São Paulo, domingo, 15 de novembro de 1998

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AUTORES
Questionamento de verdades universais põe em xeque o saber tradicional
A guerra das ciências

BRUNO LATOUR
especial para a Folha

É costume perguntarem minha opinião sobre aquilo que os americanos chamam a "guerra das ciências" ("science war"). Aos olhos de um reduzido número de cientistas de maior ou menor prestígio -muitas vezes físicos, mas nem sempre-, a universidade foi tomada de assalto por um bando de obscurantistas chamados "pós-modernos", que há 20 anos solapam as bases da civilização ao negar que se possa atingir verdades universais, depuradas dos vestígios da fabricação humana. Não havia muito com que se preocupar enquanto esses sofistas e céticos se restringiam à literatura, mas eis que agora, sob o nome de "science studies", eles se põem a atacar a própria ciência.
A universidade abrigaria em seu interior a serpente da irracionalidade mais desenfreada, sendo o próprio autor desta crônica acusado dos pecados mais sombrios. É preciso, como sugerem muitos desses cientistas encolerizados, pôr termo a essa situação catastrófica eliminando essas filosofias deletérias, quase sempre de inspiração francesa, e enviando o que um deles denomina "esquadrões da verdade!" ("truth squads") para fazer a limpeza dos departamentos. Os brasileiros, felizmente capazes de interessar-se tanto pelas contribuições dos americanos quanto pela dos franceses, acham-se em posição privilegiada para arbitrar essa disputa, que não é tão absurda como certos jornalistas querem fazer crer.
Da perspectiva dos cientistas, ou melhor, dos epistemologistas, é inevitável que toda pesquisa sobre o vínculo entre as culturas no plural e a ciência no singular apareça como uma ameaça. Eles tomaram hábito, durante os séculos, de construir a vida política ocidental sobre o seguinte modelo: nós já sabemos o que forma o mundo comum de todos os habitantes da Terra: ele é composto de partículas, átomos, genes, neurônios, ecossistemas, infra-estruturas, em suma, de um conjunto que forma a matéria e a natureza. Depois, mas somente depois, existe o que não forma mais o mundo comum, causando, ao contrário, nossas divisões, nossas diferenças, nossas disputas, nossas particularidades. Tudo isso que nos divide se denomina, no plural, culturas, quando se consideram os grupos, ou psicologias -sempre no plural- , quando se consideram os indivíduos. Esse modelo de organização política, portanto, combina um mononaturalismo com um multiculturalismo.
É patente a imensa vantagem desse sistema: ele supõe resolvido de uma vez por todas o problema da formação do mundo comum. É uma vantagem considerável: tudo o que nos une é a natureza, o que os filósofos chamavam, outrora, as "qualidades primeiras"; tudo o que nos separa nunca diz respeito à essência das coisas, mas somente a seus aspectos superficiais, às crenças, às representações mais ou menos falaciosas que criamos, em suma, às "qualidades segundas".
Quando existe acordo sobre um assunto, é sempre a propósito da natureza; quando há desacordo, é sempre a propósito de coisas inessenciais, ou seja, que não envolvem, no sentido próprio do termo, a natureza das coisas. Com um tal sistema, aqueles que podem se apropriar do poder científico se apropriam também da possibilidade de definir as fontes do acordo. Quanto mais a ciência se desenvolve, mais haverá acordo, mais a humanidade sucumbirá ao acordo. A religião da ciência de meu compatriota Auguste Comte (1798-1857), que conheceu no Brasil avatares tão curiosos, não tinha outro credo.
Infelizmente, essa doutrina política encontra-se, há algumas décadas, em franco declínio. De fato, não é mais possível associar, como se fazia no tempo de Comte, a realidade exterior, a multiplicidade dos resultados científicos, a proliferação das controvérsias com a unificação, a convergência, a unidade. Hoje não se pode mais dizer que "quanto mais se impõem as ciências, mais existe acordo". Basta pensar nas controvérsias sobre o clima, sobre a genética, sobre o uso dos entorpecentes para ver a que ponto a presença dos fatos perdeu sua capacidade de estabilizar os debates da vida política. Se até agora "a" ciência servia para apagar o incêndio das paixões políticas, hoje "as" ciências, por seus resultados, acrescentam lenha na fogueira. Isso não quer dizer que elas sejam falsas, inexatas, mentirosas, ideológicas, mas que perderam sua capacidade política de unificar sem debate e de antemão o mundo comum.
