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Detroit destruída
DESEMPREGADOS LEMBRAM COM NOSTALGIA DOS TEMPOS ÁUREOS
DA REGIÃO, QUE HOJE AGONIZA COM A PIOR CRISE
DA HISTÓRIA DE FORD, CHRYSLER E GENERAL MOTORS
NATHALIE BRAFMAN
Depois de um período longo fazendo
apenas alguns bicos, Susan, 50, mas
ainda elegante, encontrou trabalho no salão de
beleza mais chique da cidade.
É uma oportunidade imperdível, em se tratando de Flint,
Michigan, uma das cidades
mais duramente atingidas pelo
marasmo que acomete o setor
automotivo americano.
Esse, aliás, é um assunto que
Susan conhece de cor. Seu marido deixou a General Motors
no ano passado. Seu pai passou
mais de 40 anos trabalhando
na cadeia de produção.
"Durante esses anos todos,
ele produziu milhões de Chevrolets. A GM não era apenas a
maior empregadora da cidade
-para muitas famílias, era a
única. As pessoas sentiam um
orgulho enorme em trabalhar
para a empresa."
Seus dois irmãos mais jovens
conseguiram conservar seus
empregos. "Mas até quando?",
pergunta Susan em voz embargada. "Eu queria poder falar
com Rick Wagoner [presidente
da GM] e lhe dizer o que sinto.
Eles não enxergaram nada do
que estava acontecendo. Continuaram a inundar o mercado
de carros grandes que ninguém
mais quer comprar."
Conhecida no passado pelo
apelido de Buick City, graças ao
nome da famosa marca da General Motors, Flint vive uma
agonia que não tem fim. A
maior parte dos operários não
qualificados, em sua maioria
negros, não encontrou outros
empregos e faz fila para tomar
o sopão dos pobres.
Por não conseguirem pagar
suas prestações, os moradores
ou abandonaram suas casas ou
foram despejados.
A cem quilômetros dali, Detroit oferece um cenário semelhante: o de uma cidade fantasma. Entretanto ela é o berço da
indústria automobilística americana, o lugar onde foram implantadas as "Big Three" [Três
Grandes], como são conhecidas as três maiores montadores do país: Ford, Chrysler e
General Motors.
Troca de turnos
Passa um pouco das 15h na
fábrica Ford Rouge de Dearborn, um subúrbio de Detroit.
Nesse complexo gigante, de onde saíram os míticos Ford T e
Ford Thunderbird, é hora da
troca de turnos. A grande maioria dos operários votou no democrata Barack Obama.
"Sou da Virgínia. Dois anos
atrás, quando a Ford resolveu
fechar a fábrica de Norfolk, encontrei trabalho aqui", conta
Joe Louis (nome falso), operário da Ford há 24 anos.
"Tenho 40 anos e dois filhos.
É claro que tenho medo de perder meu emprego. Só posso fazer figas e torcer para que a
gente consiga sair desta."
De calça "baggy", cabelos
presos em rabo-de-cavalo e
bandana amarrada na cabeça,
James McMican, com 20 anos
de história na Ford, parece ter
uma atitude mais fatalista.
"Se acabarem conosco, todo
o mundo será afetado. Os políticos estão confortáveis em
suas casas e não se dão conta
das conseqüências que isso terá
para toda a indústria. Mas sou
um sobrevivente."
Não é a primeira crise pela
qual passa o setor automotivo
dos EUA. Nos últimos 20 anos,
a GM eliminou aproximadamente 300 mil horas de trabalho. Desde 2005, as Três Grandes já eliminaram nada menos
que 100 mil postos de trabalho.
O Estado de Michigan detém o
triste recorde de maior índice
de desemprego do país: 9%.
À medida que ocorriam os
planos sociais, os operários da
gigante GM se tornaram nômades. "Foram batizados de "ciganos'", explica Chuck Ricci, colarinho azul há 32 anos.
