São Paulo, Domingo, 14 de Novembro de 1999
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A enorme popularidade do escritor na República Velha esclarece a sociedade brasileira da época
Eça entre bacharéis

EVALDO CABRAL DE MELLO
especial para a Folha

Um dos mais reveladores fenômenos culturais da história brasileira foi a popularidade de que a obra de Eça de Queirós desfrutou entre nós, dos anos 70 do século 19, que vêem a publicação dos seus primeiros romances, aos meados do século 20. Há cem anos, o "Diário de Notícias" publicava os resultados de um inquérito, segundo o qual Eça era incomparavelmente mais lido do que todos os outros autores, nacionais ou estrangeiros, inclusive Machado de Assis. A geração dos sessentões atuais ainda se lembra de pais ou de tios que não só possuíam as obras do homem da Póvoa de Varzim nas velhas edições da Casa Chardron, do Porto, como conheciam intimamente as personagens e as situações, Teodorico viajando à Terra Santa para satisfazer a carolice da tia rica de olho na sua herança, Gonçalo Mendes Ramires fazendo vistas grossas ao adultério da irmã para garantir uma cadeira de deputado em São Bento, o velho Afonso da Maia tocaiando o neto de regresso da relação incestuosa.
Vários desses sessentões fizeram sua primeira excursão literária lendo "O Mandarim" ou "A Cidade e as Serras" ("A Relíquia" era reputada obra só para adultos), tomados por empréstimo à biblioteca de algum magistrado de província, nos bons tempos em que os magistrados de província possuíam biblioteca e tinham cultura geral. Mas de todos os exemplos da popularidade do romancista português, nenhum é mais comovedor do que o de certo homem de letras, que, sentindo próxima a vinda da indesejada das gentes, foi surpreendido a reler todo o Eça, para despedir-se, explicava, dos seus personagens. Todo leitor devia, aliás, fazer o mesmo com o autor da sua predileção; e os historiadores, com as figuras históricas de que se ocuparam ao longo da vida e que, no final das contas, conheceram mais intimamente do que muitos dos seus amigos e parentes.
Os livros que uma sociedade consome são frequentemente mais reveladores do que os livros que ela produz. Os leitores brasileiros de Eça eram basicamente a burguesia de letrados, profissionais liberais, magistrados, funcionários públicos, professores, do fim do Império e da República Velha, que a crise da economia agrária e escravocrata, mas também a atração da vida urbana, haviam fixado nas capitais de província. Numa economia como era então a brasileira, o emprego público em especial, que já Nabuco estigmatizara como o viveiro das fortunas arruinadas pela escravidão, proporcionou durante muito tempo, num quadro de moeda estável, a garantia de um rendimento decente e vitalício, algo impensável em termos da cultura inflacionária dos últimos decênios. Dada a sua posição relativamente privilegiada, essas categorias sócio-profissionais desenvolveram o que se poderia chamar uma mentalidade de rentista, categoria de que, na realidade, o Brasil era escasso e de que elas se tornaram o equivalente funcional. O ordenado do funcionário público graduado era assim o "Ersatz" da renda estrito senso. Foram essas camadas que, bem ou mal, absorveram cultura estrangeira e produziram a cultura nacional antes e depois do Modernismo.
Ora, como há muito acentuou Antônio Sérgio, o problema existencial dos personagens centrais da ficção eciana consiste na sua "inutilidade", no resultante "tédio do ócio", no diletantismo, na falta do princípio de "uma unidade ativa" que os leve à ação, precisamente o tipo de dilema que caracteriza o burocrata numa sociedade em que a função precípua do Estado não consiste em prestar serviços, mas em "colocar", como se dizia expressivamente, isto é, em garantir o "statu" dos rebentos do decadente patriciado agrário.
Lendo, por exemplo, "A Ilustre Casa de Ramires", nossos pais e avós da República Velha terão pressentido o que havia de comum entre eles e o herói do romance. Gonçalo Mendes Ramires é o herdeiro de uma família histórica, que resume a existência portuguesa desde os tempos de d. Afonso Henrique, mas o modesto rendimento das suas terras nortenhas apenas lhe permite hospedar-se no Hotel Bragança em raras fugas a Lisboa, retendo-o, a maior parte do tempo, no "seu buraco rural", onde vegeta entre sua torre várias vezes secular e a vizinha cidade de Oliveira, sede do distrito. O canudo de bacharel de Coimbra abre-lhe, em princípio, a perspectiva de uma carreira monotonamente administrativa, mas como possui veleidades literárias, imagina instrumentalizá-las para realizar a ambição maior de uma carreira política, vista à época como a coroação do talento literário, não da vocação política estrito senso. O que, seja dito de passagem, é também fenômeno muito nosso, a explicar boa parte do que a cultura brasileira tem de inautenticidade, de vez que a atividade cultural, inclusive na sua vertente universitária, foi e continua a ser vista como trampolim para a vida pública. O desejo inconfessado de ser ministro, deputado ou senador ainda habita secretamente a grande maioria dos intelectuais brasileiros.
Quem é o aficionado da sociologia do romance que não enxerga no Fidalgo da Torre o descendente de muita família senhorial do tempo de d. Pedro 2º e do dr. Rodrigues Alves? Concluído o curso de direito, não lhe sobravam alternativas: a magistratura e a advocacia, uma intensamente disputada, outra, ainda pouco atraente financeiramente; ou o regresso ao campo, associado à família na exploração do engenho de açúcar ou da fazenda de café, regresso que resultava frequentemente penoso, de vez que o título superior criara expectativas excessivas em termos das oportunidades existentes, para não falar em que os anos de estudo na cidade faziam nascer o desapego, quando não a pura e simples rejeição, à vida rural.
É certo que se poderia argumentar que o romance de Machado de Assis (que aparente coincidência!) também poderia ser analisado segundo a teoria da inutilidade dos personagens. É inegável, contudo, que ele só viria a se tornar tão lido quanto Eça muito depois do triunfo deste no Brasil, que lhe deu um público bem mais amplo que o de Portugal, onde até recentemente ainda era válida a observação feita por Unamuno em 1908 de que os compatriotas de Eça olhavam de esguelha para seus livros, considerados demasiado irreverentes com o país.
Sobravam, aliás, razões para isso. Eça, Ramalho, Oliveira Martins pertenceram a uma geração tão estrangeirada como a que ficara célebre no século 18 ou a que colaborara com os invasores franceses nos começos do 19. Na sua comicidade, há poucas páginas tão cruéis sobre um povo como a descrição em "Os Maias" de uma corrida de cavalos em Lisboa. A leitura de "Os Maias" torna-se, aliás, muito mais enriquecedora se feita paralelamente à do "Portugal Contemporâneo", de Oliveira Martins. É inegável que tanto nessa obra como na "História de Portugal" do mesmo autor, Eça encontrou uma visão do país e do seu passado, cuja dramaticidade retocou com a camada de humor e de ironia que a tornou menos desesperante e que lhe permitiu, nos seus últimos livros, reconciliar-se com a realidade nacional.


Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata aposentado. É autor, entre outros, de "Rubro Veio", "Olinda Restaurada" e "O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na Folha.

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