São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2008

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Detroit destruída

DESEMPREGADOS LEMBRAM COM NOSTALGIA DOS TEMPOS ÁUREOS DA REGIÃO, QUE HOJE AGONIZA COM A PIOR CRISE DA HISTÓRIA DE FORD, CHRYSLER E GENERAL MOTORS

NATHALIE BRAFMAN

Depois de um período longo fazendo apenas alguns bicos, Susan, 50, mas ainda elegante, encontrou trabalho no salão de beleza mais chique da cidade.
É uma oportunidade imperdível, em se tratando de Flint, Michigan, uma das cidades mais duramente atingidas pelo marasmo que acomete o setor automotivo americano.
Esse, aliás, é um assunto que Susan conhece de cor. Seu marido deixou a General Motors no ano passado. Seu pai passou mais de 40 anos trabalhando na cadeia de produção.
"Durante esses anos todos, ele produziu milhões de Chevrolets. A GM não era apenas a maior empregadora da cidade -para muitas famílias, era a única. As pessoas sentiam um orgulho enorme em trabalhar para a empresa."
Seus dois irmãos mais jovens conseguiram conservar seus empregos. "Mas até quando?", pergunta Susan em voz embargada. "Eu queria poder falar com Rick Wagoner [presidente da GM] e lhe dizer o que sinto.
Eles não enxergaram nada do que estava acontecendo. Continuaram a inundar o mercado de carros grandes que ninguém mais quer comprar."
Conhecida no passado pelo apelido de Buick City, graças ao nome da famosa marca da General Motors, Flint vive uma agonia que não tem fim. A maior parte dos operários não qualificados, em sua maioria negros, não encontrou outros empregos e faz fila para tomar o sopão dos pobres.
Por não conseguirem pagar suas prestações, os moradores ou abandonaram suas casas ou foram despejados.
A cem quilômetros dali, Detroit oferece um cenário semelhante: o de uma cidade fantasma. Entretanto ela é o berço da indústria automobilística americana, o lugar onde foram implantadas as "Big Three" [Três Grandes], como são conhecidas as três maiores montadores do país: Ford, Chrysler e General Motors.

Troca de turnos
Passa um pouco das 15h na fábrica Ford Rouge de Dearborn, um subúrbio de Detroit.
Nesse complexo gigante, de onde saíram os míticos Ford T e Ford Thunderbird, é hora da troca de turnos. A grande maioria dos operários votou no democrata Barack Obama.
"Sou da Virgínia. Dois anos atrás, quando a Ford resolveu fechar a fábrica de Norfolk, encontrei trabalho aqui", conta Joe Louis (nome falso), operário da Ford há 24 anos.
"Tenho 40 anos e dois filhos.
É claro que tenho medo de perder meu emprego. Só posso fazer figas e torcer para que a gente consiga sair desta."
De calça "baggy", cabelos presos em rabo-de-cavalo e bandana amarrada na cabeça, James McMican, com 20 anos de história na Ford, parece ter uma atitude mais fatalista.
"Se acabarem conosco, todo o mundo será afetado. Os políticos estão confortáveis em suas casas e não se dão conta das conseqüências que isso terá para toda a indústria. Mas sou um sobrevivente."
Não é a primeira crise pela qual passa o setor automotivo dos EUA. Nos últimos 20 anos, a GM eliminou aproximadamente 300 mil horas de trabalho. Desde 2005, as Três Grandes já eliminaram nada menos que 100 mil postos de trabalho.
O Estado de Michigan detém o triste recorde de maior índice de desemprego do país: 9%.
À medida que ocorriam os planos sociais, os operários da gigante GM se tornaram nômades. "Foram batizados de "ciganos'", explica Chuck Ricci, colarinho azul há 32 anos.
"São milhares de trabalhadores que já mudaram de cidade sete ou oito vezes, segundo os fechamentos de fábricas ou as reduções do quadro de empregados. Se a GM ou a Ford fecharem mais fábricas, muitos operários vão migrar novamente, mas será que ainda haverá trabalho para eles?"
De acordo com Sean McAlinden, economista do Centro de Pesquisas sobre o Setor Automotivo, em Ann Arbor, 80 mil trabalhadores da GM já percorreram mais de 500 quilômetros para encontrar outro trabalho.
Alguns vivem em meio a caixotes, sem instalar-se verdadeiramente em lugar nenhum, por medo de serem obrigados a pôr o pé na estrada outra vez.

Nomadismo
"Estou preparado para partir, se for preciso. Mas acabo de pagar minha casa. Quem vai querer comprá-la? E por que preço? Ela não vale mais nada!
O setor imobiliário está morto aqui", queixa-se Edward, operário da Chrysler.
Esses "ciganos da GM" e seus colegas na Ford e na Chrysler são, em sua maioria, filhos e filhas de operários da indústria automotiva, de pessoas que trabalharam em uma só fábrica até se aposentarem e prometeram a seus filhos que com eles seria a mesma coisa.
Para Gary Chaison, professor especializado em sindicalismo na Universidade Clark (Massachusetts), os operários vêem seu emprego nas fábricas de automóveis como um bem, algo que pode ser transmitido de pai para filho.
Desta vez, porém, a crise é muito grave. É possível até mesmo que seja a última. As vendas não param de cair. As montadoras americanas perderam mais de 10% de participação no mercado em dois anos.
Nos tempos áureos, nos anos 1950, a participação da GM no mercado dos EUA era de 45%.
Em 2008, deverá cair para menos de 28%. Um veículo em cada dois comprados nos EUA é de fabricação estrangeira.
A GM anuncia a ameaça de falência; Ford e Chrysler prevêem grandes dificuldades se não receberem ajuda governamental. As três montadoras prevêem acabar com dezenas de milhares de empregos.
"Já fizemos sacrifícios e estamos dispostos a fazer ainda mais, mas os dirigentes também precisam apertar os cintos", diz Edward. "Não me incomoda que a direção ganhe muito bem, mas há inúmeros executivos que ganham milhões de dólares."
Robert Nardelli, presidente da Chrysler, já declarou que se dispõe a receber apenas US$ 1 por ano. "Francamente, você acha que isso me comove? No máximo me faz rir", solta Matt Davidson, empregado da Chrysler há mais de 30 anos.
"Com tudo o que já ganhou, mesmo com US$ 1 por ano ele vai viver muito bem até o fim de seus dias", prossegue, lembrando que Nardelli saiu de sua última empresa com mais de US$ 200 milhões.
Diante da idéia de que a indústria que já foi o orgulho dos EUA possa estar prestes a ser descartada, os operários concentram seu ressentimento contra a classe política.

