|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A criatura Cauby
O CANTOR EXPLICA COMO O MARKETING AJUDOU
A DEFINIR SEU ESTILO E SEU REPERTÓRIO
E DIZ QUE, SE TIVESSE MORADO NOS EUA, SERIA
MAIOR DO QUE FRANK SINATRA E NAT KING COLE
Lalo de Almeida - 2.mar.09/ Folha Imagem
|
|
Cauby se prepara para show no bar Brahma
LUIZ FERNANDO VIANNA
EM SÃO PAULO
Amparado por três
seguranças da casa,
Cauby Peixoto caminha com dificuldade até o palco do
salão principal do bar Brahma,
que lota há mais de quatro anos
nas apresentações semanais do
cantor.
Cerca de 200 pessoas se levantam e aplaudem. A fragilidade física de Cauby, 78 inconfessados anos, pode espantar,
mas também serve como alerta: ali está, na esquina das avenidas Ipiranga e São João, em
carne, osso e maquiagem, um
artista que tem muita história.
Em quatro letras, um mito.
Ele é um dos últimos grandes
representantes da era do rádio,
o período entre 1930 e 1950
que consolidou a existência de
uma música popular brasileira.
Essa expressão recebeu iniciais maiúsculas e sofisticação
nas décadas seguintes, mas
suas estrelas prestaram reverência a Cauby, que ganhou
canções de Caetano Veloso
("Cauby! Cauby!") e, indiretamente, de Chico Buarque
("Bastidores" não foi feita para
ele, mas é como se tivesse sido,
tamanha a identificação).
Cauby (nome retirado de
"Iracema", de José de Alencar)
ainda foi um produto de marketing antes que isso virasse
banalidade. Seu empresário
Edson Collaço Veras, o Di Veras (morto em 2005, aos 91),
criava nos anos 50 uma série de
"notícias" para que o cantor
ocupasse ao máximo as páginas
de jornais e revistas.
As roupas já eram feitas para
serem rasgadas pelas fãs, e não
importava que ninguém acreditasse em suas várias noivas.
O importante era falar de
Cauby. Com insuspeita modéstia, ele diz na entrevista abaixo
que o marketing lhe valeu mais
do que o talento.
Mas, pouco depois, afirma
que, se tivesse ficado nos EUA,
teria sido maior do que Frank
Sinatra e Nat King Cole.
Visual andrógino
E muito se falou sobre sua sexualidade. Antes mesmo de assumir um visual andrógino, nos
anos 80, com sua peruca de cachos, ele já embaralhava os gêneros, emoldurando sua voz
grave com traços e trejeitos
suaves. Além de símbolo sexual
para as mulheres, tornou-se
ícone para os gays.
E nunca ergueu nenhuma
bandeira colorida. Sempre foi
escorregadio ao tratar do assunto, ora falando de mulheres
que teria amado, ora dizendo
que seria capaz de se apaixonar
por um homem ou até brincando numa entrevista à Folha,
em 1985: "Podem me chamar
de bicha!".
Nunca precisou sair de seu
armário cheio de "summers",
paletós com brasões e, na sua
própria classificação, "roupas
extravagantes".
Sou um artista preparado para o sucesso
Consegui
fazer tudo aquilo que mais desejei
|
EM SÃO PAULO
Cauby Peixoto mostra
vivacidade e coragem em algumas respostas, repisa antigas
frases em outras e
parece alheio em curtos momentos. Às vezes faz uma pausa, representada aqui pela separação de parágrafos, e diz algo que não combina com o que
acabara de falar.
Não vale maquiar nada, pois,
afinal, já se trata de Cauby. Por
acaso ou não, tudo vira estilo. E
é do seu estilo, de cantar e viver, que ele fala nesta entrevista, realizada antes de mais um
show seu.
(LFV)
FOLHA - Em fevereiro de 1949, o sr.
deu o primeiro passo da carreira,
cantando na rádio Tupi. O que aquele Cauby queria e o que conseguiu
nesses 60 anos?
CAUBY PEIXOTO - Eu consegui,
num país difícil, diferente de
outros países... O americano,
principalmente, usa muito a
publicidade, o marketing, e aí
faz um artista de um dia para o
outro. Eu copiei o americano.
Nós [ele e seu empresário Di
Veras] fizemos diversas notícias: segurei a voz em 3 milhões
de cruzeiros; "quando o Cauby
canta, as meninas desmaiam".
Isso foi crescendo, crescendo
cada vez mais. "Cauby está noivo, vai casar com a miss Portugal." E eu cresci por causa dessa
publicidade.
