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+ cinema
Caixão de surpresas
Lançamento de catálogo e retrospectiva em São Paulo reavaliam obra do diretor
José Mojica Marins
SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
As carreiras internacionais de cineastas
como Walter Salles
e Fernando Meirelles projetam imagens de sucesso que correspondem a certa expectativa de inserção do talento nacional na
lógica da economia globalizada: fazer como os gringos (e às
vezes em parceria com os gringos), talvez melhor do que os
próprios gringos fariam.
Quem corresponderia, entre
os realizadores em atividade no
país, à antítese dessas trajetórias? É provável que não haja
ninguém com perfil mais apropriado para o contraste do que
José Mojica Marins, 71.
No percurso autodidata do
criador de Zé do Caixão, que teve início com o curta-metragem amador "O Juízo Final"
(1949), espelha-se, tanto nos
meios de produção quanto nos
modos de representação, um
país que muitos ainda procuram varrer para baixo do tapete
com vergonha do que pensarão
as visitas do Primeiro Mundo.
O fenômeno de rejeição (e
mesmo censura) a imagens
"negativas" do Brasil, sedimentado na pequena burguesia, é
anterior a Mojica, com raízes
que se encontram já na produção ficcional e documental dos
anos 1920.
Não deixa de ser curioso, entretanto, que a descoberta de
seus filmes, nos EUA e na Europa, o tenha transformado,
sobretudo no domínio do cinema fantástico, em artista "naïf"
com prestígio de primeira
grandeza: eis a cultura nacional
a obter destaque incômodo para quem preferia que distinções como essa fossem atribuídas exclusivamente a representações mais condizentes
com o circuito shopping Iguatemi-Barra da Tijuca.
Ele seria "nosso maior cineasta instintivo e visceral", na
definição do diretor Carlos
Reichenbach em depoimento
para o catálogo da mostra "José Mojica Marins - Retrospectiva da Obra", que o Centro
Cultural Banco do Brasil-SP
promove a partir de 10/11.
Organizado e editado pelo
curador da programação, Eugênio Puppo, o volume tem tamanho de livro (são 176 páginas) e espírito de fortuna crítica, em ótima hora: faz quase
uma década que "Maldito - A
Vida e o Cinema de José Mojica
Marins" (ed. 34), dos jornalistas André Barcinski e Ivan Finotti, depois transformado em
documentário, contribuiu para
lançar novas luzes sobre o cineasta.
Na longa entrevista que abre
o catálogo, concedida a Puppo,
Arthur Autran e Daniela Senador em abril e maio deste ano,
Mojica vai da infância em uma
chácara da Vila Mariana à realização do ainda inédito "Encarnação do Demônio", sua
produção "mais rica e perfeita", rodada em 2006 com base
em roteiro cuja versão original
foi escrita nos anos 60.
Quase seis décadas do cinema paulista, com ênfase no núcleo de realização da Boca do
Lixo, são revividos com prazer
por detalhes em torno da escolha de uma atriz, do dinheiro
surrupiado por um produtor
inescrupuloso, de uma gigantesca sala de cinema desativada
que se transformou em locação
para o inferno e de um modo de
sobrevivência em que os lucros
de um filme possibilitavam a
realização do próximo.
Ensaios e depoimentos
Uma bateria de 30 artigos escritos por 11 colaboradores
-entre eles, o crítico da Folha
Inácio Araujo - analisa os filmes de Mojica como diretor
bem como aqueles em que trabalhou apenas como ator.
O esforço vai muito além de
apenas reavaliar clássicos como "À Meia-Noite Levarei Sua
Alma" (1964) e "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver"
(1966), examinando preciosidades pré-Zé do Caixão, como
"A Sina do Aventureiro" (1958)
e "Meu Destino em Tuas
Mãos" (1962), transgressões
como "O Despertar da Besta
(Ritual dos Sádicos)" (1969) e
"Finis Hominis" (1971), e incursões particulares na pornochanchada, como "Mundo
-Mercado do Sexo (Manchete
de Jornal)" (1978), e na pornografia, como "24 Horas de Sexo
Explícito" (1985) e "48 Horas
de Sexo Alucinante" (1987).
Um dos artigos, de Carlos
Primati, lembra a experiência
de Mojica na TV, nos programas "Além, Muito Além do
Além", "O Estranho Mundo de
Zé do Caixão", "Um Show do
Outro Mundo" e "Cine Trash".
Primati assina também a filmografia, que inclui filmes inacabados, perdidos e não-creditados, e um "dicionário do cinema fantástico".
Há ainda três ensaios panorâmicos e meia dúzia de depoimentos, entre os quais os de
Reichenbach (para quem Mojica "deu sentido" à existência do
cinema como "expressão dos
nossos instintos e sensações
essenciais, como uma arte que
pode nascer dos sentimentos
mais rudimentares e genuínos") e do também cineasta
Gustavo Dahl.
"O cinema experimental brasileiro dos anos 70 (Bressane,
Sganzerla, Neville, Ivan Cardoso) o teve como uma referência", observa Dahl.
"Enquanto houve a Boca do
Lixo, Mojica foi um de seus
reis, um rei da noite."
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