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livros
A fé da palavra
"História de Antônio Vieira" mistura política e retórica ao narrar a vida de um dos grandes autores da língua portuguesa, nascido há 400 anos
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
O
padre Antônio
Vieira (1608-97),
nascido 400 anos
atrás, não se compreende sem d. Sebastião.
Os leitores conhecem a história: Sebastião foi o jovem rei
que, marchando para o norte
de África, acabaria por morrer
em combate, fazendo nascer
uma particular forma de messianismo. Certíssimo.
Mas, descendo da lenda, vamos aos pormenores: d. Sebastião é um produto da sua época
e a época era de crise. Longe
iam os tempos em que Portugal
dominava terras e mares com
proveitos para a coroa.
Mesmo nos anos finais de d.
Manuel 1º, ainda chamado de
"o Venturoso", havia sinais de
esgotamento, que se agravaram com d. João 3º. As possessões portuguesas eram cobiçadas pelas grandes potências européias. Os cofres do Estado
não agüentavam os encargos
ultramarinos. E só um milagre
poderia resgatar a pátria da decadência irremediável.
Esse milagre era d. Sebastião.
Ou, pelo menos, o próprio acreditava que sim, retrato fiel da
sua saúde mental. E como operar o milagre? Pela espada:
conquistando o norte de África,
ou seja, garantindo as rotas comerciais portuguesas pelo domínio do litoral africano e espalhando a Fé e o Império pelos infiéis. Curiosamente, d. Sebastião nunca formulou uma
questão prosaica: e se a sua
cruzada falhasse?
Um homem providencial
não admite falhar. E, quando o
rei partiu para Alcácer-Quibir
em 1578, a vitória, pelo menos
na cabeça dele, era certa.
Infelizmente, o diabo não
dorme em serviço, e a vitória
não aconteceu. Com um exército mal preparado e uma estratégia desastrosa ou inexistente, d. Sebastião não apenas
morria em combate; ele enterrava a dinastia de Avis e a independência de Portugal.
Morto o rei, subia ao trono o
seu tio-avô, d. Henrique, um
sexagenário religioso que, obviamente sem descendência,
apenas adiava a catástrofe.
Em 1580, a catástrofe veio:
Filipe 2º de Espanha invadia
Portugal e reunia sob a sua autoridade os dois reinos ibéricos. D. Sebastião era agora assunto de crença: haveria um
dia em que surgiria no meio da
bruma para restaurar a independência e conduzir os portugueses à grandeza perdida.
O prodígio Vieira
Antônio Vieira não ficou incólume a essa curiosa fantasia.
E, tal como d. Sebastião, ele
próprio expressou, na obra e na
ação, a crise de Portugal e do
império, mesmo depois de restaurada a independência em
1640. Nascido em Lisboa, descendente de avó negra (ou mulata), Vieira dividiu a existência
entre as duas margens do
Atlântico.
Emigrado para o Brasil aos
seis anos, entraria para a Ordem dos Jesuítas ainda na adolescência. Prodígio intelectual,
latinista ilustre, Vieira foi a testemunha da decadência lusitana, irremediável desde a morte
de d. Sebastião e que a união
ibérica dos Filipes apenas aprofundou.
No Brasil, o religioso presenciou a cobiça das possessões
portuguesas pelos holandeses;
na metrópole, confrontou-se
com as discriminações de que
eram vítimas os cristãos-novos
e que defendeu com custos pessoais e públicos.
Para Vieira, a reintegração
dos cristãos-novos na sociedade portuguesa, por ser classe
próxima dos negócios, seria
uma forma justa e inteligente
de conseguir o financiamento
de que d. João 4º necessitava
para defender e alargar o império. Sua obstinação acabaria
mesmo por conseguir a abolição da pena de confiscação dos
bens por delito de judaísmo,
um gesto que, ao retirar proventos à Inquisição e ao encaminhá-los para a Companhia
Geral do Comércio do Brasil,
não o tornou propriamente popular aos olhos do Santo Ofício.
Impulsos messiânicos
Mas seria d. Sebastião quem
atiraria Vieira para as garras inquisitoriais.
