São Paulo, domingo, 15 de julho de 2001

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A crítica total

Combinação de análise e especulação em obras como "Razão do Poema", de 1965, ajudou a consolidar o legado modernista de poetas como Drummond, João Cabral e Murilo Mendes

por Luiz Costa Lima


Algumas observações são tão agudas que se lamenta não terem sido desenvolvidas; por exemplo, assinalar a presença do cubismo no início cabralino


Exemplar é a iniciativa do Mais! de dedicar um de seus números à obra de José Guilherme Merquior. E isso tanto porque sua morte precoce interrompeu uma obra que ainda fecundava quanto por seu envolvimento com os governos que sucederam imediatamente o regime militar. A morte precoce motiva a pergunta: que ficou do empenho de um crítico literário que procurava pensar a arte na densidade do mundo? O envolvimento com governos que caminhavam do turvo ao torpe que relação teria com suas opções intelectuais? Para que a discussão tenha algum rendimento, deixarei a segunda questão para alguém mais e, concentrando-me na primeira, considerarei apenas a matéria de três de seus livros: "Razão do Poema" (1965), "A Astúcia da Mímese" (1972) e "Formalismo e Tradição Moderna" (1974). Ou seja, menos da metade de seus dez livros de crítica (sobre a divisão de sua obra, leia "O Fenômeno Merquior", de José Mario Pereira, em "O Itamaraty - A Cultura Brasileira" (no prelo). Quanto a "Razão do Poema", há que dizer que seu livro de estréia não era tão-só a obra de um autor extremamente jovem, mas que, reunindo artigos escritos originalmente entre 1962 e 1964, fora composto quando o autor estava entre os 20 e os 22. Deixo de lado o espanto por sua pouca idade e busco compreender suas linhas de força.

Combinação de planos
Seu objeto principal era a poesia brasileira e, sobretudo, seu legado modernista. Mas isso tanto em sua incidência particularizada, o poema, como em sua abrangência teórica: as "notas estéticas" que formam a segunda parte do livro. A combinação dos planos, a amadurecer nos livros seguintes, continha o germe de um produto incomum entre nós: um crítico que pensava analítica e especulativamente. O primeiro, por sua vez, como já mostrava o ensaio sobre Joaquim Cardozo, procurava articular a análise estilística com o que se poderia chamar de configuração histórico-existencial, no caso a passagem da melancolia cristã para a melancolia sem ressalvas.
Embora a estilística que usava mantivesse a falha dos modelos tradicionais -o exame do plano sonoro era feito como se seus resultados não dependessem da prévia contaminação semântica (por exemplo, de "olhos, fecharem" do primeiro verso do poema "Elegíaca", em "Signo Estrelado", dizia que "sonoridade palatal empresta à imagem física da morte, ou melhor, do morrer, a música mais adequada", dando a entender que os grupos "lh" e "ch" tivessem essa propriedade por si, independentemente da semântica das palavras)-, a falha não impedia a inteligência de suas análises. Ela chegará a ser surpreendente em um poema como "A Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, em que a muito notada ausência de qualificativos passava a ser vista como condição para que "todo o poema" fosse "qualificativo": qualificativo da terra natal; poema, portanto, absolutamente assente na preferência subjetiva por sua terra. É essa sensibilidade aguda que tornaria "Razão do Poema" uma das melhores contribuições para a consolidação do legado modernista, para a afirmação de um poeta pouco estudado, Murilo Mendes, e de um João Cabral que ainda dividia as opiniões. Algumas observações são tão agudas que se lamenta não terem sido desenvolvidas. Por exemplo, assinalar a presença do cubismo no início cabralino, responsável pelo tom plástico de seu verso, plástico "pelo visual, mas sobretudo pela correlação de planos".

