São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

livros

A fé da palavra

"História de Antônio Vieira" mistura política e retórica ao narrar a vida de um dos grandes autores da língua portuguesa, nascido há 400 anos

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

O padre Antônio Vieira (1608-97), nascido 400 anos atrás, não se compreende sem d. Sebastião. Os leitores conhecem a história: Sebastião foi o jovem rei que, marchando para o norte de África, acabaria por morrer em combate, fazendo nascer uma particular forma de messianismo. Certíssimo. Mas, descendo da lenda, vamos aos pormenores: d. Sebastião é um produto da sua época e a época era de crise. Longe iam os tempos em que Portugal dominava terras e mares com proveitos para a coroa. Mesmo nos anos finais de d. Manuel 1º, ainda chamado de "o Venturoso", havia sinais de esgotamento, que se agravaram com d. João 3º. As possessões portuguesas eram cobiçadas pelas grandes potências européias. Os cofres do Estado não agüentavam os encargos ultramarinos. E só um milagre poderia resgatar a pátria da decadência irremediável. Esse milagre era d. Sebastião. Ou, pelo menos, o próprio acreditava que sim, retrato fiel da sua saúde mental. E como operar o milagre? Pela espada: conquistando o norte de África, ou seja, garantindo as rotas comerciais portuguesas pelo domínio do litoral africano e espalhando a Fé e o Império pelos infiéis. Curiosamente, d. Sebastião nunca formulou uma questão prosaica: e se a sua cruzada falhasse? Um homem providencial não admite falhar. E, quando o rei partiu para Alcácer-Quibir em 1578, a vitória, pelo menos na cabeça dele, era certa. Infelizmente, o diabo não dorme em serviço, e a vitória não aconteceu. Com um exército mal preparado e uma estratégia desastrosa ou inexistente, d. Sebastião não apenas morria em combate; ele enterrava a dinastia de Avis e a independência de Portugal. Morto o rei, subia ao trono o seu tio-avô, d. Henrique, um sexagenário religioso que, obviamente sem descendência, apenas adiava a catástrofe. Em 1580, a catástrofe veio: Filipe 2º de Espanha invadia Portugal e reunia sob a sua autoridade os dois reinos ibéricos. D. Sebastião era agora assunto de crença: haveria um dia em que surgiria no meio da bruma para restaurar a independência e conduzir os portugueses à grandeza perdida.

O prodígio Vieira
Antônio Vieira não ficou incólume a essa curiosa fantasia. E, tal como d. Sebastião, ele próprio expressou, na obra e na ação, a crise de Portugal e do império, mesmo depois de restaurada a independência em 1640. Nascido em Lisboa, descendente de avó negra (ou mulata), Vieira dividiu a existência entre as duas margens do Atlântico. Emigrado para o Brasil aos seis anos, entraria para a Ordem dos Jesuítas ainda na adolescência. Prodígio intelectual, latinista ilustre, Vieira foi a testemunha da decadência lusitana, irremediável desde a morte de d. Sebastião e que a união ibérica dos Filipes apenas aprofundou. No Brasil, o religioso presenciou a cobiça das possessões portuguesas pelos holandeses; na metrópole, confrontou-se com as discriminações de que eram vítimas os cristãos-novos e que defendeu com custos pessoais e públicos. Para Vieira, a reintegração dos cristãos-novos na sociedade portuguesa, por ser classe próxima dos negócios, seria uma forma justa e inteligente de conseguir o financiamento de que d. João 4º necessitava para defender e alargar o império. Sua obstinação acabaria mesmo por conseguir a abolição da pena de confiscação dos bens por delito de judaísmo, um gesto que, ao retirar proventos à Inquisição e ao encaminhá-los para a Companhia Geral do Comércio do Brasil, não o tornou propriamente popular aos olhos do Santo Ofício.

