São Paulo, domingo, 15 de novembro de 2009

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Duplo com gelo

STING FALA DO CD "IF ON A WINTER'S NIGHT...", EM QUE REVISITA A MÚSICA DOS SÉCULOS 17 E 19, DIZ PERTENCER A UMA TRADIÇÃO BEM MAIS ANTIGA QUE A DO ROCK, FALA DA PREOCUPAÇÃO COM A VELHICE E ATACA OS CRÍTICOS
Tony Molina/Deutsche Grammophon/Divulgação
O músico inglês Sting, que concedeu entrevista ao Mais! em Londres

LOBÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Esta história começa de maneira curiosa: estou, desde o início de agosto, completamente absorto na tarefa de escrever minha biografia.
A partir daquele momento, fui entrando num estado de total introspecção para mergulhar de cabeça nas entranhas de minha existência. Decidi diminuir todas as minhas outras atividades para ativar ao máximo a memória e poder alcançar "lugares, cheiros, sons, episódios da minha vida vivida, há muito intocados". Escrever sobre nossas histórias é uma boa maneira de pôr ordem na casa e preparar o HD mental para mais 50 anos de aventuras...
Enfim, estava nesse estado literalmente interessante quando agora, num final de tarde de outubro, recebo um convite do Mais! para realizar uma entrevista com o Sting no dia 3 de novembro, em Londres. A princípio, nem sequer ponderei a possibilidade, em virtude de tudo isso que falei. No entanto a voz da aventura falou mais alto. Na segunda-feira, dia 2, cheguei a Londres.
Estava frio, a paisagem era puro outono, e as ruas já estavam enfeitadas para o Natal. A entrevista estava marcada para o dia seguinte, às 11h15 numa produtora de filmes.
Como sou um ser pontual, chego ao local às 11h15, numa manhã chuvosa, em meio à troca da guarda do Palácio de Buckingham. Sou simpaticamente recebido por Lucy, a pessoa que organiza a agenda de Sting, pedindo mil desculpas por um atraso em virtude de uma equipe de TV retardatária. Fiquei esperando uma meia hora, tomando uma xícara de chá com leite e lendo o "booklet" do CD. Depois de um entra e sai da equipe de TV retardatária, desce pela escada um Sting de barba, suéter, simpático, dirigindo-se em minha direção e, para minha surpresa, me dando um afetuoso abraço.
Imediatamente, Lucy me conduz ao segundo andar. Vou arrumando meu computador para a gravação, enquanto Sting vem se sentar no sofá, ao meu lado. Peço a ele que seja um pouco paciente, por ser eu um lobo em pele de jornalista, e lhe ofereço um agasalho da seleção brasileira, original, de 1962, dizendo: "Achei interessante trazer pra você do Brasil algo que possa ser usado no frio". E, parecendo muito contente, garantiu que eu não poderia ter acertado mais no presente: pôs a camisa no peito meio que experimentando e, sorrindo, disse que verde era a sua cor predileta e me agradeceu em português: "Muito obrigado".

 

STING - Bom, passei os últimos oito meses dando muitas entrevistas sobre este disco e acho que comecei lentamente a me entender melhor, a entender o porquê desse tema.
Ao tentar satisfazer a curiosidade de todos pelo fato de estar fazendo um disco sobre o inverno a essa altura da minha vida, acabei descobrindo ser uma espécie de preparação para o meu inverno, para o inverno da minha vida.
Acabei de fazer 58 anos e sei que não estou ainda dentro desse período, desse próximo terceiro ato das nossas vidas. A gente tem o primeiro período como jovem, o segundo -no qual nos encontramos- e, logo em seguida, vem o momento em que a maioria das pessoas morre de medo. Estou abraçando a velhice e fico pensando: se por acaso chegar a desfrutar dela, como serei como velho, um homem de 85 anos? Que tipo de homem serei eu, o que estarei pensando, sentindo, como vou me comportar?
Na verdade, necessito de um modelo, pois meus pais morreram mais ou menos com a minha idade atual e, meus avós, quando eu era muito criança. Portanto, se eu acabar vivendo mais do que eles, não terei um modelo a seguir.
Fico procurando conhecer homens velhos que eu possa adotar como modelo.

