São Paulo, domingo, 15 de novembro de 2009

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Ponto de Fuga

Recortes do Haiti


No Haiti não há sorrisos nem gingados nem as expansões atribuídas como características "naturais" aos povos de lugares quentes; no calorão constante, nada de bermudas


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Primeiro contato, e rápido, com o país. Precariedade em tudo: ruas desventradas; comércio paupérrimo ao longo das calçadas; casas nunca terminadas. Falta de eletricidade, de água. Ausência de ônibus, substituídos pelos "tap-tap", pequenas caminhonetes: os passageiros vão sobre as carrocerias cobertas. Inexistência de táxis. Os pedestres, inúmeros, infiltrados no trânsito caótico.
As pessoas caminham eretas, de cabeça erguida. Não há sorrisos nem gingados nem as expansões atribuídas de hábito como características "naturais" aos povos de lugares quentes. Inda mais quando são negros. No calorão constante, nada de bermudas. Os homens usam sempre camisetas cavadas sob as camisas. As mulheres têm elegância discreta. Em suas roupas impecáveis, que parecem não sujar nem amassar nunca, o aspecto é apolíneo.
Visita à Escola Nacional das Artes (Enarts). Os locais, os equipamentos, a minúscula biblioteca, tudo à míngua, tudo carente, tudo penúria. Piano de cauda que perdeu duas pernas e se cobriu de poeira. Tablado da sala de dança repleto de buracos. Sala de teatro sem piso. Começa o seminário com estudantes. Tema complexo: a inteligência artística. Primeiro ouvem, graves, imóveis. Depois, com as perguntas, a discussão se eleva como só nos auditórios das melhores universidades. Articulação precisa de pensamento, associações iluminadoras, inquietações pertinentes, tudo vem dos alunos.

Tintas
A pintura dita "primitiva", ou "naïf", feita no Haiti desde o pós-guerra, seduziu intelectuais e estetas. Criou um nicho no mercado internacional das artes e uma enxurrada de artistas. Arnold Antonin, cineasta haitiano, denunciou, num formidável documentário de 1976, intitulado "Art Naïf", o mecanismo perverso e empobrecedor desse sistema.
De fato, é difícil encontrar uma tela estimulante, mesmo entre as que custam muito. Certos pintores tentaram se afastar desse modelo ingênuo buscando uma sintonia com as artes internacionais. Estão expostos nas galerias mais chiques. Poucos demonstram inspiração convincente.

Mãos
Há uma energia criadora no Haiti, numa fímbria entre "arte" e "artesanato". Esculturas de madeira, com formas contorcidas e surreais. Bandeiras bordadas com miçangas e lantejoulas, sobre desenhos mais ou menos derivados do culto vodu. Recortes em folhas em metal recuperadas nos tambores de óleo. Nestes, finamente vazados e martelados com instrumentos rudimentares, há um repertório codificado de motivos fantásticos e metamórficos. Derivam dos mestres mais importantes. Há ainda experiências individuais, algumas tentando inserção nas artes contemporâneas. Essa produção se concentra numa pequena aldeia, chamada La Croix-des-Bouquets.

Gênio
Existe, entre seus criadores, a preocupação para que os ferros cortados haitianos não se tornem "comerciais", como ocorreu com a pintura. Isso é assinalado em outro curta-metragem de Arnold Antonin, sobre os escultores dessa aldeia.
Assim, as obras coloridas são consideradas turísticas, embora haja maravilhosos sapinhos, vacas, macacos ciclistas, tratados com belos acordes cromáticos. Há patrões, chamados de "boss-métal", com o qual trabalham vários aprendizes. Porém, a qualidade brota sobretudo das variações entre cada artífice, mesmo entre os menores. Os mesmos motivos são tratados com nervosidade ou com calma, com sentido diverso da dinâmica ou do equilíbrio. São artistas verdadeiros, grandes e originais.

jorgecoli@uol.com.br


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