FOLHA - Mais do que pelo talento?
CAUBY - [Pensa por cinco segundos] Mais, mais.
FOLHA - Mas, se não tivesse talento, o sr. teria crescido?
CAUBY - Não sei te dizer. Porque há muita gente que não
tem talento e tem sucesso. É
uma coisa relativa. Mas, graças
a Deus, a voz, a maneira de cantar ajudou muito.
FOLHA - O sr. disse em 1970: "Existem dois tipos de cantor. O que faz
sucesso e o que é querido. Eu quero
ser querido. Querido é o que fica". O
sr. é mais querido do que um artista
de sucesso?
CAUBY - Mais querido.
Em outro dia, a Nancy [Lara,
"personal manager" do cantor]
estava falando comigo deste sucesso em todo o Brasil, do porquê deste sucesso. É o talento,
são as músicas e o estilo. Muito
importante é o estilo.
FOLHA - Sabe definir o seu estilo?
CAUBY - Sei. Eu sou um artista
preparado para o sucesso,
aprendi muita coisa para o sucesso e acho que o artista,
quando é bem orientado, consegue fazer sucesso.
É o meu caso. Eu fui muito
bem orientado, inclusive perante as meninas. Sou uma pessoa que sai na rua com muita
simplicidade, cumprimentando as pessoas, isso vai passando
de uma para outra e vou me
tornando popular.
FOLHA - O sr. não se sentia manipulado por Di Veras, como um objeto de marketing?
CAUBY - Não. E ele não me dizia por quê [inventava coisas].
E eu também não queria saber
por quê. Eu embarcava. É o tal
negócio do bom aluno.
O Altemar Dutra, por exemplo, não queria cantar canções
[do repertório] de outros cantores. Quando o Di Veras falou
para mim "você canta Nelson
Gonçalves, Dick Farney?", eu
disse: "Canto".
"Então, canta aí." Eu cantei.
Ficaria mais fácil para ele fazer
[o marketing]. E eu segui os
conselhos dele.
FOLHA - O fato de Di Veras arrumar
noivas para o sr. e promover fotos
suas lutando jiu-jítsu acabavam reforçando a curiosidade da imprensa
da época sobre sua sexualidade? Isso o incomodava?
CAUBY - Di Veras era marqueteiro. Produzia coisas para dar
matéria. Mas, mesmo que essa
curiosidade existisse, não me
incomodava.
FOLHA - Com o tempo, além das
muitas fãs, o sr. também se tornou
um ídolo dos gays. Como recebe esse carinho?
CAUBY - Estou sabendo agora
que sou ídolo dos gays. Claro
que recebo com carinho. Fã é
fã, independentemente de
qualquer coisa, sexualidade,
cor, nacionalidade etc.
FOLHA - O sr. acredita que, com sua
postura no palco, tenha libertado o
lado feminino de muitos homens?
CAUBY - Não, isso não aconteceu e não acontece.
FOLHA - O que seria Cauby sem Di
Veras?
CAUBY - Ah, eu acho que não
seria nada. Eu não saberia cantar do jeito que ele quis. Ele
também colocou [criou] a voz.
FOLHA - E o que seria Di Veras sem
Cauby?
CAUBY - [Ri] Nada.
FOLHA - O que o sr. não conseguiu
fazer?
CAUBY - Acho que consegui tudo aquilo que mais desejei.
Também fui para fora do Brasil,
gravei lá [nos EUA], fiz um filme ["Jamboree", 1957, como
Ron Coby]... Eu fiz muita coisa,
aproveitei muito essa carreira.
Não tenho frustração.
FOLHA - Se o sr. tivesse ficado nos
EUA, quem seria Ron Coby ou Coby
Dijon [outro codinome]?
CAUBY -
California, I go..." [cantarola
a versão em inglês de "Maracangalha", de Dorival Caymmi,
que lançou em 1958].
FOLHA - Por que voltou? Por causa
das fãs?
CAUBY - Voltei de burrice,
grande burrice. Voltei de saudade, muita coisa que eu tinha
deixado aqui. Uma forçação de
barra do Di Veras para eu voltar. E caí na burrice de voltar.
FOLHA - Di Veras dizia que o sr. era
do mesmo nível que Frank Sinatra e
Nat King Cole ou até melhor. O sr.
concorda?
CAUBY - Concordo.
Usei algumas músicas cafonas para fazer sucesso
Voltei [dos EUA] por burrice; voltei por saudade
|
FOLHA - Melhor até?
CAUBY - Melhor até. Poderia
ter provado isso. Era só terem
me deixado gravar o romântico. Porque "Maracangalha" era
um samba.
