São Paulo, Domingo, 16 de Janeiro de 2000 |
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+ debate Manoel de Oliveira responde a Alencastro
Manoel de Oliveira
Estimado professor.
Sim, estimado porque junta a sua
natural competência histórica ao interesse pela análise de certos aspectos do cinema. Duas cousas que eu sobrestimo e
que, com os tempos modernos, se vêm
entrelaçando, nem sempre do melhor
modo. E ainda porque a sua atenção revela o reconhecimento de alguma seriedade contida nos meus filmes, seriedade
que em realidade sempre procuro.
O facto de ver em si, para além do eminente professor de história que o senhor
é, também o cinéfilo atento e conhecedor
dos meus filmes, não pode deixar de me
tocar de um modo muito particular e estimulante. Por tal motivo, e sem nenhum
sentimento de obrigação, é com grande
gosto que beneficio da oportunidade que
me dá de explanar os meus pontos de
vista sobre os aspectos que o professor
topou em pontos fulcrais dos meus filmes "A Carta" e "Não ou a Vã Glória de
Mandar", sem esquecer as questões que
envolvem o padre Vieira e a escravidão.
nativos de alto a baixo das Américas onde os negreiros despejaram os africanos da Etiópia, de Angola e de outras partes da África, e não apenas no Brasil. O Brasil pensa que isso foi obra exclusiva do português a quem chama de colono. Ora, os africanos despejados no Brasil e noutras partes das Américas eram um caso bem diferente dos índios, pois estavam criminosamente desenraizados e perdidos da sua identidade. Quem o fazia? Portugueses, sim, em boa parte e relativamente ao Brasil. Mas só portugueses? Não, bem nítido que não. Os próprios africanos, as tribos mais fortes, aprisionavam as mais fracas para as venderem aos brancos, aos europeus holandeses, ingleses, italianos, espanhóis, franceses, eu sei lá. E a primeira revolta ligada a Tiradentes, no Brasil não se levantou para eliminar a escravatura, mas tão só para transferir o poder, libertando o território da tutela de Portugal, o que veio a acontecer, mais tarde, voluntária e pacificamente por vontade de d. Pedro 4º de Portugal. Ferro e fogo Portugal tem culpas, mas, malgrado essas culpas, malgrado a escravização dos negros e até de índios, que nos deixa hoje uma triste memória para a história da colonização e que ainda hoje uma boa parte de brasileiros não cesse de culpar os portugueses, foram eles, os portugueses, que, principiando por encontrar a Terra de Vera Cruz, fizeram o Brasil, e o fizeram depois independente -país que é hoje essa grande e acolhedora nação multirracial e multinacional e um povo que gera simpatia em todo o lado do mundo. Há simpatias, sim, mas não há na Europa e no mundo nação que não tenha nascido a ferro e fogo, e isto se afirma no filme "A Carta" -porém o Brasil é uma boa excepção. Também não há raça superior a outra raça, nem nação ou povo superior a outro. Todo homem enraíza a mesma natureza. E é daí que o mal vem à humanidade. Há uma lenda no Génesis do Velho Testamento, sob o título "Corrupção da Humanidade", em que se lê a propósito da maldade dos homens: "O Senhor arrependeu-Se de ter criado o homem na terra, e o Seu coração sofreu amargamente". Não vamos agora culpar Deus por nos ter criado, ou culpar o padre Vieira pelo que não fez, ou pelo que fez o colono português, embora isso pudesse ser enganosamente confortável para as nossas más consciências. Não sou pessimista, porque optimista é enfrentar as realidades tais quais elas são e corrigi-las onde forem más. Também não deveremos olhar o passado e julgá-lo com a mentalidade de hoje. A mentalidade do século 17 era bem outra, e não se falava dos Direitos do Homem (os quais ainda hoje estão longe de serem respeitados em muitas latitudes), e é nesta circunstância que padre Vieira se eleva como homem de um espírito muito avançado ao do seu tempo. E será interessante assinalar que Portugal está à cabeça dos primeiros países europeus que aboliram a escravatura. O Brasil só o fez bastante mais tarde. A tarefa dos descobrimentos iniciados por Portugal, já em 1440, foi longa e arriscada, precisou de grande perseverança, sofrimento e destemor. Numa segunda viagem, destinada à Índia, quis Deus que Álvares Cabral aportasse às Terras de Vera