São Paulo, domingo, 15 de março de 1998

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POLÍTICA
Faces da imoralidade


A morte do índio Galdino envolve o mais cruel dos crimes, o da indiferença


JURANDIR FREIRE COSTA


especial para a Folha

Como seria de esperar, o resultado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, amenizando a pena dos assassinos de Galdino Jesus dos Santos, provocou uma forte reação de indignação. Fala-se de incentivo à impunidade e de complacência para com os crimes cometidos pelos privilegiados no Brasil. De fato, neste país os poderosos gozam de favores impensáveis em outros lugares. Mas, pergunto, é isto o que mais importa no assassinato de Galdino? Acho que não. Como disse o jurista Márcio Tomaz Bastos: "A Justiça deve ouvir a voz das ruas, mas tem de agir com cuidado para não cair na chamada teoria do pêndulo, onde se elege um cristo para aplacar a consciência de um país que vive num mar de impunidade".
Do ponto de vista moral, o crime praticado pelos garotos de Brasília vai além de um assassinato hediondo, com ou sem intenção de matar a vítima. Ele é a cara de nossa cultura neste fim de século. No discurso oficial, o Brasil aumentou seu Produto Nacional Bruto para cerca de US$ 800 bilhões, portanto o país enriqueceu. Não obstante o enriquecimento, temos a mais alta taxa de desemprego desde 1985 e uma das piores concentrações de renda do planeta. A questão é simples: para onde vai todo o dinheiro vindo da exploração das riquezas naturais e da população assalariada? Uma grande parte, sabemos, vai para o bolso dos especuladores "globalizados" e para o financiamento de empresas multinacionais. O que sobra fica com os ricos e a alta classe média que não medem o que gastam em Miami e Nova York, não param de engordar as contas dos paraísos fiscais e só pensam em investir na especulação imobiliária e financeira ou no turismo moral e ecologicamente predatório, como mostra o infeliz exemplo do Nordeste. A situação é aceita com a maior tranquilidade pelos que têm voz e vez na condução político-econômica da nação. É assim que deve ser, pois é isto que recomenda o civilizado "Primeiro Mundo", alegremente empolgado com o "exemplo brasileiro". O termo "brasilianização" tornou-se sinônimo de ricos cada vez mais ricos, pobres cada vez mais pobres.
Este universo de feroz desprezo pelo que é humanamente relevante é o berço de milhares de jovens socioculturalmente aparentados aos assassinos de Galdino. Desde cedo, eles se habituam a ver, pelos vidros dos automóveis de luxo, o espetáculo de humilhação e brutalidade do "estranho" mundo vizinho ao seu: garotos sem ter o que comer ou tendo que assaltar velhos, mulheres e crianças para conseguirem o que eles têm com um estalar de dedos e um piscar de olhos. Quando adolescentes, adquirem a linguagem que dá o toque de classe a seus projetos e preocupações. Nas conversas com familiares e amigos o assunto é sempre o mesmo: quem é mais rico e famoso do que quem; qual a próxima viagem à estação de esqui; quando ocorrerá o próximo show de desperdício consumista nas cidades americanas; como o povo brasileiro é "atrasado e corrupto" e como os europeus, japoneses e americanos são moral e intelectualmente superiores à nós. O Brasil que interessa é o das patriotadas midiáticas sobre acontecimentos esportivos, nos quais, novamente, o foco da atenção são os milionários salários dos craques em qualquer coisa.