FOLHA - O sr. já se disse capaz de
gravar qualquer coisa: "Eu não tenho critério". Isso não atrapalhou a
sua carreira?
CAUBY - De certa forma, sim. O
Di Veras é que não deixava:
"Não, isso aqui não é para você". Não era para o meu estilo,
não era romântico. Não precisava gravar.
Hoje é até o contrário: as pessoas gravam tudo e aparecem.
A minha linha era romântica.
FOLHA - Com a bossa nova, o sr.
passou a ser visto como cafona?
CAUBY - Acho que sim. Eu peguei uma fasezinha cafona.
FOLHA - O sr. era cafona ou havia
um preconceito?
CAUBY - Eu usei algumas músicas cafonas para fazer sucesso.
O público escolhe aquelas músicas de que gosta, não importa
que sejam cafonas ou bonitas.
Mas é claro que minha preferência sempre foi maior pelas
bonitas, senão eu não seria o
cantor de prestígio que sou.
FOLHA - Mas esse prestígio só veio
depois da gravação com Elis Regina
["Bolero de Satã", em 1979] e do
disco "Cauby! Cauby!" [em 1980]?
CAUBY - Foi. Foi um período
muito bom.
FOLHA - Que cantoras foram importantes para o sr.?
CAUBY - Elis, Angela [Maria].
Elas me mostraram muita coisa no canto que eu não sabia.
Passei a cantar com bossa, a ser
um cantor versátil.
FOLHA - "Conceição" é a mulher da
sua vida?
CAUBY - Foi a grande mulher
da minha vida. Nunca cansei de
cantá-la.
FOLHA - Se tivesse que escolher o
grande momento da sua carreira,
qual seria?
CAUBY - O momento em que tive sucesso em todo o Brasil
com o lançamento de "Conceição" em rede nacional.
FOLHA - "Conceição" pode ter sido
o maior sucesso, mas qual é a música da sua vida?
CAUBY - "Blue Gardenia", pois
foi o primeiro sucesso.
FOLHA - O sr. tem mesmo a impressão, como já disse, de que vai
morrer se parar de cantar?
CAUBY - Tenho.
FOLHA - E tem medo da morte?
CAUBY - Não. A morte é um ir e
voltar. Ver do outro lado como
é. Eu sou espírita.
Acho que são uma ida e uma
volta maravilhosas.
FOLHA - Como está sendo o envelhecer?
CAUBY - Engraçado, não me
sinto envelhecendo. Interessante, não?
FOLHA - Existe um Cauby personagem e um Cauby real, fora do palco?
CAUBY - O Cauby é igual na rua,
no palco, sempre respeitando
aqueles que me conhecem. Não
precisam gostar de mim. Me
conheceu, eu já: "Oi".
FOLHA - Tem saudade do assédio
das fãs?
CAUBY - Continua aqui [no bar
Brahma].
FOLHA - Mas não rasgam mais
suas roupas... Tem saudade de ser
símbolo sexual?
CAUBY - Não tenho, não. Praticamente vivo fora do palco.
Manter um nome assim é muito difícil. Eu fico muito feliz.
FOLHA - E qual foi a importância
dos seus irmãos para a sua carreira?
CAUBY - Grande. Moacyr [Peixoto, pianista] me ensinou a
cantar melhor. Eu cantava
mais quadrado, gritava muito.
Ele colocou a minha voz no lugar certo.
FOLHA - Na sua biografia ["Bastidores", de Rodrigo Faour], o sr. conta que apanhava da sua mãe de chinelo na cara. Foi bom?
CAUBY -
[Ri] Foi. Era uma pessoa que me conhecia muito, então podia fazer e acontecer que
estava tudo bem.
FOLHA - Em seus shows atuais, o sr.
canta sentado quase o tempo todo.
Está cantando pior por causa disso?
CAUBY - Não, porque tiro o ar
do diafragma. Me dá até mais
ar. Tem gente que joga o ar na
barriga, mas tiro do diafragma.
FOLHA - O que o sr. ainda sonha em
fazer?
CAUBY - [Nancy Lara pede licença para intervir e lista projetos possíveis, como um DVD
para comemorar em 2009 os
cinco anos de temporada no
bar Brahma; o cantor sorri] Eu
gosto muito de música. Depois,
eu gosto muito de música. E,
depois, eu gosto muito de música. Nada me fascina mais.
Texto Anterior: +(e)conomia: O PIB solidário Próximo Texto: "Deixa eu ouvir sua voz, meu amor!" Índice
|
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.
|
|