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Duplo com gelo
STING FALA DO CD "IF ON A WINTER'S NIGHT...",
EM QUE REVISITA A MÚSICA DOS SÉCULOS 17 E 19,
DIZ PERTENCER A UMA TRADIÇÃO BEM MAIS ANTIGA QUE A DO ROCK, FALA DA PREOCUPAÇÃO COM A VELHICE E ATACA OS CRÍTICOS
Tony Molina/Deutsche Grammophon/Divulgação
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O músico inglês Sting, que concedeu entrevista ao Mais! em Londres
LOBÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Esta história começa de
maneira curiosa: estou, desde o início de
agosto, completamente absorto na tarefa de
escrever minha biografia.
A partir daquele momento,
fui entrando num estado de total introspecção para mergulhar de cabeça nas entranhas
de minha existência.
Decidi diminuir todas as minhas outras atividades para ativar ao máximo a memória e poder alcançar "lugares, cheiros,
sons, episódios da minha vida
vivida, há muito intocados".
Escrever sobre nossas histórias é uma boa maneira de pôr
ordem na casa e preparar o HD
mental para mais 50 anos de
aventuras...
Enfim, estava nesse estado
literalmente interessante
quando agora, num final de tarde de outubro, recebo um convite do Mais! para realizar uma
entrevista com o Sting no dia 3
de novembro, em Londres.
A princípio, nem sequer ponderei a possibilidade, em virtude de tudo isso que falei. No entanto a voz da aventura falou
mais alto. Na segunda-feira, dia
2, cheguei a Londres.
Estava frio, a paisagem era
puro outono, e as ruas já estavam enfeitadas para o Natal. A
entrevista estava marcada para
o dia seguinte, às 11h15 numa
produtora de filmes.
Como sou um ser pontual,
chego ao local às 11h15, numa
manhã chuvosa, em meio à troca da guarda do Palácio de Buckingham. Sou simpaticamente
recebido por Lucy, a pessoa
que organiza a agenda de Sting,
pedindo mil desculpas por um
atraso em virtude de uma equipe de TV retardatária.
Fiquei esperando uma meia
hora, tomando uma xícara de
chá com leite e lendo o "booklet" do CD. Depois de um entra e sai da equipe de TV retardatária, desce pela escada um
Sting de barba, suéter, simpático, dirigindo-se em minha direção e, para minha surpresa,
me dando um afetuoso abraço.
Imediatamente, Lucy me
conduz ao segundo andar. Vou
arrumando meu computador
para a gravação, enquanto
Sting vem se sentar no sofá, ao
meu lado. Peço a ele que seja
um pouco paciente, por ser eu
um lobo em pele de jornalista,
e lhe ofereço um agasalho da
seleção brasileira, original, de
1962, dizendo:
"Achei interessante trazer
pra você do Brasil algo que possa ser usado no frio".
E, parecendo muito contente, garantiu que eu não poderia
ter acertado mais no presente:
pôs a camisa no peito meio que
experimentando e, sorrindo,
disse que verde era a sua cor
predileta e me agradeceu em
português: "Muito obrigado".
STING - Bom, passei os últimos
oito meses dando muitas entrevistas sobre este disco e acho
que comecei lentamente a me
entender melhor, a entender o
porquê desse tema.
Ao tentar satisfazer a curiosidade de todos pelo fato de estar
fazendo um disco sobre o inverno a essa altura da minha vida, acabei descobrindo ser uma
espécie de preparação para o
meu inverno, para o inverno da
minha vida.
Acabei de fazer 58 anos e sei
que não estou ainda dentro
desse período, desse próximo
terceiro ato das nossas vidas.
A gente tem o primeiro período como jovem, o segundo
-no qual nos encontramos- e,
logo em seguida, vem o momento em que a maioria das
pessoas morre de medo.
Estou abraçando a velhice e
fico pensando: se por acaso
chegar a desfrutar dela, como
serei como velho, um homem
de 85 anos? Que tipo de homem
serei eu, o que estarei pensando, sentindo, como vou me
comportar?
Na verdade, necessito de um
modelo, pois meus pais morreram mais ou menos com a minha idade atual e, meus avós,
quando eu era muito criança.