Façam o teste. Substituam o singular pelo plural, as naturezas. É impossível, de imediato, fazer com que as naturezas cumpram um papel político qualquer. "Os" direitos naturais? Difícil dobrar o orgulho do social com tal multiplicidade. Como inflamar os espíritos para a discussão clássica dos genes e do meio ambiente se vocês falam "das naturezas" em oposição às culturas? Como dobrar o ímpeto de uma indústria se vocês dizem que ela deve proteger "as naturezas"? Como tomar a ciência como força propulsora se vocês dizem que elas são ciências "das naturezas"? Não, o plural decididamente não cai bem à noção política da natureza. Uma multiplicidade somada a uma multiplicidade resulta sempre numa multiplicidade. Ora, desde Platão, é a unidade da natureza que acarreta todo benefício político, pois somente essa reunião, esse ordenamento podem atuar como concorrentes diretos dessa outra forma de reunião, de composição, de unificação absolutamente tradicional e que, desde sempre, chamamos de política.
Por outro lado, o sistema político antigo não vai bem das pernas. Parece cada vez mais difícil subjugar as culturas coletivas, as crenças particulares, cada vez mais difícil abordar apenas os aspectos superficiais da realidade, as qualidades segundas. É cada vez mais difícil dizer aos militantes da ecologia, aos religiosos, aos políticos, aos chefes caiapós, que suas disputas não se referem a nada de essencial e que todos estariam de acordo caso soubessem mais de ciência, caso se modernizassem um pouco, convergindo para os mesmos fatos.
Os fatos não convergem mais. Os atores comuns nunca agem dentro dos estritos limites exigidos pelos sociólogos e antropólogos: as crenças destes últimos remetem à organização social, mental, à psique profunda, mas nunca à realidade das próprias coisas. Ao contrário, parece que os atores comuns insistem, e insistem com firmeza, em falar não apenas de "representações" múltiplas que os indivíduos têm do mundo, mas também da realidade do mundo comum no qual eles desejam viver. Em suma, longe de resignar-se a possuir crenças, os atores comuns querem participar, de pleno direito, da elaboração daquilo que compõe a natureza das coisas.
Como se vê, há uma guerra das ciências. Mas ela não contrapõe, como acreditam os epistemologistas, a razão ao irracionalismo. Ela opõe, de um lado, aqueles que acreditam que o problema político essencial, capaz de definir o mundo comum, encontra-se resolvido de uma vez por todas, já que existe uma natureza unificada e universal, que nada diz de relevante sobre a diversidade das culturas; e, de outro lado, aqueles que pensam que ninguém, em especial os cientistas, tem o direito de simplificar tão grosseiramente, de ligar em curto-circuito o processo histórico pelo qual o mundo comum se compõe pouco a pouco. Isso não quer dizer que essas pessoas abracem a política do multiculturalismo a despeito do que dizem seus adversários (1), mas que elas pensam que as duas posições, a do "mononaturalismo" e a do "multiculturalismo", são prematuras ou mesmo ilícitas, já que não foram conduzidas pelas formas e segundo os procedimentos adequados à política do futuro e que restam ainda ser inventados. Sob a aparência de uma disputa universitária de pouca importância dissimula-se, na verdade, um debate maior para a história da modernização.

Nota:
1. O admirável livro de Barbara Cassin "L'Effet Sophistique" (Paris, Gallimard, 1995) traz um estudo detalhado da primeira "guerra das ciências", a dos filósofos contra os sofistas.


Bruno Latour é sociólogo e pesquisador da ciência francês, autor entre outros de "A Vida de Laboratório" (Relume-Dumará) e "Jamais Fomos Tão Modernos" (Ed. 34).
Tradução de José Marcos Macedo.



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