FOLHA - Engraçado. No início dos anos 1990, comecei a voltar a estudar violão clássico para poder me divertir quando chegasse aos 70, 80...
STING - Não acredito que nossa sociedade esteja direcionada para tratar os mais velhos com reverência, respeito... A tendência é colocá-los à parte.

FOLHA - Enquanto o planeta todo começa a envelhecer, é bem engraçado esse pavor patológico.
STING - Porque, nas sociedades mais tradicionais, os mais velhos são tratados como...

FOLHA - Homens sábios...
STING - Homens sábios, sim, sempre foram detentores de uma posição, honra, e sua sabedoria, utilizada para tomar decisões. Portanto, gostaria de ser um desses homens sábios.

(risos)

FOLHA - Eu também, mas você não acha que a ciência em geral, a biologia, a robótica, a genética já não estão fazendo uma obrigatória mudança de paradigma em relação a esse tabu?
STING - Assim espero, mas você percebe essa repulsa pela velhice em praticamente todos os setores, como no rock and roll: é normal tachar "rock stars" de velhos, como se isso fosse um crime -geralmente quem escreve são jornalistas velhos (risos)! Afinal de contas, nós só temos duas opções: ou morremos ou continuamos a envelhecer.

FOLHA - Mas isso só me parece acontecer com o rock and roll, pois o "bluesman", quanto mais velho, melhor; o sambista também.
STING - Sim. São grandes homens, todos de grande sabedoria, tocando seus instrumentos, fazendo música com muita dignidade.

FOLHA - A humanidade em geral ao menos deveria ser eternamente grata pelo fato de o rock and roll ter estendido dramaticamente o vigor e o tempo de vida útil de todo cidadão do globo, não é?
STING - Veja bem... Na semana passada, estive em Nova York para a celebração dos 25 anos do Rock and Roll Hall of Fame, no Madison Square Garden, que por sinal foi um evento esplêndido! Encontrei muitos amigos, como Stevie Wonder, Bruce Springsteen, Bono, Mick Jagger. Foi uma noite fantástica, com apresentações memoráveis, mas de repente nos olhamos e constatamos: estamos todos velhos! Aí você começa a ouvir os resmungos, tipo "ai, minha gota não me deixa em paz", e outro responde "e sua hérnia, como vai?" etc. e tal. Taí, era uma coisa que nenhum de nós esperaria experimentar, mas o fato é este: estamos ficando velhos... e o que temos que fazer é envelhecer com graça e dignidade.

FOLHA - Quando eu era bem jovem, ganhei uma "Playboy" de presente, e o que mais me impressionou naquela edição foi um desenho dos Beatles enquanto velhos septuagenários... Foi uma sensação muito esquisita imaginá-los sem a juventude...
STING - Nós pensamos ser imortais...

FOLHA - E onipotentes. Bem, eu queria falar mais sobre a feitura do seu disco, que por sinal é lindo. Como foi preparar esse "ensaio" para a velhice?
STING - Fui levado pela minha curiosidade. Não planejei nada, não tinha uma agenda a cumprir, só meu amor e minha curiosidade pela música. E as descobertas, por exemplo: a música do século 17, o cromatismo, a harmonia, Henry Purcell [1659-95] tem melodias tão estranhas, modernas.

FOLHA - Como observar uma pintura de Bosch [c. 1450-1516] ou Bruegel, são muito modernas.
STING - É. Eles viam o futuro!

FOLHA - É muito interessante perceber a atmosfera de frescor sobre como as músicas foram arranjadas, a versão livre de uma canção de Schubert para o inglês, a maravilhosa adaptação daquela sarabanda da "Sexta Suíte" para violoncelo em que você pôs a letra...
STING - Na verdade, ao conceber essas canções, fui percebendo que faço parte desse legado de compositores e de músicas feitas há milhares de anos, uma herança bem mais longa que a do rock and roll (risos). Introduzir minhas composições nesse cenário é bem interessante.