Desprezo
"Eles entregaram US$ 150 bilhões de nossos impostos à seguradora AIG sem que ela tenha precisado explicar por que perdeu tanto dinheiro. Já nós podemos explicar nossa situação: não estamos vendendo carros suficientes, o mercado está em crise. Mesmo que seja difícil de aceitar, será preciso reduzir ainda mais o número de operários, modelos e concessionárias", admite Rod Reid, 50, antigo dono de restaurante que há 17 anos mudou de ramo, tornando-se operário da GM.
Os operários não agüentam mais ser desprezados. Sofrem por se sentirem rejeitados não só pelos políticos, mas também pela própria população americana. Têm saudades dos bons e velhos tempos em que representavam a aristocracia da indústria automobilística.
"Muita gente não gosta de nós. Acho terrível que quase metade dos americanos não queira ajudar sua indústria automobilística. Eles não se importam de perdermos tudo", suspira Larry, operário da usina Ford Rouge há 35 anos.
"As pessoas nos olham como se fôssemos os vilões da história. Nós, que trabalhamos como cães para erguer essa indústria!", exclama Chuck.
A maioria dos operários tende a refugiar-se atrás da crise financeira para explicar a situação crítica em que as Três Grandes se encontram.
Muitos preferem fazer pouco-caso da questão de seus salários, vistos como altos demais, de seu sistema de seguro-saúde e de suas aposentadorias muito generosas. Chuck reconhece que ganha bem. Aos 50 anos, sua remuneração chega a US$ 60 mil por ano.
Ou seja, duas ou três vezes mais do que ganham os operários das montadoras estrangeiras instaladas nos EUA. Deve esse salário confortável ao United Auto Workers, o poderoso sindicato dos trabalhadores na indústria automobilística, fundado em 1935.
Ele se beneficia também de um seguro-saúde ímpar e de um dos sistemas de aposentadoria privada mais generosos do mundo.
Esse sistema prejudica em muito a rentabilidade das montadoras. Para pagar o seguro de seus empregados e aposentados, a GM é obrigada a acrescentar US$ 1.500 ao preço de cada automóvel vendido. Mais de 1 milhão de pessoas dependem do seguro-saúde da GM.
Já a Toyota ou a Honda desembolsam por conta do seguro-saúde e das aposentadorias cerca de US$ 400 por veículo montado nos EUA, diz Xavier Mosquet, do Boston Consulting Group, em Detroit.
Eles instalaram suas fábricas nos EUA no sul do país, onde o índice de sindicalização é bem menor do que na região dos Grandes Lagos.

Emergentes
"Graças às Três Grandes, uma classe média conseguiu emergir nos EUA!", diz Chuck, irritado. "Meus filhos tiveram sorte. Pude lhes dar uma boa educação. Você acredita realmente que seja possível viver com US$ 10 ou US$ 12 a hora, como os operários da Toyota no Alabama?"
Outro problema: o desequilíbrio entre os aposentados e o número de operários na ativa não pára de crescer.
"Não dá para pôr a culpa de tudo nos operários! Chega de dizer que ganhamos demais!", exclama um operário que trabalha na Ford há 30 anos.
Enquanto seus concorrentes asiáticos, encabeçados pela Toyota, faziam grandes esforços para aumentar a segurança de seus veículos e trabalhavam para criar carros mais ecológicos, as Três Grandes continuaram a produzir grandes 4x4 que consomem combustível demais.
Em 2006, quase 60% dos modelos postos no mercado pelas Três Grandes eram veículos grandes.
Quando o galão (3,8 litros) de combustível custava US$ 1, os americanos não se preocupavam minimamente com o consumo de seus carros. Com o galão a US$ 4, passaram a rejeitar os grandes 4x4.
Apesar de o preço do combustível ter diminuído consideravelmente nos últimos meses, sob o efeito da baixa do preço do barril de petróleo, os americanos mudaram de modo definitivo seu comportamento no que diz respeito à aquisição de veículos.
Se essas três empresas não receberem ajuda, as conseqüências podem ser desastrosas para todo o país -cada emprego na indústria automotiva gera nove outros.
As 15 mil concessionárias das Três Grandes também se sentem ameaçadas, e os fabricantes de autopeças também estão em situação difícil. Quinze já entraram em falência.
Por toda parte o clima é de nostalgia. "Há muitas lembranças boas na GM", diz um operário. "Mas hoje só restam isso, lembranças. A GM que conhecemos e amamos desapareceu.
Meu pai, que foi empregado da GM durante toda sua vida, morreu há pouco tempo. Pelo menos não viveu o suficiente para assistir ao fim de sua amada General Motors."


A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Clara Allain.


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