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+(S)ociedade
Fome de viver
Suposto caso de antropofagia no Amazonas força o reexame da relação do Brasil com suas comunidades indígenas
Que interesses estão por trás dessas sistemáticas campanhas contra os indígenas?
EUCLIDES SANTOS MENDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A morte de Océlio de
Carvalho, 21, em
uma aldeia da etnia
culina, em Envira,
no Amazonas, em
3/2, traz à tona questões complexas envolvendo populações
indígenas brasileiras.
Segundo relato do sargento
da PM José Carlos da Silva, que
iniciou a apuração do caso,
Carvalho levou pelo menos 80
facadas, teve o corpo partido
em duas partes e o fígado, o coração e parte da coxa comidos.
Os culinas têm contato com
não-índios desde o século 19 e,
de acordo com a Funai, não
existe a prática da antropofagia
entre os povos indígenas no
Brasil contemporâneo.
Em entrevista à Folha, o antropólogo e coordenador da
Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) João Pacheco de Oliveira diz que a antropofagia é "um hábito defasado temporalmente".
Também diz que esse caso
traz "para a discussão pública
temas bizarros", que "omitem
sistematicamente os problemas reais vividos pelos indígenas", reforçando estereótipos.
Na entrevista abaixo, Pacheco -que também é professor
do Museu Nacional da UFRJ-
alerta para a necessidade de
reavaliarmos a relação da sociedade brasileira com os povos indígenas.
FOLHA - Do ponto de vista antropológico, os hábitos culturais indígenas -inclusive a antropofagia-
devem ser respeitados?
JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA - Penso
que se deve lidar com esse assunto de forma cuidadosa. Neste caso, o relativismo cultural
deve ser sustentado enquanto
metáfora. A antropologia supõe
uma dialogia entre culturas.
Essa ideia de uma aplicação
plena dos direitos culturais deve ser analisada cuidadosamente. Essa questão deverá ser
avaliada segundo o código cultural com o qual se deu o fato.
FOLHA - Ainda poderiam existir
grupos indígenas isolados no interior do país em que a antropofagia
constitua um hábito cultural?
OLIVEIRA - Existem no brasil
cerca de 740 mil índios divididos em aproximadamente 220
povos. Os índios isolados, não-contactados, somam menos de
20 povos. Demograficamente,
as estimativas trabalhariam
com 2.000 pessoas.
Tratam-se, às vezes, de famílias isoladas dentro da mata, vivendo como refugiados dentro
de uma Amazônia cheia de projetos econômicos. É muito difícil supor que a antropofagia
ainda aconteça na Amazônia.
Ela viveria apenas na memória das populações.
FOLHA - Que aspectos caracterizam a antropofagia na história social dos índios brasileiros?
OLIVEIRA - Tratava-se de uma
promoção social da vítima,
uma forma de prestígio social
específico, a ideia de uma morte gloriosa, honrosa, pois a antropofagia estava relacionada a
sociedades guerreiras. É um
contexto que, hoje, se apresenta defasado temporalmente.
Por isso, me parece inviável a
antropofagia no contexto atual
dos indígenas brasileiros.
FOLHA - A morte na aldeia da etnia
culina poderia, de fato, ser considerada um caso de antropofagia?
OLIVEIRA - Acredito que não se
trata de um caso de antropofagia ocorrido dentro dos códigos
culturais tradicionais indígenas.
Que sentido tem falar em um
caso real de antropofagia supostamente ocorrido neste
contexto? Apenas reforçar velhos estereótipos sobre a crueldade dos índios, sobre o seu caráter vingativo e traiçoeiro, reforçar as formulações que colocam em risco a oportunidade
de lhes conceder direitos e de
tratá-los como cidadãos.
Não estamos falando em canibalismo metafórico, como no
modernismo, onde os índios
não são isolados dos demais
brasileiros nesse aspecto, mas
apenas explicitam uma dimensão latente da nossa cultura.
Também não estamos falando de uma pesquisa científica
sobre a instituição da antropofagia ritual, o impacto de memórias, mitos e valores guerreiros sobre a organização social.
O que se instaura é uma investigação policial que irá vitimizar pessoas e, no fundo, buscar reexaminar as relações do
Brasil com essas sociedades,
herdeiras das populações autóctones desta terra.
FOLHA - No Brasil, os processos criminais envolvendo índios desconsideram questões de relevância antropológica?
OLIVEIRA - O tema da antropofagia é apenas um entre vários
acionados. Há pouco, perguntava-se sobre o infanticídio!
No caso de Roraima, demarcar a terra dos makuxis iria implicar a expulsão de não-índios
casados com índias e, portanto,
na dissolução de famílias interétnicas (note-se que nunca os
índios reivindicaram isso!).
Há alguns anos, falou-se de
garimpeiros mortos por indígenas em Rondônia, sem nem sequer estabelecer que mortes
resultaram de conflitos entre
os diferentes e opostos grupos
de exploradores.
Quantos casos desses temas
podemos citar? Pouquíssimos,
nem uma dezena.
E quantas são as mortes de
índios em conflitos fundiários
nos últimos anos?
Sobem a centenas, segundo
levantamento realizado pelo
Conselho Indigenista Missionário! E as mortes provocadas
por epidemias diversas e por
condições de saúde extremamente precárias? E os suicídios
de jovens ocorridos entre os
guaranis do Mato Grosso do
Sul, que foram desalojados de
suas terras tradicionais?
O objetivo (com acusações
como a atual) parece ser sempre fazer os indígenas sentarem no banco dos réus, justificarem-se perante a sociedade,
voltarem a ser suspeitos de
constituir uma forma imperfeita de humanidade. Voltarem a
ter quem os tutele de perto, que
limite sua liberdade e seus direitos. Que não possam ser respeitados e aceitos como cidadãos normais.
Gostaria de saber que interesses concretos estão por trás
dessas sistemáticas campanhas
contra os indígenas, que levam
para a discussão pública temas
bizarros e omitem sistematicamente os problemas reais vividos por eles.
FOLHA - Qual é o cenário social, político e cultural das populações indígenas no Brasil contemporâneo?
OLIVEIRA - O cenário é bastante
delicado. Por um lado, existem
vários programas governamentais contra a pobreza e a marginalidade que têm impactado
positivamente os indígenas.
Por outro, a economia para
exportação (notoriamente,
mas não só, a soja) tem criado
fortes pressões contra os indígenas em vários pontos da
Amazônia e fora dela.
A atividade da Funai no reconhecimento e na regularização
de terras indígenas tem enfrentado pesada carga de governadores, políticos e empresários.
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