FOLHA - Bom, trata-se de um lançamento da Deutsche Grammophon [marca da Universal Music], um dos maiores e mais exigentes selos de música erudita do mundo. Como a crítica recebeu o disco?
STING - (muitos risos) Acredito que a crítica tenha trabalho mais sério a fazer do que ouvir meus discos. Eles estão mais preocupados em farejar qual será a próxima grande coisa e simplesmente não ouvem meus discos. O movimento é levantar o novo e botar para baixo tudo o que por acaso eu venha a apresentar, mas estou bem resolvido quanto a isso. As coisas são assim.

FOLHA - É uma determinada percepção da realidade, não é? Eu, por exemplo, já fui enterrado umas cinco vezes... Adoram me enterrar. A gente faz um trabalho caprichado, passa anos para entregar um produto o mais bem realizado possível e...
STING - Eles já têm a crítica pronta em suas cabeças muito antes, não precisam nem ouvir o que você fez. Mas compreendo, esse é o jogo, tem que haver essa troca para o novo entrar. Essas são as regras do jogo. No início, temos que lutar muito para aparecer, depois temos que lutar para nos manter aonde chegamos. Sendo assim, que continuemos lutando muito para as pessoas continuarem a querer nos ouvir.

FOLHA - Ok, Sting, vamos então falar um pouco do seu show no Brasil.
STING - Trata-se de um show inteiramente diferente desse álbum, que é introspectivo, invernal. Vou levar para São Paulo minha banda de rock, com Dominic Miller na guitarra, Dennis nos teclados e talvez Vinnie Colaiutta na bateria. Será um show alto e barulhento, com meus hits, sem nenhum espírito de canções de inverno. Lá é pleno verão, e não consigo me imaginar tocando esse material do novo disco no Brasil, por não possuir essa cultura invernal...

FOLHA - Você poderia pensar em fazer uns concertos nas regiões serranas, lá tem umas catedrais bacanas (risos). Inclusive, antes de começar a entrevista, a Lucy estava me dizendo que tem uma emissora brasileira de grande porte querendo adquirir os direitos de transmissão desse evento.
STING - Isso seria bom, isso seria muito bom! Vamos realizar o DVD na catedral de Durham, perto da minha cidade natal [Newcastle], no norte da inglaterra. É uma linda catedral do século 11, perfeita para receber um certo tipo de música, na região em que nasci, com meus amigos de infância, primos, tudo muito familiar, numa atmosfera de volta ao lar.

FOLHA - Ah, responda uma coisa: estava lendo os créditos das músicas e percebi um cara com o seu sobrenome (Sumner). É um parente seu?
STING - Ah, sim, é o Joe, meu filho mais velho, que fez uma participação ao cantar numa das faixas.

FOLHA - Legal. Agora vamos falar sobre a temática do show de que você vai participar, a ecologia. Quais as suas expectativas ao retomar no Brasil uma bandeira que você já vem envergando há tanto tempo [em 1989, criou a Rainforest, fundação que visa a proteção de terras indígenas amazônicas]?
STING - O Brasil é um lugar onde nós temos um espectro enorme de assuntos relacionados à ecologia. Também se trata de um país de uma diversidade cultural como poucos, com mistura de religiões, raças, culturas, manifestações artísticas das mais variadas. O Brasil é um experimento fascinante, um lugar que produz uma música de alta qualidade, que, a meu ver, é onde se produz a melhor música do mundo. Amo a música brasileira, não tem jeito (risos)... Além do mais, tem se tornado muito bem-sucedido economicamente, mudando radicalmente sua face em relação ao mundo, dá pra sentir que o governo atual tem dado mostras de que está preocupado com as questões ecológicas.

FOLHA - Você tem certeza disso?
STING - Bem... mais do que antes... bem mais do que antes.