Introjeção de Heidegger
Quaisquer que fossem seus acertos, o jovem crítico contudo pensava além: em contribuir para uma tradição fecundadora da lírica nacional. Nessa plataforma inicial, isso se daria (1) pela instauração de uma poesia de pensamento, acompanhada de uma crítica que tivesse vencido sua ignorância filosófica; (2) pelo estímulo do que, sob a influência de Lukács, chamava de "pensamento crítico"; (3) pelo repúdio ao experimentalismo; (4) pela condenação do fantástico a partir da leitura, já por si equivocada, de Sartre sobre Kafka e da fantasia como "liberdade desvairada"; (5) pela preocupação nacionalista, que o levava, em um equívoco de responsabilidade toda sua, a afirmar que o "instinto de nacionalidade" de Machado hoje se confundiria com "consciência literária nacional". No Merquior maduro, permanecerão os postulados 1, 3 e 4. Quando em 1972 Merquior publica "A Astúcia da Mímese", sua figura já começa a receber contornos menos perecíveis. Desaparece a influência de Lukács, que, nos anos prévios ao golpe de 1964, fora importante contra a esquerda "didática" do CPC, como também o empenho nacionalista. Mantém-se a atenção a seus poetas preferidos, uma certa limitação no plano especulativo, de algum modo compensada pela introjeção de Heidegger. Limitação no plano teórico: o que diz da mímese, então, era convencional e hoje parece bem insuficiente: "A mímese é um espelho: não reflete nada a priori; por isso, é capaz de reproduzir tudo"; "o poeta imita a "natura naturans", não a "natura naturata'". Quanto a Heidegger, embora sua internalização pelo crítico fosse superficial, limitando-se a reiterar a dimensão ontológica do ser-aí (Dasein) e a exigência de autenticidade, ela é capaz de dar bons resultados. É assim que acentua no primeiro Cabral um veio importante e pouco entendido. Isso se mostra especificamente quanto ao poema "Mulher Sentada", de "O Engenheiro". Ao contrário do que eu mesmo afirmava, estou de acordo com a retificação de Merquior: o poema ressalta e louva não só a ação, mas também o recolhimento, o estar consigo mesma da mulher. O acerto se torna mais amplo na análise da "Fábula de Anfion". "Anfion só justifica o destino recusando-se a sofrê-lo passivamente". A leitura que então faz do significado do acaso seria impecável caso, em certo momento, não o tomasse como sinônimo de inspiração. Talvez fosse necessário fazê-lo para incorporar o poeta pernambucano à tradição prezada pelo crítico. Mas "acaso", na "Fábula", significa o reconhecimento dos limites do pensamento causalista, os limites, portanto, do projeto construtivista, que era o do próprio poeta. Por isso, em Cabral, mesmo o de "Uma Faca Só Lâmina", a linguagem não consegue incorporar toda a realidade. O crítico, provisoriamente heideggeriano, considera que a linguagem tem limites porque a "realidade prima" é, no poeta, equivalente ao Ser, sendo, pois, "em seu fundamento último", inapreensível... Eis aí uma arbitrariedade de que há poucos exemplos em Merquior. Mas as objeções cessam diante da preciosa análise comparada de Valéry e Mallarmé, que o leva a mostrar a proximidade de Cabral com este, e não aquele. Resumo os argumentos para acentuar, por fim, o Merquior absolutamente não-datado. Refiro-me aos dois longos ensaios, "Kitsch e Antikitsch" e "Formalismo e Neo-Romantismo", incluídos em "Formalismo e Tradição Moderna" (1974). Os ensaios apresentam duas angulações para a exploração de uma mesma tese: a relação entre a perda de importância da arte e o surgimento da sociedade urbano-industrial. Embora Merquior acentue o momento pós-romântico, noutras passagens ressalta que ela já começara com o romantismo. Prefere, entretanto, ver o romantismo como o causador de resíduos que retardam a possibilidade de romper o abismo entre arte e sociedade. Embora sua tese exigisse um conhecimento mais nuançado do primeiro romantismo alemão -este não é tão-só egolátrico, mas consciente da autonomização do texto quanto ao criador e, além disso, é bem diferente seu perfil antes e depois da conversão religiosa e política de F. Schlegel, quando se torna funcionário e agente de Metternich, isto é, da Europa restaurada-, não posso aqui discuti-la. Limito-me pois a acentuar seu ponto central: a crise que acompanha a arte moderna só poderia ser enfrentada por uma crítica da cultura.

Diagnóstico inesperado
E, aqui, ao mesmo tempo em que admiramos o nível que alcançara a capacidade especulativa de Merquior, vemos com estranheza as condições que levanta como necessárias para a ultrapassagem do abismo: "A raiz do que há de intrinsecamente aristocrático na tradição moderna é o compromisso da arte com a crítica da cultura"; a arte não recuperará sua força de "depoimento humano" enquanto a sociedade "não articular uma constelação axiológica orgânica e coerente". A compreensão dos sintomas dá lugar a um diagnóstico absurdamente inesperado.
É como se sua capacidade de configuração histórico-social em certo momento se deparasse com uma trava, que não conseguisse erguer. Por isso a alternativa passível de ser proposta não seria por ele aceitável: simplesmente, não parece esperar que se combata a marginalidade da arte moderna dentro da estrutura social em que estamos. E, como não é viável imaginar sua ruptura, a grandeza especulativa de Merquior esteve em localizar o impasse em que continuaremos vivendo. A formulação vale muito mais que a resposta proposta.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (ed. Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".



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