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Ponto de Fuga
Recortes do Haiti
No Haiti não há sorrisos
nem gingados nem
as expansões atribuídas
como características "naturais" aos povos
de lugares quentes;
no calorão constante,
nada de bermudas
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Primeiro contato, e rápido,
com o país. Precariedade
em tudo: ruas desventradas; comércio paupérrimo ao
longo das calçadas; casas nunca
terminadas. Falta de eletricidade, de água.
Ausência de ônibus, substituídos pelos "tap-tap", pequenas
caminhonetes: os passageiros
vão sobre as carrocerias cobertas. Inexistência de táxis. Os pedestres, inúmeros, infiltrados
no trânsito caótico.
As pessoas caminham eretas,
de cabeça erguida. Não há sorrisos nem gingados nem as expansões atribuídas de hábito como
características "naturais" aos
povos de lugares quentes. Inda
mais quando são negros. No calorão constante, nada de bermudas. Os homens usam sempre
camisetas cavadas sob as camisas.
As mulheres têm elegância
discreta. Em suas roupas impecáveis, que parecem não sujar
nem amassar nunca, o aspecto é
apolíneo.
Visita à Escola Nacional das
Artes (Enarts). Os locais, os
equipamentos, a minúscula biblioteca, tudo à míngua, tudo carente, tudo penúria. Piano de
cauda que perdeu duas pernas e
se cobriu de poeira. Tablado da
sala de dança repleto de buracos. Sala de teatro sem piso.
Começa o seminário com estudantes. Tema complexo: a inteligência artística. Primeiro ouvem, graves, imóveis. Depois,
com as perguntas, a discussão se
eleva como só nos auditórios das
melhores universidades.
Articulação precisa de pensamento, associações iluminadoras, inquietações pertinentes,
tudo vem dos alunos.
Tintas
A pintura dita "primitiva", ou
"naïf", feita no Haiti desde o pós-guerra, seduziu intelectuais e estetas. Criou um nicho no mercado internacional das artes e uma
enxurrada de artistas.
Arnold Antonin, cineasta haitiano, denunciou, num formidável documentário de 1976, intitulado "Art Naïf", o mecanismo
perverso e empobrecedor desse
sistema.
De fato, é difícil encontrar
uma tela estimulante, mesmo
entre as que custam muito.
Certos pintores tentaram se
afastar desse modelo ingênuo
buscando uma sintonia com as
artes internacionais. Estão expostos nas galerias mais chiques.
Poucos demonstram inspiração
convincente.
Mãos
Há uma energia criadora no
Haiti, numa fímbria entre "arte"
e "artesanato". Esculturas de
madeira, com formas contorcidas e surreais. Bandeiras bordadas com miçangas e lantejoulas,
sobre desenhos mais ou menos
derivados do culto vodu. Recortes em folhas em metal recuperadas nos tambores de óleo.
Nestes, finamente vazados e
martelados com instrumentos
rudimentares, há um repertório
codificado de motivos fantásticos e metamórficos. Derivam
dos mestres mais importantes.
Há ainda experiências individuais, algumas tentando inserção nas artes contemporâneas.
Essa produção se concentra numa pequena aldeia, chamada La
Croix-des-Bouquets.
Gênio
Existe, entre seus criadores, a
preocupação para que os ferros
cortados haitianos não se tornem "comerciais", como ocorreu com a pintura.
Isso é assinalado em outro
curta-metragem de Arnold Antonin, sobre os escultores dessa
aldeia.
Assim, as obras coloridas são
consideradas turísticas, embora
haja maravilhosos sapinhos, vacas, macacos ciclistas, tratados
com belos acordes cromáticos.
Há patrões, chamados de
"boss-métal", com o qual trabalham vários aprendizes.
Porém, a qualidade brota sobretudo das variações entre cada
artífice, mesmo entre os menores. Os mesmos motivos são tratados com nervosidade ou com
calma, com sentido diverso da
dinâmica ou do equilíbrio. São
artistas verdadeiros, grandes e
originais.
jorgecoli@uol.com.br
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