São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2007

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+ cinema

Caixão de surpresas

Lançamento de catálogo e retrospectiva em São Paulo reavaliam obra do diretor José Mojica Marins

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

As carreiras internacionais de cineastas como Walter Salles e Fernando Meirelles projetam imagens de sucesso que correspondem a certa expectativa de inserção do talento nacional na lógica da economia globalizada: fazer como os gringos (e às vezes em parceria com os gringos), talvez melhor do que os próprios gringos fariam.
Quem corresponderia, entre os realizadores em atividade no país, à antítese dessas trajetórias? É provável que não haja ninguém com perfil mais apropriado para o contraste do que José Mojica Marins, 71.
No percurso autodidata do criador de Zé do Caixão, que teve início com o curta-metragem amador "O Juízo Final" (1949), espelha-se, tanto nos meios de produção quanto nos modos de representação, um país que muitos ainda procuram varrer para baixo do tapete com vergonha do que pensarão as visitas do Primeiro Mundo.
O fenômeno de rejeição (e mesmo censura) a imagens "negativas" do Brasil, sedimentado na pequena burguesia, é anterior a Mojica, com raízes que se encontram já na produção ficcional e documental dos anos 1920.
Não deixa de ser curioso, entretanto, que a descoberta de seus filmes, nos EUA e na Europa, o tenha transformado, sobretudo no domínio do cinema fantástico, em artista "naïf" com prestígio de primeira grandeza: eis a cultura nacional a obter destaque incômodo para quem preferia que distinções como essa fossem atribuídas exclusivamente a representações mais condizentes com o circuito shopping Iguatemi-Barra da Tijuca.
Ele seria "nosso maior cineasta instintivo e visceral", na definição do diretor Carlos Reichenbach em depoimento para o catálogo da mostra "José Mojica Marins - Retrospectiva da Obra", que o Centro Cultural Banco do Brasil-SP promove a partir de 10/11.
Organizado e editado pelo curador da programação, Eugênio Puppo, o volume tem tamanho de livro (são 176 páginas) e espírito de fortuna crítica, em ótima hora: faz quase uma década que "Maldito - A Vida e o Cinema de José Mojica Marins" (ed. 34), dos jornalistas André Barcinski e Ivan Finotti, depois transformado em documentário, contribuiu para lançar novas luzes sobre o cineasta.
Na longa entrevista que abre o catálogo, concedida a Puppo, Arthur Autran e Daniela Senador em abril e maio deste ano, Mojica vai da infância em uma chácara da Vila Mariana à realização do ainda inédito "Encarnação do Demônio", sua produção "mais rica e perfeita", rodada em 2006 com base em roteiro cuja versão original foi escrita nos anos 60.
Quase seis décadas do cinema paulista, com ênfase no núcleo de realização da Boca do Lixo, são revividos com prazer por detalhes em torno da escolha de uma atriz, do dinheiro surrupiado por um produtor inescrupuloso, de uma gigantesca sala de cinema desativada que se transformou em locação para o inferno e de um modo de sobrevivência em que os lucros de um filme possibilitavam a realização do próximo.

Ensaios e depoimentos
Uma bateria de 30 artigos escritos por 11 colaboradores -entre eles, o crítico da Folha Inácio Araujo - analisa os filmes de Mojica como diretor bem como aqueles em que trabalhou apenas como ator.
O esforço vai muito além de apenas reavaliar clássicos como "À Meia-Noite Levarei Sua Alma" (1964) e "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" (1966), examinando preciosidades pré-Zé do Caixão, como "A Sina do Aventureiro" (1958) e "Meu Destino em Tuas Mãos" (1962), transgressões como "O Despertar da Besta (Ritual dos Sádicos)" (1969) e "Finis Hominis" (1971), e incursões particulares na pornochanchada, como "Mundo -Mercado do Sexo (Manchete de Jornal)" (1978), e na pornografia, como "24 Horas de Sexo Explícito" (1985) e "48 Horas de Sexo Alucinante" (1987).
Um dos artigos, de Carlos Primati, lembra a experiência de Mojica na TV, nos programas "Além, Muito Além do Além", "O Estranho Mundo de Zé do Caixão", "Um Show do Outro Mundo" e "Cine Trash".
Primati assina também a filmografia, que inclui filmes inacabados, perdidos e não-creditados, e um "dicionário do cinema fantástico".
Há ainda três ensaios panorâmicos e meia dúzia de depoimentos, entre os quais os de Reichenbach (para quem Mojica "deu sentido" à existência do cinema como "expressão dos nossos instintos e sensações essenciais, como uma arte que pode nascer dos sentimentos mais rudimentares e genuínos") e do também cineasta Gustavo Dahl.
"O cinema experimental brasileiro dos anos 70 (Bressane, Sganzerla, Neville, Ivan Cardoso) o teve como uma referência", observa Dahl.
"Enquanto houve a Boca do Lixo, Mojica foi um de seus reis, um rei da noite."


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