São Paulo, domingo, 15 de novembro de 1998

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Cibercultura inventa uma forma de promover a essência da humanidade
Uma ramada de neurônios

PIERRE LÉVY
especial para a Folha

Longe de ser uma subcultura de fanáticos da rede, a cibercultura exprime uma mutação maior da própria essência da cultura, pois ela inventa uma forma de promover a autoconsciência da humanidade sem impor uma unidade do sentido.
Num primeiro momento, a humanidade compõe-se de uma profusão de totalidades culturais dinâmicas ou de "tradições" mentalmente encerradas em si mesmas, o que não impede, é claro, nem os encontros nem as influências. "Os homens" por excelência são os membros da tribo. Raras são as proposições das culturas arcaicas que se referem a todos os seres humanos sem exceção. Nem as leis (não "os direitos humanos"), nem os deuses (não as religiões universais), nem os conhecimentos (não os procedimentos de experimentação ou de raciocínio universalmente válidos), nem as técnicas (não as redes nem os padrões mundiais) são universais em sua própria construção.
A clausura do sentido era assegurada pela transcendência, pelo modelo, pela decisão dos ancestrais, em suma, por uma tradição. Havia uma carência de registro, sem dúvida. Mas a transmissão cíclica de geração a geração garantia a perenidade no tempo. O potencial da memória humana, entretanto, limitava a amplitude do tesouro cultural às lembranças e aos saberes de um grupo de anciãos. Totalidades vivas, embora totalidades fechadas, sem universal.
Num segundo momento, "civilizado", as condições de comunicação instauradas pela escritura conduzem à descoberta prática da universalidade. Os escritos e, depois, os impressos comportam uma possibilidade de extensão indefinida de memória social. A abertura universalista efetua-se tanto no tempo quanto no espaço. O universal totalizante traduz a inflação dos signos e a fixação do sentido, a conquista de territórios e a sujeição dos homens.
O primeiro universal é imperial, estatal. Ele se impõe por sobre a diversidade das culturas. Em toda parte, ele tende a cavar um sulco do ser sempre idêntico, seja de forma independente de nós (como o universo construído pela ciência), seja vinculando-o a uma definição abstrata (os direitos humanos). Sim, nossa experiência existe como tal a partir de então. Ela se encontra e comunica no interior de espaços virtuais estranhos: a revelação, o final dos tempos, a razão, a ciência, o direito. Do Estado às religiões do Livro, das religiões às redes da tecnociência, a universalidade afirma-se e ganha corpo, mas quase sempre pela totalização, extensão e manutenção de um sentido único.
Ora, a cibercultura, terceiro estágio da evolução, preserva a universalidade dissolvendo a totalidade. Ela corresponde ao momento em que nossa espécie, pela planetarização econômica, pela densificação das redes de comunicação e de transporte, tende a formar uma única comunidade mundial, ainda que essa comunidade seja -e quanto!- desigual e conflituosa. Única em seu gênero no reino animal, a humanidade reúne toda sua espécie numa única sociedade. Mas do mesmo golpe, e paradoxalmente, a unidade de sentido é rompida, talvez porque ela comece a se realizar praticamente, pelo contato e pela interação efetiva.
Flotilhas dispersas e dançantes de arcas abrigando a precariedade de um sentido problemático, reflexos desordenados de um grande todo fugaz, evanescente, conectadas ao universos, as comunidades virtuais constroem e dissolvem perpetuamente suas micrototalidades dinâmicas, emergentes, imergentes, à deriva entre as correntes turbilhonantes do novo Dilúvio.
As tradições desdobravam-se na diacronia da história. Os intérpretes, operadores do tempo, elos entre as linhagens evolutivas, pontes entre o futuro e o passado, reatualizavam a memória, transmitiam e inventavam, num só movimento, as idéias e as formas. As grandes tradições intelectuais ou religiosas construíram pacientemente as bibliotecas de hipertextos às quais cada geração acrescentava seus nós e seus laços. Inteligências coletivas sedimentadas, a igreja ou a universidade costuravam os séculos um ao outro. O Talmude faz medrar os comentários dos comentários, nos quais os sábios de ontem dialogam com os da véspera.
Longe de deslocar o tema da "tradição", a cibercultura o inclina num ângulo de 45 graus para situá-la na sincronia ideal do ciberespaço. A cibercultura encarna a forma horizontal, simultânea, puramente espacial da transmissão. Para ela, o tempo é uma decorrência. Sua principal operação é conectar no espaço, construir e estender os rizomas do sentido.
Eis o ciberespaço, o pulular de suas comunidades, o matagal espesso de suas obras, como se toda a memória dos homens se desdobrasse num único instante: um imenso ato de inteligência coletiva sincronizado, convergindo para o presente, clarão silencioso, divergente, explodindo como uma ramada de neurônios.


Pierre Lévy é sociólogo e historiador da ciência, professor do departamento de hipermídia da Universidade de Paris 8, autor de "As Tecnologias da Inteligência" e "O Que É Virtual" (Ed. 34). Ele escreve mensalmente na Folha. Tradução de José Marcos Macedo.


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