Portanto, se eu acabar vivendo mais do que eles, não terei
um modelo a seguir.
Fico procurando conhecer
homens velhos que eu possa
adotar como modelo.
FOLHA - Engraçado. No início dos
anos 1990, comecei a voltar a estudar violão clássico para poder me divertir quando chegasse aos 70, 80...
STING - Não acredito que nossa
sociedade esteja direcionada
para tratar os mais velhos com
reverência, respeito... A tendência é colocá-los à parte.
FOLHA - Enquanto o planeta todo
começa a envelhecer, é bem engraçado esse pavor patológico.
STING - Porque, nas sociedades
mais tradicionais, os mais velhos são tratados como...
FOLHA - Homens sábios...
STING - Homens sábios, sim,
sempre foram detentores de
uma posição, honra, e sua sabedoria, utilizada para tomar decisões. Portanto, gostaria de ser
um desses homens sábios.
(risos)
FOLHA - Eu também, mas você não
acha que a ciência em geral, a biologia, a robótica, a genética já não estão fazendo uma obrigatória mudança de paradigma em relação a
esse tabu?
STING - Assim espero, mas você
percebe essa repulsa pela velhice em praticamente todos os
setores, como no rock and roll:
é normal tachar "rock stars" de
velhos, como se isso fosse um
crime -geralmente quem escreve são jornalistas velhos (risos)! Afinal de contas, nós só temos duas opções: ou morremos
ou continuamos a envelhecer.
FOLHA - Mas isso só me parece
acontecer com o rock and roll, pois o
"bluesman", quanto mais velho,
melhor; o sambista também.
STING - Sim. São grandes homens, todos de grande sabedoria, tocando seus instrumentos,
fazendo música com muita dignidade.
FOLHA - A humanidade em geral
ao menos deveria ser eternamente
grata pelo fato de o rock and roll ter
estendido dramaticamente o vigor e
o tempo de vida útil de todo cidadão
do globo, não é?
STING - Veja bem... Na semana
passada, estive em Nova York
para a celebração dos 25 anos
do Rock and Roll Hall of Fame,
no Madison Square Garden,
que por sinal foi um evento esplêndido!
Encontrei muitos amigos,
como Stevie Wonder, Bruce
Springsteen, Bono, Mick Jagger. Foi uma noite fantástica,
com apresentações memoráveis, mas de repente nos olhamos e constatamos: estamos
todos velhos!
Aí você começa a ouvir os
resmungos, tipo "ai, minha gota
não me deixa em paz", e outro
responde "e sua hérnia, como
vai?" etc. e tal.
Taí, era uma coisa que nenhum de nós esperaria experimentar, mas o fato é este: estamos ficando velhos... e o que temos que fazer é envelhecer
com graça e dignidade.
FOLHA - Quando eu era bem jovem, ganhei uma "Playboy" de presente, e o que mais me impressionou naquela edição foi um desenho
dos Beatles enquanto velhos septuagenários... Foi uma sensação
muito esquisita imaginá-los sem a
juventude...
STING - Nós pensamos ser
imortais...
FOLHA - E onipotentes. Bem, eu
queria falar mais sobre a feitura do
seu disco, que por sinal é lindo. Como foi preparar esse "ensaio" para a
velhice?
STING - Fui levado pela minha
curiosidade. Não planejei nada,
não tinha uma agenda a cumprir, só meu amor e minha curiosidade pela música. E as descobertas, por exemplo: a música do século 17, o cromatismo, a
harmonia, Henry Purcell
[1659-95] tem melodias tão estranhas, modernas.
FOLHA - Como observar uma pintura de Bosch [c. 1450-1516] ou
Bruegel, são muito modernas.
STING - É. Eles viam o futuro!
FOLHA - É muito interessante perceber a atmosfera de frescor sobre
como as músicas foram arranjadas,
a versão livre de uma canção de
Schubert para o inglês, a maravilhosa adaptação daquela sarabanda da
"Sexta Suíte" para violoncelo em
que você pôs a letra...
