São Paulo, Domingo, 16 de Janeiro de 2000


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Historiador conta como o relato das viagens de Marco Polo despertou no leitor europeu do século 14 o sentimento do maravilhoso em relação ao Oriente
Um extraordinário mundo novo

Jonathan Spence
especial para "The NYT Book Review"

Em 1392, nos conta John Larner nesse livro erudito e extremamente pessoal, "Marco Polo and the Discovery of the World", um patrício florentino que ocupava o cargo de prefeito de um povoado italiano isolado durante o inverno decidiu transcrever a íntegra do relato das viagens de Marco Polo, "para passar o tempo e afastar a melancolia". Quando concluiu o exercício, o patrício expressou suas opiniões sobre o manuscrito de Polo: "O que ele diz parece mais milagre do que mentira. E ainda que aquilo de que fala possa ser verdade, não acredito -se bem que no mundo possamos encontrar muitas coisas diferentes de um país para outro. Mas essas, me parece -ainda que copiá-las me tenha divertido-, são coisas em que não se deve acreditar e às quais não se deve dar fé, ou assim creio".

Espanto e confusão
Esse sentimento de espanto e confusão misturados continua a ser verdadeiro para os leitores de Marco Polo. A despeito das opacidades e repetições do prolongado manuscrito que ele deixou, do fato de que não se sabe quase nada sobre ele como pessoa e do conhecimento de que as chances de encontrar novas informações sobre Polo são na verdade ínfimas, Marco Polo se nega resolutamente a desaparecer. Tudo de que podemos ter razoável certeza é que um mercador veneziano chamado Marco Polo, nascido por volta de 1254, viajou à China pela rota terrestre entre 1271 e 1274, na companhia de seu pai e tio. Os três voltaram em segurança em 1295, trazendo com eles alguns objetos adquiridos no Extremo Oriente. Alguns anos mais tarde, durante uma sentença de prisão domiciliar ou algo parecido de que foi vítima em Gênova, Marco Polo ditou uma versão de suas aventuras a um escritor profissional chamado Rustichello. Ainda que o manuscrito original tenha se perdido, diversas cópias -algumas distribuídas pessoalmente por Polo depois de sua libertação- começaram a circular por volta de 1307. Entre seu retorno a Veneza e sua estada em Gênova, Marco Polo se casou e teve três filhas. Morreu em 1324. Virtualmente todo o mais que se sabe sobre ele teve de ser deduzido, quer contextualmente, quer baseado no que conhecemos sobre os padrões comerciais e os costumes sociais do mundo da Europa medieval e dos mongóis que governavam a China no período, ou ainda usando o conteúdo bruto de diferentes manuscritos que varia enormemente. O resultado é um paraíso para os estudiosos imaginativos, que ficam livres para aplicar virtualmente qualquer hipótese aos esparsos fatos e vasto palavrório que têm diante de si. Alguns poucos e persistentes confundem a questão ainda mais ao negar que Polo nem sequer tenha chegado perto da China. O fato incontestável é que não se pode provar que ele foi à China; não há documentos chineses ou mongóis que substanciem suas alegações nem cartas de missionários que façam referências ainda que passageiras a ele e nenhum viajante árabe seu contemporâneo que o tenha encontrado. Tudo o que podemos fazer é aceitar seu manuscrito pelo que afirma ser e desafiar a oposição a provar que ele não esteve lá. Larner, historiador na Universidade de Glasgow, especializou-se em geografia medieval e renascentista, e "Marco Polo and The Discovery of the World" é uma tentativa eloquente de provar que a principal importância de Polo está no campo da geografia. Esse foco conduz Larner a repensar de maneira bastante criativa diversas coisas que sempre intrigaram os leitores. Por exemplo, a tentativa de recriar o percurso exato que conduziu Marco à China, na forma descrita pelo manuscrito, absorveu dezenas de estudiosos, e inúmeros deles tentaram registrar diferentes versões de "As Viagens dos Polos". Mas, como Larner engenhosamente descreve, o que Polo parece estar apresentando como a rota que teria percorrido não é na verdade o caminho que ele tomou pessoalmente na sua jornada. "É um recurso de organização, o percurso pelo qual Marco e Rustichello conduzem seus leitores do oeste para o leste e depois de volta do leste para o oeste, o percurso por meio do livro". O livro em si "não é uma história de aventuras nem um relato de viagens".