"São milhares de trabalhadores que já mudaram de cidade
sete ou oito vezes, segundo os
fechamentos de fábricas ou as
reduções do quadro de empregados. Se a GM ou a Ford fecharem mais fábricas, muitos operários vão migrar novamente,
mas será que ainda haverá trabalho para eles?"
De acordo com Sean McAlinden, economista do Centro de
Pesquisas sobre o Setor Automotivo, em Ann Arbor, 80 mil
trabalhadores da GM já percorreram mais de 500 quilômetros
para encontrar outro trabalho.
Alguns vivem em meio a caixotes, sem instalar-se verdadeiramente em lugar nenhum,
por medo de serem obrigados a
pôr o pé na estrada outra vez.
Nomadismo
"Estou preparado para partir, se for preciso. Mas acabo de
pagar minha casa. Quem vai
querer comprá-la? E por que
preço? Ela não vale mais nada!
O setor imobiliário está morto
aqui", queixa-se Edward, operário da Chrysler.
Esses "ciganos da GM" e seus
colegas na Ford e na Chrysler
são, em sua maioria, filhos e filhas de operários da indústria
automotiva, de pessoas que trabalharam em uma só fábrica
até se aposentarem e prometeram a seus filhos que com eles
seria a mesma coisa.
Para Gary Chaison, professor
especializado em sindicalismo
na Universidade Clark (Massachusetts), os operários vêem
seu emprego nas fábricas de automóveis como um bem, algo
que pode ser transmitido de pai
para filho.
Desta vez, porém, a crise é
muito grave. É possível até
mesmo que seja a última. As
vendas não param de cair. As
montadoras americanas perderam mais de 10% de participação no mercado em dois anos.
Nos tempos áureos, nos anos
1950, a participação da GM no
mercado dos EUA era de 45%.
Em 2008, deverá cair para menos de 28%. Um veículo em cada dois comprados nos EUA é
de fabricação estrangeira.
A GM anuncia a ameaça de
falência; Ford e Chrysler prevêem grandes dificuldades se
não receberem ajuda governamental. As três montadoras
prevêem acabar com dezenas
de milhares de empregos.
"Já fizemos sacrifícios e estamos dispostos a fazer ainda
mais, mas os dirigentes também precisam apertar os cintos", diz Edward. "Não me incomoda que a direção ganhe
muito bem, mas há inúmeros
executivos que ganham milhões de dólares."
Robert Nardelli, presidente
da Chrysler, já declarou que se
dispõe a receber apenas US$ 1
por ano. "Francamente, você
acha que isso me comove? No
máximo me faz rir", solta Matt
Davidson, empregado da
Chrysler há mais de 30 anos.
"Com tudo o que já ganhou,
mesmo com US$ 1 por ano ele
vai viver muito bem até o fim de
seus dias", prossegue, lembrando que Nardelli saiu de sua última empresa com mais de US$
200 milhões.
Diante da idéia de que a indústria que já foi o orgulho dos
EUA possa estar prestes a ser
descartada, os operários concentram seu ressentimento
contra a classe política.
Desprezo
"Eles entregaram US$ 150 bilhões de nossos impostos à seguradora AIG sem que ela tenha precisado explicar por que
perdeu tanto dinheiro. Já nós
podemos explicar nossa situação: não estamos vendendo
carros suficientes, o mercado
está em crise. Mesmo que seja
difícil de aceitar, será preciso
reduzir ainda mais o número
de operários, modelos e concessionárias", admite Rod Reid,
50, antigo dono de restaurante
que há 17 anos mudou de ramo,
tornando-se operário da GM.
Os operários não agüentam
mais ser desprezados. Sofrem
por se sentirem rejeitados não
só pelos políticos, mas também
pela própria população americana. Têm saudades dos bons e
velhos tempos em que representavam a aristocracia da indústria automobilística.
"Muita gente não gosta de
nós. Acho terrível que quase
metade dos americanos não
queira ajudar sua indústria automobilística. Eles não se importam de perdermos tudo",
suspira Larry, operário da usina Ford Rouge há 35 anos.