STING - Na verdade, ao conceber essas canções, fui percebendo que faço parte desse legado de compositores e de músicas feitas há milhares de anos,
uma herança bem mais longa
que a do rock and roll (risos).
Introduzir minhas composições nesse cenário é bem interessante.
FOLHA - Bom, trata-se de um lançamento da Deutsche Grammophon [marca da Universal Music],
um dos maiores e mais exigentes
selos de música erudita do mundo.
Como a crítica recebeu o disco?
STING - (muitos risos) Acredito
que a crítica tenha trabalho
mais sério a fazer do que ouvir
meus discos. Eles estão mais
preocupados em farejar qual
será a próxima grande coisa e
simplesmente não ouvem
meus discos.
O movimento é levantar o
novo e botar para baixo tudo o
que por acaso eu venha a apresentar, mas estou bem resolvido quanto a isso.
As coisas são assim.
FOLHA - É uma determinada percepção da realidade, não é? Eu, por
exemplo, já fui enterrado umas cinco vezes... Adoram me enterrar. A
gente faz um trabalho caprichado,
passa anos para entregar um produto o mais bem realizado possível e...
STING - Eles já têm a crítica
pronta em suas cabeças muito
antes, não precisam nem ouvir
o que você fez. Mas compreendo, esse é o jogo, tem que haver
essa troca para o novo entrar.
Essas são as regras do jogo.
No início, temos que lutar
muito para aparecer, depois temos que lutar para nos manter
aonde chegamos. Sendo assim,
que continuemos lutando muito para as pessoas continuarem
a querer nos ouvir.
FOLHA - Ok, Sting, vamos então falar um pouco do seu show no Brasil.
STING - Trata-se de um show
inteiramente diferente desse
álbum, que é introspectivo, invernal. Vou levar para São Paulo minha banda de rock, com
Dominic Miller na guitarra,
Dennis nos teclados e talvez
Vinnie Colaiutta na bateria.
Será um show alto e barulhento, com meus hits, sem nenhum espírito de canções de
inverno. Lá é pleno verão, e não
consigo me imaginar tocando
esse material do novo disco no
Brasil, por não possuir essa cultura invernal...
FOLHA - Você poderia pensar em
fazer uns concertos nas regiões serranas, lá tem umas catedrais bacanas (risos). Inclusive, antes de começar a entrevista, a Lucy estava me dizendo que tem uma emissora brasileira de grande porte querendo adquirir os direitos de transmissão desse evento.
STING - Isso seria bom, isso seria muito bom! Vamos realizar
o DVD na catedral de Durham,
perto da minha cidade natal
[Newcastle], no norte da inglaterra.
É uma linda catedral do século 11, perfeita para receber
um certo tipo de música, na região em que nasci, com meus
amigos de infância, primos, tudo muito familiar, numa atmosfera de volta ao lar.
FOLHA - Ah, responda uma coisa:
estava lendo os créditos das músicas
e percebi um cara com o seu sobrenome (Sumner). É um parente seu?
STING - Ah, sim, é o Joe, meu filho mais velho, que fez uma
participação ao cantar numa
das faixas.
FOLHA - Legal. Agora vamos falar
sobre a temática do show de que você vai participar, a ecologia. Quais as
suas expectativas ao retomar no
Brasil uma bandeira que você já vem
envergando há tanto tempo [em
1989, criou a Rainforest, fundação
que visa a proteção de terras indígenas amazônicas]?
STING - O Brasil é um lugar onde nós temos um espectro
enorme de assuntos relacionados à ecologia. Também se trata de um país de uma diversidade cultural como poucos, com
mistura de religiões, raças, culturas, manifestações artísticas
das mais variadas.
O Brasil é um experimento
fascinante, um lugar que produz uma música de alta qualidade, que, a meu ver, é onde se
produz a melhor música do
mundo. Amo a música brasileira, não tem jeito (risos)...
Além do mais, tem se tornado muito bem-sucedido economicamente, mudando radicalmente sua face em relação ao
mundo, dá pra sentir que o governo atual tem dado mostras
de que está preocupado com as
questões ecológicas.
FOLHA - Você tem certeza disso?
STING - Bem... mais do que antes... bem mais do que antes.