Impulsos messiânicos
Mas seria d. Sebastião quem atiraria Vieira para as garras inquisitoriais. Ou, melhor dizendo, uma particular interpretação do messianismo sebastiânico. Afastando-se da versão tradicional que esperava pelo rei morto em dia de nevoeiro, Vieira projetou em d. João 4º, o primeiro dos Braganças, a personificação do Encoberto longamente esperado pelos portugueses. E nem mesmo a morte posterior do monarca serenou os ânimos messiânicos de Vieira: se o rei morrera, ele acabaria por ressuscitar, cumprindo-se o Quinto Império. A Inquisição não gostou desse messianismo herético, na linha do popular Bandarra, e privou Vieira de voz ativa e passiva, pelo menos temporariamente. O processo foi longo, violento e, na verdade, Vieira nunca mais se recuperou inteiramente dele. Eis a história que João Lúcio de Azevedo se propõe contar na biografia monumental de Antônio Vieira, que chega ao Brasil em dois volumes, reproduzindo o texto da segunda edição, revista pelo autor em 1931. Lúcio de Azevedo (1855-1933) era a pessoa certa para a tarefa: tal como Vieira, também o historiador dividiu a existência entre dois países. Nascido em Sintra, emigrou para Belém aos 18 anos. Livreiro, fez fortuna material e intelectual no Brasil, aí publicando os seus "Estudos da História Paraense" (1893). Regressado a Portugal em 1900, o labor histórico de Lúcio Azevedo continuou, abrindo para a historiografia portuguesa caminhos inexplorados: o seu "Épocas de Portugal Económico" (1929), ao alargar a narrativa histórica para os territórios da economia; os seus contributos para a "História de Portugal" de Damião Peres; e os seus estudos sobre o padre Vieira consagraram Lúcio de Azevedo como nome de referência da cultura lusitana. A presente biografia começa por ser um documento literário: inspirado pela sensibilidade barroca de Vieira, Lúcio de Azevedo constrói uma odisséia de leitura fascinante, apesar de algumas citações latinas que careciam de tradução (como é o caso da epígrafe que Vieira teria composto para o túmulo de d. João 4º). Felizmente, existe suficiente imaginação histórica, e até romanesca, para que Antônio Vieira surja aos nossos olhos como personagem complexa e poderosamente vital nas causas que defendeu.

Origem servil
Azevedo revisita a luta do religioso contra as pretensões holandesas no Brasil, os seus esforços pela evangelização do Maranhão, a defesa dos cristãos-novos, o longo e esgotante processo com o Santo Ofício e, tal como referido, o seu messianismo universalista, centrado na figura de d. João 4º. Mas nem tudo é matéria conhecida, pelo menos para mim. O desconforto de Vieira com a origem servil e a mestiçagem, por exemplo, é cuidadosamente apresentado por Lúcio de Azevedo como "pecado original" que teria acompanhado o pregador durante toda a vida. Igualmente, e na sua reputada defesa dos índios do Brasil, Vieira percebeu que a única forma de garantir a libertação dos nativos passava pela distinção entre escravos "legítimos" e "ilegítimos". Os primeiros, capturados em "guerra justa" ou já escravos entre os índios, não cabia aos jesuítas resgatar da servidão. Uma última palavra para a edição: em quase mil páginas, seria impossível que não surgissem alguns erros desconfortáveis: "palava" (e não "palavra", vol. 1, pág. 89), "d. João 6º" (e não "d. João 4º", vol. 1, pág. 181), "dernais" (e não "demais", vol. 1, pág. 264), "estaba" (e não "estava", vol. 1, pág. 325), "termura" (e não "ternura", vol. 2, pág. 185), para citar apenas alguns. Espera-se que, em próximas reimpressões, esta obra de referência possa despojar-se dessas manchas.

HISTÓRIA DE ANTÔNIO VIEIRA
Autor: João Lúcio de Azevedo
Editora: Alameda (tel. 0/xx/11/3862-0850)
Quanto: R$ 98 (978 págs.)



Texto Anterior: Livros: O dono da orquestra
Próximo Texto: Lançamentos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.