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A enorme popularidade do escritor na República Velha esclarece a sociedade
brasileira da época
Eça entre bacharéis
EVALDO CABRAL DE MELLO
especial para a Folha
Um dos mais reveladores fenômenos culturais da história brasileira foi a popularidade de que a
obra de Eça de Queirós desfrutou
entre nós, dos anos 70 do século
19, que vêem a publicação dos
seus primeiros romances, aos
meados do século 20. Há cem
anos, o "Diário de Notícias" publicava os resultados de um inquérito, segundo o qual Eça era
incomparavelmente mais lido do
que todos os outros autores, nacionais ou estrangeiros, inclusive
Machado de Assis. A geração dos
sessentões atuais ainda se lembra
de pais ou de tios que não só possuíam as obras do homem da Póvoa de Varzim nas velhas edições
da Casa Chardron, do Porto, como conheciam intimamente as
personagens e as situações, Teodorico viajando à Terra Santa para satisfazer a carolice da tia rica
de olho na sua herança, Gonçalo
Mendes Ramires fazendo vistas
grossas ao adultério da irmã para
garantir uma cadeira de deputado
em São Bento, o velho Afonso da
Maia tocaiando o neto de regresso
da relação incestuosa.
Vários desses sessentões fizeram sua primeira excursão literária lendo "O Mandarim" ou "A
Cidade e as Serras" ("A Relíquia"
era reputada obra só para adultos), tomados por empréstimo à
biblioteca de algum magistrado
de província, nos bons tempos
em que os magistrados de província possuíam biblioteca e tinham
cultura geral. Mas de todos os
exemplos da popularidade do romancista português, nenhum é
mais comovedor do que o de certo homem de letras, que, sentindo
próxima a vinda da indesejada
das gentes, foi surpreendido a reler todo o Eça, para despedir-se,
explicava, dos seus personagens.
Todo leitor devia, aliás, fazer o
mesmo com o autor da sua predileção; e os historiadores, com as
figuras históricas de que se ocuparam ao longo da vida e que, no final das contas, conheceram mais
intimamente do que muitos dos
seus amigos e parentes.
Os livros que uma sociedade
consome são frequentemente
mais reveladores do que os livros
que ela produz. Os leitores brasileiros de Eça eram basicamente a
burguesia de letrados, profissionais liberais, magistrados, funcionários públicos, professores, do
fim do Império e da República
Velha, que a crise da economia
agrária e escravocrata, mas também a atração da vida urbana, haviam fixado nas capitais de província. Numa economia como era
então a brasileira, o emprego público em especial, que já Nabuco
estigmatizara como o viveiro das
fortunas arruinadas pela escravidão, proporcionou durante muito tempo, num quadro de moeda
estável, a garantia de um rendimento decente e vitalício, algo impensável em termos da cultura inflacionária dos últimos decênios.
Dada a sua posição relativamente
privilegiada, essas categorias sócio-profissionais desenvolveram
o que se poderia chamar uma
mentalidade de rentista, categoria
de que, na realidade, o Brasil era
escasso e de que elas se tornaram
o equivalente funcional. O ordenado do funcionário público graduado era assim o "Ersatz" da
renda estrito senso. Foram essas
camadas que, bem ou mal, absorveram cultura estrangeira e produziram a cultura nacional antes
e depois do Modernismo.
Ora, como há muito acentuou
Antônio Sérgio, o problema existencial dos personagens centrais
da ficção eciana consiste na sua
"inutilidade", no resultante "tédio
do ócio", no diletantismo, na falta
do princípio de "uma unidade ativa" que os leve à ação, precisamente o tipo de dilema que caracteriza o burocrata numa sociedade em que a função precípua do
Estado não consiste em prestar
serviços, mas em "colocar", como
se dizia expressivamente, isto é,
em garantir o "statu" dos rebentos do decadente patriciado agrário.
Lendo, por exemplo, "A Ilustre
Casa de Ramires", nossos pais e
avós da República Velha terão
pressentido o que havia de comum entre eles e o herói do romance. Gonçalo Mendes Ramires
é o herdeiro de uma família histórica, que resume a existência portuguesa desde os tempos de d.
Afonso Henrique, mas o modesto
rendimento das suas terras nortenhas apenas lhe permite hospedar-se no Hotel Bragança em raras fugas a Lisboa, retendo-o, a
maior parte do tempo, no "seu
buraco rural", onde vegeta entre
sua torre várias vezes secular e a
vizinha cidade de Oliveira, sede
do distrito. O canudo de bacharel
de Coimbra abre-lhe, em princípio, a perspectiva de uma carreira
monotonamente administrativa,
mas como possui veleidades literárias, imagina instrumentalizá-las para realizar a ambição maior
de uma carreira política, vista à
época como a coroação do talento
literário, não da vocação política
estrito senso. O que, seja dito de
passagem, é também fenômeno
muito nosso, a explicar boa parte
do que a cultura brasileira tem de
inautenticidade, de vez que a atividade cultural, inclusive na sua
vertente universitária, foi e continua a ser vista como trampolim
para a vida pública. O desejo inconfessado de ser ministro, deputado ou senador ainda habita secretamente a grande maioria dos
intelectuais brasileiros.
Quem é o aficionado da sociologia do romance que não enxerga
no Fidalgo da Torre o descendente de muita família senhorial do
tempo de d. Pedro 2º e do dr. Rodrigues Alves? Concluído o curso
de direito, não lhe sobravam alternativas: a magistratura e a advocacia, uma intensamente disputada, outra, ainda pouco
atraente financeiramente; ou o regresso ao campo, associado à família na exploração do engenho
de açúcar ou da fazenda de café,
regresso que resultava frequentemente penoso, de vez que o título
superior criara expectativas excessivas em termos das oportunidades existentes, para não falar
em que os anos de estudo na cidade faziam nascer o desapego,
quando não a pura e simples rejeição, à vida rural.
É certo que se poderia argumentar que o romance de Machado de Assis (que aparente coincidência!) também poderia ser analisado segundo a teoria da inutilidade dos personagens. É inegável,
contudo, que ele só viria a se tornar tão lido quanto Eça muito depois do triunfo deste no Brasil,
que lhe deu um público bem mais
amplo que o de Portugal, onde até
recentemente ainda era válida a
observação feita por Unamuno
em 1908 de que os compatriotas
de Eça olhavam de esguelha para
seus livros, considerados demasiado irreverentes com o país.
Sobravam, aliás, razões para isso. Eça, Ramalho, Oliveira Martins pertenceram a uma geração
tão estrangeirada como a que ficara célebre no século 18 ou a que
colaborara com os invasores franceses nos começos do 19. Na sua
comicidade, há poucas páginas
tão cruéis sobre um povo como a
descrição em "Os Maias" de uma
corrida de cavalos em Lisboa. A
leitura de "Os Maias" torna-se,
aliás, muito mais enriquecedora
se feita paralelamente à do "Portugal Contemporâneo", de Oliveira Martins. É inegável que tanto
nessa obra como na "História de
Portugal" do mesmo autor, Eça
encontrou uma visão do país e do
seu passado, cuja dramaticidade
retocou com a camada de humor
e de ironia que a tornou menos
desesperante e que lhe permitiu,
nos seus últimos livros, reconciliar-se com a realidade nacional.
Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata aposentado. É autor, entre outros, de "Rubro Veio", "Olinda Restaurada" e "O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na Folha.
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