Pois bem, o que este perdulário mundo de dólares e facilidades materiais tem a ver com mendigos sujos, famintos e estropiados vivendo em canos de esgoto e debaixo de viadutos ou dormindo sob marquises de lojas e abrigos de pontos de ônibus? Ou, indo direto à conclusão e dispensando argumentos intermediários: o que os garotos assassinos aprenderiam sobre justiça e liberdade apodrecendo nos porões infectos de prisões, se jamais tiveram condições sociais ou psicológicas de pensar no que estas palavras significam! Pode-se dizer que o castigo teria efeito exemplar e dissuasivo, que levaria os condenados a assumirem a responsabilidade pelo que fizeram e que mostraria a força da lei num país de infratores crônicos. É possível. Mas, com exceção do castigo imposto aos criminosos, que tem mais gosto de vingança do que aspecto de justiça, temos o direito de perguntar se a exibição da força da lei em "feriados morais" resolve o cotidiano de indecências, injustiças, desigualdades e desumanidade em que estamos mergulhados. Por que não imaginamos penas que, efetivamente, comprometam os garotos com o trabalho de se transformarem moralmente, adquirindo o sentido de responsabilidade para com os outros? Por que não imaginá-los trabalhando em favor dos proscritos deste país, em vez de envenená-los com o germe do ressentimento, do medo, do ódio ou da frustração? Por que, enfim, não pensar que tais iniciativas só vêm à cabeça de uns poucos cidadãos porque à maioria não interessa resolver o lixo moral que alimentou o espírito daqueles jovens!
Não é preciso muito esforço para ver o quanto andamos, depois do crime de Brasília. O que os abastados "papais e mamães", indignados com a "monstruosidade", fizeram para mostrar aos filhos que ninguém tem o direito de decidir sobre quem deve viver ou morrer? Para responder, é suficiente olhar o que se passa ao lado. No Rio, para falar no que vejo, os vôos para os centros de compra americanos estão cada dia mais lotados. Nas ruas, o cortejo de reluzentes carros importados, dirigidos por jovens ricos, não pára de crescer, nem de furar sinais vermelhos depois da meia-noite, nem de ultrapassar os limites de velocidade do novo código de trânsito. Fora isto, o que surgiu de novo na cena cultural retrata bem os costumes morais das moderníssimas elites econômicas, políticas e intelectuais. Importamos outro jargão, novinho em folha, e em inglês, é óbvio. De agora em diante, os jovens ricos vão cansar de ouvir, nos escritórios, na imprensa, nas universidades, nas casas e nos papos com os "mais experientes" que o atual modelo de desenvolvimento social é o do "market pulled", em vez do tradicional "science pushed". Mas, falta acrescentar, como o "market" só puxa o que dá lucro, esperemos novos desabrigados pelas inundações, novos apagões, novos desabamentos, novos assaltos, novas falcatruas, novos sequestros, novas drogas, novas compras e vendas de votos, novas mortes em hospitais precários, novos recordes de analfabetismo, novos sem-terra, novos desempregados, enfim, tudo conforme o figurino do "market pulled".
Aprendemos pouquíssimo com a dolorosa morte de Galdino. Esquecemos que o crime de Brasília é um crime de indiferença, o mais cruel dos crimes. Este crime pode até ser punido com prisão, mas prisão não basta, pois falta algo essencial aos jovens criminosos, a consciência do horror que praticaram. Se aqueles garotos fizeram o que fizeram é porque também foram desumanizados pela insanidade da ganância que insiste em reduzir o tamanho do homem à pequenez abstrata do dinheiro.
Neste momento, outros jovens deste país continuam aprendendo a desdenhar dos "perdedores" e dos que não podem frequentar shopping centers; continuam aprendendo que viver é competir e que a vida sem valor de mercado simplesmente não tem valor algum; continuam aprendendo que uma vida eticamente orientada pela cooperação, solidariedade e respeito pelos mais frágeis é uma estupidez criada por incompetentes sem inteligência e capacidade para oferecer alternativas aceitáveis ao deus Mercado. Por fim, aprenderão que eles próprios nada valem, quando caem em desgraça, pelo fato de trazerem à tona as faces da imoralidade que ninguém quer ver. Lévinas dizia: "A justificação da dor do Outro é o começo e o cerne de toda imoralidade". Quando vamos entender isso?


Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro; é autor de "Inocência e Vício - Estudos sobre o Homoerotismo" e "A Ética e o Espelho da Cultura".
E-mailjfreirecosta@ax.ibase.org.br



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