"As pessoas nos olham como
se fôssemos os vilões da história. Nós, que trabalhamos como
cães para erguer essa indústria!", exclama Chuck.
A maioria dos operários tende a refugiar-se atrás da crise financeira para explicar a situação crítica em que as Três
Grandes se encontram.
Muitos preferem fazer pouco-caso da questão de seus salários, vistos como altos demais,
de seu sistema de seguro-saúde
e de suas aposentadorias muito
generosas. Chuck reconhece
que ganha bem. Aos 50 anos,
sua remuneração chega a US$
60 mil por ano.
Ou seja, duas ou três vezes
mais do que ganham os operários das montadoras estrangeiras instaladas nos EUA. Deve
esse salário confortável ao United Auto Workers, o poderoso
sindicato dos trabalhadores na
indústria automobilística, fundado em 1935.
Ele se beneficia também de
um seguro-saúde ímpar e de
um dos sistemas de aposentadoria privada mais generosos
do mundo.
Esse sistema prejudica em
muito a rentabilidade das montadoras. Para pagar o seguro de
seus empregados e aposentados, a GM é obrigada a acrescentar US$ 1.500 ao preço de
cada automóvel vendido. Mais
de 1 milhão de pessoas dependem do seguro-saúde da GM.
Já a Toyota ou a Honda desembolsam por conta do seguro-saúde e das aposentadorias
cerca de US$ 400 por veículo
montado nos EUA, diz Xavier
Mosquet, do Boston Consulting Group, em Detroit.
Eles instalaram suas fábricas
nos EUA no sul do país, onde o
índice de sindicalização é bem
menor do que na região dos
Grandes Lagos.
Emergentes
"Graças às Três Grandes,
uma classe média conseguiu
emergir nos EUA!", diz Chuck,
irritado. "Meus filhos tiveram
sorte. Pude lhes dar uma boa
educação. Você acredita realmente que seja possível viver
com US$ 10 ou US$ 12 a hora,
como os operários da Toyota
no Alabama?"
Outro problema: o desequilíbrio entre os aposentados e o
número de operários na ativa
não pára de crescer.
"Não dá para pôr a culpa de
tudo nos operários! Chega de
dizer que ganhamos demais!",
exclama um operário que trabalha na Ford há 30 anos.
Enquanto seus concorrentes
asiáticos, encabeçados pela Toyota, faziam grandes esforços
para aumentar a segurança de
seus veículos e trabalhavam para criar carros mais ecológicos,
as Três Grandes continuaram a
produzir grandes 4x4 que consomem combustível demais.
Em 2006, quase 60% dos
modelos postos no mercado
pelas Três Grandes eram veículos grandes.
Quando o galão (3,8 litros) de
combustível custava US$ 1, os
americanos não se preocupavam minimamente com o consumo de seus carros. Com o galão a US$ 4, passaram a rejeitar
os grandes 4x4.
Apesar de o preço do combustível ter diminuído consideravelmente nos últimos meses,
sob o efeito da baixa do preço
do barril de petróleo, os americanos mudaram de modo definitivo seu comportamento no
que diz respeito à aquisição de
veículos.
Se essas três empresas não
receberem ajuda, as conseqüências podem ser desastrosas para todo o país -cada emprego na indústria automotiva
gera nove outros.
As 15 mil concessionárias das
Três Grandes também se sentem ameaçadas, e os fabricantes de autopeças também estão
em situação difícil. Quinze já
entraram em falência.
Por toda parte o clima é de
nostalgia. "Há muitas lembranças boas na GM", diz um operário. "Mas hoje só restam isso,
lembranças. A GM que conhecemos e amamos desapareceu.
Meu pai, que foi empregado da
GM durante toda sua vida,
morreu há pouco tempo. Pelo
menos não viveu o suficiente
para assistir ao fim de sua amada General Motors."
A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.
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