|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ruído industrial
MATRIZ
DA MÚSICA ELETRÔNICA, TECNO
TRANSPÔS
PARA
AS PISTAS
A CULTURA
DAS LINHAS
DE MONTAGEM
QUE
MARCARAM
A HISTÓRIA
DA CIDADE
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
O tecno foi inventado como veículo
pós-humano, máquina de transporte para a distopia.
E Detroit foi a sua linha de
montagem.
Matriz dos infinitos subgêneros da música eletrônica dirigida a pistas de dança, a
emergência dessa mistura de
funk minimalista aos ritmos
maquínicos do Kraftwerk na
Detroit do início dos anos 80 é
explicada por um de seus criadores como efeito da privação
sensorial e cultural da cidade.
"É o vazio na cidade que
preenche a música. É como um
cego -cheira, toca e sente coisas da maneira que quem enxerga nunca faz. Acredito que
muitos de nós em Detroit estávamos cegados pelo que havia
ao nosso redor. Foi como se pegássemos os outros sentidos e
os tornássemos mais fortes.
Foi assim que nossa música se
desenvolveu", define Derrick
May ao jornalista britânico Simon Reynolds no livro "Energy
Flash" [Lampejo de Energia,
ed. Picador], em que Reynolds
conta sobre os desdobramentos da dance music.
Para o pesquisador musical
Mike Rubin, nascido em Detroit, "o jogo de forças na origem do tecno reflete o desacordo na cidade na qual ele emergiu. Detroit ainda se recuperava dos efeitos dos confrontos
de julho de 1967, quando uma
invasão policial de um bar desencadeou cinco dias de violência inter-racial -o mais sério
confronto civil nos EUA antes
dos ocorridos em Los Angeles
em 1992".
"A fuga dos brancos para os
subúrbios já estava acontecendo, mas os distúrbios aceleraram o abandono progressivo da
cidade.
Nos primeiros 20 anos após
aqueles confrontos, Detroit
perdeu cerca de um terço de
sua população. Uma cidade
construída para abrigar 2 milhões de pessoas ficou reduzida
a menos da metade disso."
"Em apenas uma geração, a
população de Detroit mudou
de 70% de brancos para quase
80% de negros. Depois, devastada pela indústria automobilística em declínio e com taxas
de desemprego rumo à Lua,
mais da metade do conjunto
industrial e comercial havia desaparecido por volta de 1987."
"O termo correto para descrever isso seria "desindustrialização", mas "cidade fantasma"
é mais adequado. Em vez de
terra sem lei, como a cidade era
definida pela mídia nacional, o
sentimento predominante em
Detroit era o de um vazio assustador. Ironicamente, foi o
mesmo processo de automação, informatização, robotização e avanços tecnológicos na
produção que causaram a perda dos cargos executivos e abriram o caminho para a entrada
em cena do tecno."
Outro nativo de Detroit, o
jornalista Dan Sicko, autor de
"Techno Rebels" [Rebeldes do
Tecno, ed. Billboard], colunista
da "XLR8R" e colaborador do
blog http://moodmat.com,
aponta outras nuanças.
"A partir de uma perspectiva
social, o tecno é um fenômeno
específico. Ele é claramente resultado das classes médio-altas
e médias afro-americanas e
não é um produto das ruas ou
de nada que se aproxime de algo assim tão poético."
"Por outro lado, dadas as
condições econômicas de Detroit nos anos 70, é certo que
foi ali que ele encontrou seu lugar. As condições econômicas
da "cidade que encolhe" cada
vez mais acarretaram a desativação de muitos espaços sociais ocupados pelos adolescentes naquele momento."
"Boa parte da cultura tecno
nasceu em festas promovidas
por aqueles garotos para suas
turmas."
"O último e talvez mais importante fator, eu diria, foi a
"abertura" dos programas de rádio do final dos anos 70 até o
fim dos 80. O público de todas
as idades e todos os grupos étnicos de Detroit estava exposto
a uma variedade musical muito
mais ampla do que hoje."
Em relação aos outros antecedentes musicais da cidade,
como a Motown e o protopunk
dos Stooges e do MC5, Reynolds aponta a ligação deles
com o tecno "por meio da aura
maquínica da música, que tem
a ver com a proximidade da indústria automobilística e com o
modelo fordista de produção,
assim como a influência do automóvel e do próprio ato de dirigir no ritmo musical".
Sicko prefere enxergar na
marginalidade cultural da cidade a raiz dessa exuberância.
"Detroit não está em nenhuma das costas. A indústria do
entretenimento é completamente controlada a partir de
Nova York e Los Angeles. Por
isso, cidades como Detroit permitem crescer e amadurecer
seus talentos fora dos holofotes, e o produto final se torna
bem mais interessante, original e nuançado", defende.
Texto Anterior: Um lugar difícil de viver Próximo Texto: Vocalista dos Inocentes, Clemente fala da influência do punk de Detroit Índice
|