Cruz. Faz agora 500 anos com a passagem do milénio. Mas o espírito que animou os descobrimentos, honra lhe seja feita, não era o de colonizar e dominar as terras que fossem encontradas, mas de cristianizar os seus povos, tendo por finalidade material encontrar um caminho marítimo para a Índia, pela guloseima das especiarias. Novos mundos Os maus hábitos colonialistas foram introduzidos posteriormente, e penso que cabia aos historiadores apurar bem e em profundidade por onde e por quem principiaram. Até porque os marinheiros portugueses, no tempo de Afonso de Albuquerque, casavam com as nativas das terras onde chegavam, e estabeleciam-se relações de amizade com esses povos. Mas não sou eu que devo falar disso, que não sou historiador. Convido a si, meu caro interlocutor, para se ocupar dessa parte. Mas, voltando aos descobrimentos, agora a propósito do filme "Não ou a Vã Glória de Mandar", é nesta atitude, proposição de dádiva, como dar novos mundos ao mundo, e não a de uma crítica, aliás justa quando posta a actos de conquista para um domínio impróprio, ou aos actos negativos, como o da escravização como fôra o caso dos negros, ou o da perseguição aos judeus no tempo da Inquisição que se estendeu a quase toda a Europa, mas que não tinham de fazer parte deste filme. Já Timor, Cabo Verde, Angola e Moçambique são elementos da essência deste mesmo filme, que não poderia ter sido feito se não tivesse acontecido o Movimento de 25 de Abril, movimento que alterou definitivamente o estatuto colonial português, dando plena autoridade ao Portugal de hoje no direito de reclamar a independência de Timor Leste, sua ex-colônia, porque não há maior vergonha do que a de ocupar um país ao qual se tinha acabado de dar a independência que lhe era devida, e nesse preciso momento sofrer a ocupação violenta do imperialismo indonésio. É certo que a independência dada às colónias portuguesas pela Revolução de 25 de Abril foi cumprida de um modo precipitado. Mas findou com brilho, honra e dignidade, embora com tristeza para alguns naturais e saudade para outros portugueses, ao ver Portugal, voluntária e pacificamente, fazer a passagem de Macau ao continente chinês. Grande milagre Ainda uma última cousa, meu caro professor Luiz Felipe de Alencastro. A questão que cita, sobre o dito do padre Vieira, "milagre e grande milagre", por terem à mão os missionários jesuítas a possibilidade de evangelizar os negros vindos de África. É necessário compreender que, para os religiosos jesuítas ou de qualquer outra ordem, o importante é a salvação da alma, tida para estes como imortal, mesmo que para isso sofra o corpo. Já para o ateu isto não tem sentido porque não crê na imortalidade da alma. Mesmo assim, nos mostra a história que o ateu também é capaz de martirizar o corpo de quem quer que seja sem nenhum benefício para a "mortalidade" da alma. Não veja nisto que eu queira justificar escravaturas ou qualquer outro tipo de violência, seja em nome de quem for, e menos ainda em nome de Deus, pois ninguém por Ele faz justiça na Terra. Se Ele existe, lá está para a fazer sem a encomendar a nenhuma das igrejas. O meu filme sobre o padre Vieira sairá como uma lenda sobre a PALAVRA e a UTOPIA, mas tal como a história o indica. E, se ainda houver, senhor director da Folha, um pequeno espaço para meter esta redondilha, "Endechas a Bárbara Escrava", do nosso Camões, (nosso, porque o faz nosso a pátria língua) versos sentidos na Índia, e cuja imagem bem poderia ser aplicada ao Brasil. Com eles, o saúdo e termino: "Aquela cativa Que me tem cativo Porque nela vivo Já não quer que viva. (...) Esta é a cativa que me tem cativo, E, pois nela vivo É força que viva." Porto, 1º dia do novo milénio - 2000 Manoel de Oliveira é cineasta português. Nasceu em 1908. Seu primeiro longa-metragem foi "Aniki-Bobó", feito em 1942. Realizou ainda "Amor de Perdição" (1978), "Os Canibais" (1988), entre outros. Seu filme mais recente, "A Carta", recebeu o Prêmio do Júri de Cannes em 1999. No ano passado, realizou no Brasil (Bahia e Maranhão) cenas de seu 20º filme, "Palavra e Utopia", sobre o padre Antonio Vieira (1608-1697). Em seu texto acima, foi mantida a grafia original. 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