FOLHA - Concordo, não resta dúvida, mas, de vez em quando, prefiro
ter o vilão canastrão explícito na minha frente, pois às vezes muita simpatia confunde a cabeça da gente.
STING - São políticos, eles têm
que fazer coisas embaraçosas
na hora certa, é uma profissão
bem dura.
Há pouco houve aquele encontro de líderes sobre Copenhague [sede de uma conferência das Nações Unidas sobre
mudança climática, no mês que
vem] e finalmente se chegou à
conclusão de que, mesmo a
curto prazo, não é mais viável
pensar numa economia sem
suporte da natureza.
FOLHA - Em relação ao Brasil, você
deve estar sabendo das idiossincrasias do próprio governo, ora dando
força para o Ministério do Meio Ambiente, ora declarando que o negócio é plantar cana-de-açúcar, pois os
usineiros seriam nossos "pioneiros",
o gado invadindo o Pantanal...
STING - Isso é terrível mesmo.
Há também a necessidade de
comida.
FOLHA - Com toda essa complexidade, como você vê a chegada de
um cara como Barack Obama no cenário mundial?
STING - Olha, eu me encontrei
umas duas vezes com ele e fiquei muito impressionado. É
uma pessoa muito presente,
muito direta e fala incrivelmente bem. Sua educação foi
permeada por inúmeras matrizes culturais.
Não conseguiremos sobreviver divididos em segmentos;
sendo assim, Obama é uma boa
pessoa para reunir todos nós. É
um emprego bem duro o dele!
FOLHA - A última especulação em
relação a ele é se foi meritório ou
não o recebimento do Prêmio Nobel
da Paz.
STING - Bem, na minha opinião
ele poderia ter recusado o prêmio até governar por um período mais extenso no cargo. Eu
diria: "Obrigado, mas só aceitarei depois que tiver concluído
meu trabalho".
Talvez fosse um exemplo
melhor. Mas ele é muito inteligente, muito esperto.
FOLHA - Num dia desses estava zapeando e, de repente, sintonizei a
Fox News...
STING - A troco de quê? (risos)
FOLHA - Pura curiosidade... E me
deparei com uma figura patética, na
frente de um quadro-negro giratório onde de um lado estavam os fundadores da República, os "Founding
Fathers", e, do outro lado, o staff do
Barack, sendo tachado de comunista para baixo.
STING - Isso é cômico.
FOLHA - E por aqui, na Inglaterra,
como está se saindo o [premiê, do
Partido Trabalhista] Gordon Brown?
STING - Olha, sempre me considerei um cara de esquerda,
mas, nos dias de hoje, me parece que não há mais uma divisão
nítida entre direita e esquerda.
FOLHA - Talvez esses conceitos estejam arcaicos e seja a hora de pensar outras formas de governo. No
Brasil a gente vê o Lula tendo que
entrar em inúmeras contradições
para conseguir governar. Ele disse
que, se Jesus Cristo viesse a governar o país, fatalmente teria que fazer aliança com Judas...
STING - Pois é, política implica
um expediente de balanço de
poder, algo muito complexo, e
esse tipo de comportamento a
gente encontra em todo lugar
no mundo.
FOLHA - E quanto ao cenário latino-americano, a presença de Hugo
Chávez [presidente venezuelano]?
Num dia desses entrei no site do Radiohead, uma banda de que gosto
muito, e me deparei com inúmeros
links pró-Chávez. Juro que fiquei
muito surpreendido.
STING - Chávez? É aquele negócio de culto à personalidade,
aquela postura da velha escola
da esquerda.
FOLHA - Uma figura caricatural.
Nos dias de hoje, sustentar uma cartilha de uma esquerda ortodoxa é
meio esquisito.
STING - É como eu falei anteriormente. Acho que o mundo
só conseguirá sobreviver em
harmonia se todos nos tornarmos verdadeiramente uma família e desenvolvermos o nosso
espírito de colaboração.
FOLHA - E você se sente otimista
em relação ao futuro?
STING - Acho que o otimismo é
a única estratégia a ter.
Temos que ser realistas, mas
não podemos jamais deixar de
ser otimistas -é nossa única
estratégia.
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