Ou, melhor dizendo, uma
particular interpretação do
messianismo sebastiânico.
Afastando-se da versão tradicional que esperava pelo rei
morto em dia de nevoeiro, Vieira projetou em d. João 4º, o primeiro dos Braganças, a personificação do Encoberto longamente esperado pelos portugueses.
E nem mesmo a morte posterior do monarca serenou os
ânimos messiânicos de Vieira:
se o rei morrera, ele acabaria
por ressuscitar, cumprindo-se
o Quinto Império. A Inquisição
não gostou desse messianismo
herético, na linha do popular
Bandarra, e privou Vieira de
voz ativa e passiva, pelo menos
temporariamente.
O processo foi longo, violento e, na verdade, Vieira nunca
mais se recuperou inteiramente dele.
Eis a história que João Lúcio
de Azevedo se propõe contar na
biografia monumental de Antônio Vieira, que chega ao Brasil em dois volumes, reproduzindo o texto da segunda edição, revista pelo autor em 1931.
Lúcio de Azevedo (1855-1933) era a pessoa certa para a
tarefa: tal como Vieira, também
o historiador dividiu a existência entre dois países.
Nascido em Sintra, emigrou
para Belém aos 18 anos. Livreiro, fez fortuna material e intelectual no Brasil, aí publicando
os seus "Estudos da História
Paraense" (1893).
Regressado a Portugal em
1900, o labor histórico de Lúcio
Azevedo continuou, abrindo
para a historiografia portuguesa caminhos inexplorados: o
seu "Épocas de Portugal Económico" (1929), ao alargar a
narrativa histórica para os territórios da economia; os seus
contributos para a "História de
Portugal" de Damião Peres; e
os seus estudos sobre o padre
Vieira consagraram Lúcio de
Azevedo como nome de referência da cultura lusitana.
A presente biografia começa
por ser um documento literário: inspirado pela sensibilidade barroca de Vieira, Lúcio de
Azevedo constrói uma odisséia
de leitura fascinante, apesar de
algumas citações latinas que
careciam de tradução (como é o
caso da epígrafe que Vieira teria composto para o túmulo de
d. João 4º).
Felizmente, existe suficiente
imaginação histórica, e até romanesca, para que Antônio
Vieira surja aos nossos olhos
como personagem complexa e
poderosamente vital nas causas que defendeu.
Origem servil
Azevedo revisita a luta do religioso contra as pretensões holandesas no Brasil, os seus esforços pela evangelização do
Maranhão, a defesa dos cristãos-novos, o longo e esgotante
processo com o Santo Ofício e,
tal como referido, o seu messianismo universalista, centrado
na figura de d. João 4º.
Mas nem tudo é matéria conhecida, pelo menos para mim.
O desconforto de Vieira com a
origem servil e a mestiçagem,
por exemplo, é cuidadosamente apresentado por Lúcio de
Azevedo como "pecado original" que teria acompanhado o
pregador durante toda a vida.
Igualmente, e na sua reputada defesa dos índios do Brasil,
Vieira percebeu que a única
forma de garantir a libertação
dos nativos passava pela distinção entre escravos "legítimos"
e "ilegítimos". Os primeiros,
capturados em "guerra justa"
ou já escravos entre os índios,
não cabia aos jesuítas resgatar
da servidão.
Uma última palavra para a
edição: em quase mil páginas,
seria impossível que não surgissem alguns erros desconfortáveis: "palava" (e não "palavra", vol. 1, pág. 89), "d. João 6º"
(e não "d. João 4º", vol. 1, pág.
181), "dernais" (e não "demais",
vol. 1, pág. 264), "estaba" (e não
"estava", vol. 1, pág. 325), "termura" (e não "ternura", vol. 2,
pág. 185), para citar apenas alguns. Espera-se que, em próximas reimpressões, esta obra de
referência possa despojar-se
dessas manchas.
HISTÓRIA DE ANTÔNIO VIEIRA
Autor: João Lúcio de Azevedo
Editora: Alameda
(tel. 0/xx/11/3862-0850)
Quanto: R$ 98 (978 págs.)
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