São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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+ cultura

O sociólogo e professor da USP fala de seu novo livro, sobre o abismo social brasileiro, e comenta sua "dupla personalidade" de pesquisador e fotógrafo

Exclusão fora de foco

Caio Caramico Soares
da Redação

Livro que conclui a trilogia iniciada com "O Poder do Atraso" (ed. Hucitec) e "Reforma Agrária - O Impossível Diálogo" (Edusp), "A Sociedade Vista do Abismo", de José de Souza Martins, reúne ensaios que discutem temas como migrações internas e escravidão contemporânea. No livro, que está sendo lançado pela ed. Vozes, Martins questiona também o conceito de exclusão social, que para ele é um disfarce para as formas de "inclusão anômala" típicas do capitalismo globalizado.
Na entrevista a seguir, dada por e-mail, o professor de sociologia da USP fala de outros temas, como a "vida cotidiana". Relendo a obra de Marx na perspectiva do sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-1991), Martins afirma que as formas de alienação e de "desencontro do moderno e do arcaico" se reproduzem em signos e símbolos do dia-a-dia: as regras do decoro, o sonho, o hábito de mentir.
Outra de suas vertentes de pesquisa -e de prática, como fotógrafo- é a "sociologia visual", que toma a imagem fotográfica como via de "revelação" das relações sociais, sejam elas feitas de controle (a foto 3x4 do RG) ou afeto comunitário (o álbum familiar). Ela é tema de seu artigo "A Imagem Incomum - A Fotografia dos Atos de Fé no Brasil", que está sendo publicado no número 45 da revista "Estudos Avançados".
Nascido em 1938, em São Caetano do Sul (SP), Martins é membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão.

Em seu novo livro o sr. define o conceito de exclusão social como "superficial" e "expressão ideológica de uma práxis limitada, de classe média". Poderia explicar melhor esse ponto?
Venho polemizando com a tentativa de colocar a concepção de exclusão no centro da explicação da realidade social contemporânea em países como o Brasil. Essa é uma peleja necessária, já que aceitar a centralidade do "conceito" de exclusão social seria o mesmo que recusar toda a tradição do pensamento sociológico. A concepção de "exclusão" é antidialética. Ela nega o princípio da contradição, nega a história e nega a historicidade das ações humanas. É um "conceito" ideologicamente útil à classe média e a seu afã conformista de mudar para manter. A minha crítica da concepção de exclusão e da ideologia que dela decorre é para proclamar que nelas se oculta o verdadeiro problema a ser debatido e a ser resolvido: as formas perversas de inclusão social que decorrem de um modelo de reprodução ampliada do capital, que, no limite, produz escravidão, desen- raizamentos, pobreza e também ilusões de inserção social. Não há propriamente exclusão, e sim formas anômalas e injustas de inclusão.
O marxismo e a micro-história são tidas como tendências inconciliáveis. No entanto o sr. se define como discípulo de Marx e, ao mesmo tempo, se interessa em ver como "a história atravessa a vida de pessoas bem concretas". Não há aí uma contradição?
Marx é um cientista bem diferente do autor vulgarizado, cuja ciência as doutrinas partidárias reduziram a um conjunto banal de "conceitos" e classificações. Há nele, antes de tudo, uma teoria da alienação. Portanto uma preocupação com a dimensão fenomenológica da história e dos processos históricos, isto é, a vida cotidiana e os fragmentos de que ela é constituída. Se não posso interrogar sociológica e dialeticamente o fragmento, não posso pensar a práxis, pois a práxis, como mostra o próprio Marx, e também Henri Lefebvre, se dá no âmbito do que é dado, para transformá-lo, para desvendar nele o possível e, portanto, a sua historicidade. Portanto não se trata de micro-história, que é outra coisa, bem diversa, um cânone e um limite da indagação e do conhecimento resultante. Ao contrário, o que proponho e faço é interrogar sociologicamente a complexidade antropológica das miúdas relações e compreensões que, no dia-a-dia, erguem um véu cinzento que separa, aparentemente, o homem cotidiano de sua história e da sua competência para concretizar esperanças.
Como surgiu o seu interesse pela fotografia, na condição de fonte de conhecimento sociológico?
Sou também fotógrafo e me interesso pela fotografia desde a adolescência. Nos últimos anos resolvi me aperfeiçoar fazendo cursos, participando de debates e passando a fotografar regularmente. Também passei a expor minhas fotos à crítica de meus colegas fotógrafos, um meio de corrigir erros e desenvolver tendências. Era inevitável, portanto, que o fotógrafo dialogasse com o sociólogo. Reconheço, porém, um conflito no relacionamento dessas minhas "duas" personalidades. O sociólogo me pede que faça de preferência fotografia documental, que registre o mais minuciosamente possível os "fatos sociais", que faça uma fotografia descritiva, etnográfica. Mas o fotógrafo se insurge contra essa demanda, prefere o diálogo com o expressionismo da xilogravura de Oswaldo Goeldi (1895-1961) e, por meio dele, com os duplos significados, com as ocultações, com o antietnográfico da demanda documental, com os sobressignificados das sombras que decodificam o mundo da luz, que é o mundo da fotografia. É claro que dessa tensão nasce, também, um sociólogo preocupado com a fotografia enquanto instrumento de compreensão sociológica da sociedade.
Gostaria que o sr. explicasse a sua afirmação de que "a modernidade fez dos fotógrafos artistas e intelectuais".
A fotografia é um produto da ciência e da técnica e nasce demarcada pelas limitações desses produtos da razão e do que é propriamente moderno. A modernidade, porém, libertou o moderno das precisões da razão, produziu cenários e situações sociais que tornaram possível a fotografia surrealista, por exemplo. Em boa parte, a fotografia desde o início propunha o duplo sentido, o negativo e o positivo, a convivência dos contrários, os enormes desafios do avesso e da ilusão de ótica. O fotógrafo Frank Horvat diz, com razão, que "a fotografia é a arte de não apertar o botão". É preciso pensar antes de fotografar. A fotografia não é uma reprodução do que está diante da câmera. Ela é um produto do imaginário.


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