekhov.
As progressivas admiração e compreensão do escritor já bastam para
justificar a edição no Brasil de "O Silvano", uma peça raramente editada
pelo fato de ser o texto que originou
"Tio Vânia". Outra virtude desta
edição é ser uma tradução direta do
russo, integrando um movimento
de recuperação de clássicos. Acho
que vem daí também a grafia mais
ou menos recente do nome de Tchekhov, à moda inglesa.
Como sou do tempo de "Tchecov", resisto a essa meia-trava do "k"
que antecede a tentativa imprópria
do "h" aspirado, inexistente em português. Melhor para os espanhóis,
que resolvem fácil com a "jota", em
"Chejov".
Já que ando por aqui, a única questão discutível na ótima tradução de
Tatiana Lárkina é a do próprio título. Talvez fosse o caso de seguir, aqui
sim, ingleses e espanhóis, tomando a
mesma liberdade de adaptar que
eles tiveram quando chamaram a
peça "The Wood Demon" ou "El
Genio del Bosque". Tatiana explica
em nota que Silvano é um personagem folclórico russo que equivale ao
nosso curupira, mas um espetáculo
teatral, destino de um texto dramático, não tem pé de página.
Além de oferecer as delícias de um
novo Tchekhov, essa edição ainda
proporciona os prazeres adicionais
da literatura comparada. Tratando-se de um caso de comparativismo
mais do que restrito, pois quase
compara um texto com ele mesmo,
dá água na boca reconhecer o processo de escritura, as transformações. E para os espíritos críticos (ia
dizer para os espíritos de porco) ainda sobra a chance de criticar um gênio, achar nele defeitos, a propósito
da obra de engenharia que foi transformar as personagens de "O Silvano" nas de "Tio Vânia".
Destaco só os golpes de mestre, como a fusão do dr. Khruschiov com
Fiódor, o filho do fazendeiro, o que
aumenta as contradições de Ástrov,
o "ambientalista" correspondente
de "Tio Vânia", e faz dele um deus-e-o-diabo ainda mais caprichado.
Também é habilíssima a combinação de Sonia com seu pretendente
Jeltúkhin, feio e desprezado, e a irmã
dele, Yúlia, trabalhadora e dinâmica.
Pior para a pobre Sonia, que, de uma
mulher bela e amada em "O Silvano", se transforma em feia, desprezada e escravizada em "Tio Vânia".
Mas, para nós, a operação tchekhoviana constrói, em "Tio Vânia", uma
personagem inesquecível.
Travessias
Talvez o melhor de tudo seja a possibilidade de ver a peça em dois registros diferentes, farsa e tragédia, o
que, especialmente, autoriza o trânsito livre do humor também na tragédia, onde, aliás, certas situações
são mais cômicas.
Da ausência de humor em montagens acadêmicas das peças de Tchekhov é muito culpado seu principal
divulgador, o encenador Constantin
Stanislavski. Mas, para minimizar
sua autoridade, indico uma consulta
a outro médico russo, o dr. Mikhail
Bulgakov, também dedicado à mesma especialidade do dr. Tchekhov, a
clínica teatral.
No seu inacabado "Romance Teatral", nunca publicado no Brasil
-atenção editores!-, o dr. Bulgakov escreve uma cena impagável em
que o protagonista, um dramaturgo,
acompanha os ensaios de sua peça
conduzidos por Stanislavski. Usando seu celebrado método, o diretor
faz um ótimo ator piorar a cada dia,
para desespero do pobre autor, na
verdade o próprio Bulgakov. Já que
falei de um romance inacabado, é
preciso dizer que "O Silvano" é uma
peça acabada e independe do conhecimento de "Tio Vânia" para ser
uma leitura plena. E excelente.
Aderbal Freire-Filho é diretor teatral.
O Silvano
160 págs., R$ 29
de Anton Tchekhov. Tradução de Tatiana
Lárkina. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP
05346-902, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/
3457-1545).
Texto Anterior: + livros: O grito contra a cidade Próximo Texto: Lançamentos Índice
|