São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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O pesquisador francês Dominique Wolton defende a comunicação de massa do desprezo das elites intelectuais
Os meios democráticos

BETTY MILAN
especial para a Folha

A comunicação de massa encontra em Dominique Wolton um especial defensor. O ensaísta francês considera que ela está essencialmente ligada à emancipação do Ocidente e aos processos democráticos. Para ele, constitui um paradoxo das elites intelectuais defender a democracia, mas desprezar o rádio e a televisão, como diz na entrevista abaixo.
Wolton, nascido em 1947, é pesquisador no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica), em Paris, onde dirige o Laboratório de Comunicação e Política e a revista "Hermes: Cognição, Comunicação e Política". Entre seus livros recentes, estão "Internet et Après?" (Internet e Depois?, 1999), "Penser la Communication" (Pensar a Comunicação, 1998) e "Eloge du Grand Public" (Elogio do Grande Público, 1992).

Folha - Gostaria que o senhor falasse das principais mudanças introduzidas pela comunicação no decorrer do século 20.
Dominique Wolton -
A comunicação é indissociável do movimento de emancipação dos indivíduos, da liberdade de consciência, da liberdade de palavra: não existe democracia sem liberdade de informação e de comunicação. Existem portanto dois movimentos paralelos, um que é de ordem cultural e outro, de ordem política. O interessante é analisar como esses dois movimentos se articularam na democracia de massas. Não podemos pensar na emancipação do Ocidente sem pensar no rádio e na televisão. Sou um dos raros pesquisadores favoráveis à comunicação de massas por considerar que está associada à democracia. A crítica que eu faço aos intelectuais é que eles são pela democracia de massas, mas paradoxalmente desprezam o rádio e a televisão.

Folha - Esse desprezo não estaria ligado ao fato de que eles não sabem fazer uso dos meios de comunicação de massas?
Wolton -
Essa é a tese otimista. Acho que as elites são sobretudo elitistas e se sentiram despossuídas pelo rádio e pela televisão. Acharam que a cultura de massas ia colocar em questão a cultura do livro, o que não é verdade. Cada uma dessas culturas desempenha um papel. O desafio é ligar a democracia de massas à comunicação de massas. Nós precisamos nos perguntar quais são as informações, os divertimentos, os jogos, a cultura que devemos dar às pessoas para que elas se sintam simultaneamente consumidoras, cidadãs, membros de uma coletividade nacional...

Folha - Foi exatamente o que aconteceu durante a Copa do Mundo.
Wolton -
Claro. A função principal da mídia é estabelecer o laço social. A mídia é hoje o único recurso por meio do qual as pessoas sentem que pertencem a uma comunidade nacional.

Folha - A manipulação da informação moderna supõe um conjunto de mecanismos de aprendizagem complexa e de adaptação rápida e não está ao alcance de todos. Por isso mesmo pode criar um conflito violento na sociedade, pode engendrar grandes tensões. Como o senhor vê isso?
Wolton -
As desigualdades sociais reaparecem na comunicação. Por isso eu sou favorável, do ponto de vista teórico, à mídia de massas, porque aí a mesma mensagem é enviada a todo o mundo. Isso não basta para chegar a uma igualdade social, mas tem a vantagem de fazer com que todos participem da mesma coisa. Por isso eu temo, na evolução dos sistemas audiovisuais, a tendência agora existente de considerar que o rádio e a televisão são meios de categoria menor e que todos os programas interessantes deveriam aparecer na mídia temática. Isso é perigoso, porque tudo que é cultural não será mostrado ao povo. Então nós teremos um sistema de comunicação com duas velocidades, um para os pobres e outro para os ricos. A história do rádio e da televisão até agora felizmente evitou isso. O que interessa é justamente o leque de programas, ou seja, você tem numa semana 60 programas, você só está interessado em 10, mas os outros 50 programas existem paralelamente e têm tanta legitimidade quanto os que você quer ver. O interesse de um jornal é que a gente tem tudo no mesmo dia. Você está interessado só no esporte, mas de repente você descobre outra coisa porque ela está no jornal. É preciso dar o máximo de informação a todo o mundo, e cada um que fique com o que quiser.

Folha - Os EUA difundem, sob todas as formas possíveis, a sua retórica, os seus comportamentos, os seus problemas, a sua violência compulsiva... Eles absorvem as grandes culturas da civilização ocidental e liberam uma energia caótica nos domínios cultural e moral por intermédio dos meios de comunicação. Como se opor a tal poder?
Wolton -
A comunicação é o problema mais sério do próximo século. A questão toda é a regulamentação. Os americanos dizem que é preciso desregulamentar. Querem isso para difundir livremente a cultura americana. Ora, a resistência das identidades nacionais é fundamental. A Europa reivindica a "exceção cultural", a revalorização do direito autoral, a regulamentação das indústrias, a preservação do serviço público. O risco de que a Europa perca a sua identidade não existe porque a Europa é muito mais antiga do que os EUA, mas a dominação pode ocorrer. O risco não é grave para a Europa, mas é para as outras áreas culturais do mundo, a África, a Ásia, a América Latina, que têm menos recursos técnicos e culturais para resistir.

Folha - As grandes civilizações -chinesa, indiana, muçulmana- não estão ameaçadas no que diz respeito à perda da identidade cultural, devido à tradição, à demografia e à proteção linguística. A Europa parece estar mais sujeita à descaracterização do que a Ásia.
Wolton -
A força da globalização é tal que mesmo as grandes civilizações estão ameaçadas. São as mesmas mensagens audiovisuais que circulam.

Folha - Mais ameaçadas do que a Europa?
Wolton -
Sim, porque nós, europeus, somos pequenos, mas temos dez línguas. Portanto o problema da comunicação e das diferenças culturais nós conhecemos. Não nos entendemos mesmo entre nós. A gente se entende para fazer a Europa econômica. Agora, para chegar à Europa política é muito difícil. E será ainda mais difícil chegar à Europa cultural. Acho que a batalha da Europa contra os EUA vai ser útil para o mundo inteiro.

Folha - Mas a Europa pode se tornar presa dos EUA devido à sua riqueza material.
Wolton -
É bem por isso que os EUA querem ter a mão posta sobre a Europa. Porque para a indústria da comunicação americana nós somos o primeiro mercado do mundo: 360 milhões de habitantes, com um alto nível de vida e um bom nível cultural, é um mercado formidável. Quanto mais rapidamente nós obrigarmos os americanos a aceitarem as identidades das outras culturas, mais rapidamente salvaguardaremos a possibilidade de uma comunidade internacional respeitosa das diferenças.

Folha - E o senhor acaso acha que o Brasil pode desempenhar um papel importante contra a dominação americana?
Wolton -
Essencial. Vocês são muito numerosos, vocês são multirraciais, têm uma inteligência extraordinária da comunicação. Na América Latina, o Brasil equivale à Europa. Há uma incrível inteligência acumulada no Brasil.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Papagaio e o Doutor" (Record), entre outros. A entrevista acima, em versão ampliada, faz parte do livro "O Século", lançado na última semana pela Record.


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