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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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Ponto de fuga

Os grandes rostos

Retratos pintados por Alex Katz reúnem-se numa exposição, em Veneza. A curadoria é de seu filho, Vincent. Estão nas salas de uma fundação (Fondazione Bevilacqua La Masa) que dá para a praça S. Marco. São formatos muito grandes, formatos "americanos", como sugeriu Robert Rosenblum num texto já antigo, que contrastam com a escala íntima da cidade.
Os rostos, enormes, recortam-se contra superfícies unificadas pela cor e, em casos mais raros, contra paisagens sintéticas ou motivos vegetais. Os reflexos nos olhos, nos óculos, as zonas de sombra ou de penumbra, os modelados tornam-se imensos pela amplidão da escala. Há uma nitidez definitiva, graças à segurança do desenho, à simplificação das superfícies. Ela faz parte da poética dos quadros de Katz, acrescida de um formidável sentido dos acordes cromáticos e da mais sensível busca por nuanças coloridas. Uma relação harmônica se estabelece entre a grandeza das imagens e a grandeza do fundo. A respiração é ampla e feliz, salvo em um ou outro caso. "Ada and Vincent", quadro estupendo, é uma dessas exceções: rosto da mulher e do menino confinados na superfície da tela, frontais, com olhos cheios de inquietação melancólica.
Todos os retratados são familiares ao pintor. Embora vistos tão de perto e de modo tão individual, unem-se no geral já que fazem parte de uma certa sociedade contemporânea. Mas essa generalidade vai além dos chapéus, cortes de cabelos, roupas, que os inserem marcadamente no tempo presente, para se unirem num sentimento coletivo de humanidade.

Ficha - Alex Katz passou sua infância em Queens, mudou-se para Manhattan em 1950. Desde 1968 mora no mesmo apartamento do Soho. É fiel a Nova York e é fiel a si mesmo. No início de sua carreira, as artes se encontravam sob a hegemonia tirânica da abstração. Era impossível para um artista moderno representar alguma coisa em sua tela. Alex Katz não se incomodou com isso. Manteve-se "realista", como diz, por "questão de gosto ou instinto". Punha-se distante da tradição figurativa, mas da tradição moderna também, "numa posição isolada ao extremo". Não surgiu com a pop art ou com o hiper-realismo, como às vezes se pensa. Foi com a crise da abstração que veio o reconhecimento de sua arte, progressivo e firme.

Raro - Louis Dorigny está bem longe de ser um nome célebre na história da pintura. É mencionado apenas por alguns puristas, estudiosos de Palladio, que condenam suas decorações na Villa La Rotonda, em Vicenza. Traem, dizem eles, o rigor da arquitetura. Uma exposição recente recupera a qualidade sedutora de sua arte. Ela se encontra no museu de Castelvecchio, em Verona: "Louis Dorigny (1654-1742) - Un Pittore de la Corte Francese a Verona".
A cavalo entre a França e a Itália, entre um século e outro, Dorigny guarda a grandeza robusta das tradições barrocas, mas se abre para novos tempos, mais leve, luminoso e ágil.
Há ênfase comunicativa em seus personagens: os homens, com enérgica anatomia; as mulheres com grande apelo erótico. Nuas, elas têm formas bojudas, gostosas e oferecidas: algum espectador poderá ficar menos interessado em saber de que alegoria ou deusa se trata do que em conseguir seu número de telefone.

Giros - O arquiteto Carlo Scarpa (1906 1978) transcendia as modas e teorias. Sabia lidar com o passado, com a história; inventava a partir do sensível. Em seus edifícios, o espaço deixa de ser abstração geométrica para se transformar em ambiente, rico de proporções e de matérias. Teve o gênio dos museus: suas concepções ordenam os acervos segundo uma estratégia que os funde com a arquitetura. É assim com o Castelvecchio de Verona, um apogeu de museologia.
Existe uma pequena realização de Scarpa, menos visitada, na aldeia de Possagno: a galeria dos modelos em gesso feitos por Canova, o mestre neoclássico. Scarpa dispôs ali esboços miúdos e formatos maiores sob luz tão serena -e as obras, próximas umas às outras, encadeiam gestos tão suaves- que o visitante se sente como entrando num mundo de carícias.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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Haroldo de Campos

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