FOLHA - Concordo, não resta dúvida, mas, de vez em quando, prefiro ter o vilão canastrão explícito na minha frente, pois às vezes muita simpatia confunde a cabeça da gente.
STING - São políticos, eles têm que fazer coisas embaraçosas na hora certa, é uma profissão bem dura. Há pouco houve aquele encontro de líderes sobre Copenhague [sede de uma conferência das Nações Unidas sobre mudança climática, no mês que vem] e finalmente se chegou à conclusão de que, mesmo a curto prazo, não é mais viável pensar numa economia sem suporte da natureza.

FOLHA - Em relação ao Brasil, você deve estar sabendo das idiossincrasias do próprio governo, ora dando força para o Ministério do Meio Ambiente, ora declarando que o negócio é plantar cana-de-açúcar, pois os usineiros seriam nossos "pioneiros", o gado invadindo o Pantanal...
STING - Isso é terrível mesmo. Há também a necessidade de comida.

FOLHA - Com toda essa complexidade, como você vê a chegada de um cara como Barack Obama no cenário mundial?
STING - Olha, eu me encontrei umas duas vezes com ele e fiquei muito impressionado. É uma pessoa muito presente, muito direta e fala incrivelmente bem. Sua educação foi permeada por inúmeras matrizes culturais. Não conseguiremos sobreviver divididos em segmentos; sendo assim, Obama é uma boa pessoa para reunir todos nós. É um emprego bem duro o dele!

FOLHA - A última especulação em relação a ele é se foi meritório ou não o recebimento do Prêmio Nobel da Paz.
STING - Bem, na minha opinião ele poderia ter recusado o prêmio até governar por um período mais extenso no cargo. Eu diria: "Obrigado, mas só aceitarei depois que tiver concluído meu trabalho". Talvez fosse um exemplo melhor. Mas ele é muito inteligente, muito esperto.

FOLHA - Num dia desses estava zapeando e, de repente, sintonizei a Fox News...
STING - A troco de quê? (risos)

FOLHA - Pura curiosidade... E me deparei com uma figura patética, na frente de um quadro-negro giratório onde de um lado estavam os fundadores da República, os "Founding Fathers", e, do outro lado, o staff do Barack, sendo tachado de comunista para baixo.
STING - Isso é cômico.

FOLHA - E por aqui, na Inglaterra, como está se saindo o [premiê, do Partido Trabalhista] Gordon Brown?
STING - Olha, sempre me considerei um cara de esquerda, mas, nos dias de hoje, me parece que não há mais uma divisão nítida entre direita e esquerda.

FOLHA - Talvez esses conceitos estejam arcaicos e seja a hora de pensar outras formas de governo. No Brasil a gente vê o Lula tendo que entrar em inúmeras contradições para conseguir governar. Ele disse que, se Jesus Cristo viesse a governar o país, fatalmente teria que fazer aliança com Judas...
STING - Pois é, política implica um expediente de balanço de poder, algo muito complexo, e esse tipo de comportamento a gente encontra em todo lugar no mundo.

FOLHA - E quanto ao cenário latino-americano, a presença de Hugo Chávez [presidente venezuelano]? Num dia desses entrei no site do Radiohead, uma banda de que gosto muito, e me deparei com inúmeros links pró-Chávez. Juro que fiquei muito surpreendido.
STING - Chávez? É aquele negócio de culto à personalidade, aquela postura da velha escola da esquerda.

FOLHA - Uma figura caricatural. Nos dias de hoje, sustentar uma cartilha de uma esquerda ortodoxa é meio esquisito.
STING - É como eu falei anteriormente. Acho que o mundo só conseguirá sobreviver em harmonia se todos nos tornarmos verdadeiramente uma família e desenvolvermos o nosso espírito de colaboração.

FOLHA - E você se sente otimista em relação ao futuro?
STING - Acho que o otimismo é a única estratégia a ter.
Temos que ser realistas, mas não podemos jamais deixar de ser otimistas -é nossa única estratégia.


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