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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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Ponto de fuga

Mal contado

A filologia leva ao crime, escreveu Ionesco numa peça. Está claro, muita coisa ótima se descobriu graças a pacientes pesquisadores, que fuçam bibliotecas e arquivos em busca de manuscritos, controlando diferentes versões de uma obra.
Esse trabalho sapiente, porém, às vezes tende a se impor como "verdade" autêntica, atropelando tradições, percebidas como espúrias e desprezadas em nome do rigor científico. Esquece-se, então, de duas coisas. Primeiro, que rigor não é verdade, e qualquer edição crítica será sempre e apenas uma hipótese. Segundo, que a verdade da arte é outra, depende de uma intuição cujas escolhas não se acomodam em esquemas e métodos, mas se alimentam de cultura vivida. Tais debates são muito audíveis no campo da musicologia. Partindo da idéia de que é preciso restaurar partituras tal como, imagina-se, o autor teria concebido ou desejado, chega-se a mostrengos. Soterra-se a beleza de composições que contaram com a sabedoria das tradições interpretativas para alcançarem uma perfeição frágil.
Mais uma vez: muitas obras ganharam com revisões. Um exemplo: a ópera esquecida de Rossini, "Il Viaggio a Reims", restaurada há alguns anos, impôs-se no mundo inteiro e incorporou-se ao repertório dos teatros. Várias, no entanto, sucumbem ao tratamento: foi assim com "Il Guarany", que perdeu sua chance, alavancada por Placido Domingo, de projetar-se de modo definitivo graças às apresentações de Bonn e Washington, porque as escolhas musicológicas transformaram aquilo numa bobagem.
Em ópera, sobretudo, nunca se deveria fazer tábula rasa do passado teatral de uma obra.

Notas - Offenbach foi um compositor de óperas engraçadíssimas. Fizeram enorme sucesso: para se ter uma idéia, o endiabrado cancã de "Orfeu nos Infernos" virou emblema sonoro da França, universalmente conhecido. Offenbach [1819-1880], alemão de origem, tornou-se uma figura do parisianismo mundano e festeiro do Segundo Império; Édouard Manet o incluiu no público que pinta em seu quadro "Música nas Tulherias".
Mas Offenbach tinha ambição de compor música mais alta e o conseguiu com sua ópera dramática, "Os contos de Hoffmann", inspirada em histórias do célebre escritor fantástico. O compositor morreu pouco antes de terminar a obra. Incompleto, o manuscrito conheceria diversas versões até se fixar na edição de 1907, que confirmou, durante décadas, a obra-prima.
Baseada em novas descobertas, uma restauração, proposta pelo musicólogo Michael Kaye, foi escolhida para a última ópera do ano no Teatro Municipal de São Paulo. Deixou de ser uma obra-prima: longa demais, intercalando diálogos falados insignificantes que entrecortam a música, perdeu em concisão e fluência. Revelou algumas belas páginas, mas a força viva da arte cedeu, muitas vezes, à secura erudita, capaz de crueldade insensível. Assim, cortou-se o "Scintille Diamant": não importa como esse trecho veio parar na ópera; ele é tão admirável que nunca deveria ser excluído.
Pena tudo isso, porque o elenco brasileiro defendeu bem a partitura e o maestro Jamil Maluf, inspirado, deixou a Orquestra Experimental de Repertório cheia de brilhos. Numa versão mais sucinta, os intérpretes teriam ainda melhor convicção.

Tudo - O "Grand Dictionnaire Universel de Pierre Larousse" é uma autêntica enciclopédia borgiana, em que todo o saber humano de uma época parece estar contido. Publicado entre 1863 e 1890, vinha em enormes volumes vermelhos. Mas a consulta, pelo papel frágil, pela letra miúda, pelo tamanho dos livros, não era cômoda. Foi lançado em DVD-ROM (ed. Redon), com reprodução fac-similar das páginas. A pesquisa virou diversão.

Citação - Trecho do verbete "filologia", do velho Larousse: "Sem dúvida, a filologia é, forçosamente, uma exibição de saber; sem dúvida conduz, mais de uma vez, a pesquisas sem interesse ou sem medida; sem dúvida, para dizer tudo, alguns filólogos são, ao mesmo tempo, pedantes; mas, se, com esse defeito ridículo, chegam, no entanto, a restabelecer o sentido esquecido dos textos (...), prestam serviços relevantes".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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