Sentimento de maravilha
Nem é uma espécie de manual de comércio, já que não oferece descrição detalhada dos fluxos de comércio em uma região precisa que Polo tenha visitado em um momento determinado. O livro menciona produtos raros de muitos tipos e o imenso volume de comércio em diversas cidades chinesas como uma maneira de despertar um "sentimento de maravilha" nos leitores de Marco diante da imensidão do mundo que agora sabiam existir e da qual queriam compartilhar.
"O efeito cumulativo dessas, para nós, tediosas repetições, teria sido dar ao leitor medieval uma visão extraordinária de todo um mundo até então desconhecido, de cidades envolvidas em comércio, no longínquo Oriente."
Desse modo, Marco Polo teria sido, de certa forma, um missionário do conhecimento geográfico.

O que Marco Polo apresenta como a rota que teria percorrido não é na verdade o caminho que ele tomou na sua jornada


Na análise de Larner, Polo foi um homem de visão incomum, quiçá única, que sabia que tinha uma espantosa história geográfica a contar, mas não possuía as habilidades necessárias para fazê-lo. Larner intui que Marco talvez tivesse uma massa de anotações, recordações de suas viagens no Oriente, mas que elas seriam confusas e desorganizadas e que ele não sabia como organizá-las. Ele conclui também que Polo tinha interesse apenas periférico em suas experiências pessoais. Rustichello, por outro lado, um homem moderadamente conhecido no final do século 13 como narrador e autor de romances corteses, compreendeu as possibilidades narrativas do material de Marco, mas suas prioridades eram outras. O encontro fortuito dos dois em Gênova gerou um manuscrito híbrido, que é o que chegou a nós. Nas palavras de Larner, "o que o leitor moderno não está procurando, mas recebe, é um trabalho de geografia que Rustichello tentou seriamente enquadrar dentro das transições, fórmulas, diálogos e tradições retóricas gerais da literatura cavaleiresca".

O valor de Polo
Larner recorre a um grande número de fontes para elaborar esse tema e para traçar períodos exatos e até mesmo atlas e globos determinados -nos quais podemos encontrar geógrafos renascentistas posteriores percebendo o valor do trabalho de Marco escondido sob a carapaça fornecida por Rustichello. Muito do que ele oferece representa um trabalho de sólida erudição, defendida de forma elegante. Mas Marco, no geral, termina por atrair aqueles que o estudam a corridas desordenadas pelas frondosas avenidas da inferência. Isso é especialmente verdadeiro quando os estudiosos tentam definir seu caráter e natureza íntima. Larner encontra em um grupo de manuscritos uma versão de 1470, conhecida apenas por meio de uma cópia realizada no século 18, e uma versão do humanista veneziano Ramusio, publicada em 1559 -o que ele acredita ser "uma declaração mais pessoal de autoria" da parte de Polo, que inclui as opiniões dele sobre tópicos perigosos, como a tolerância religiosa. Ele também nos diz que esses manuscritos são "inquestionavelmente autênticos", ainda que, ao que parece, contenham muito material que poderia facilmente ter sido inserido muito tempo depois da morte de Polo. O curioso manuscrito de Marco se torna "uma meditação ocidental sobre a cultura geográfica chinesa na forma com que foi absorvida pelos governantes mongóis". Marco chega ao ponto de ganhar identidade como "um funcionário civil mongol de pouca importância", um estudante de topografia e geografia humana, costumes e folclore, e das estruturas de autoridade mongóis. "Depois, tendo optado por uma aposentadoria antecipada, ele saiu em busca de uma audiência paras as suas memórias." O tom do livro de Polo torna-se, para Larner, o de um homem cujo "lar era a China", o que explica por que seu livro não transmite um sentimento de "choque cultural". O retorno de Polo a Veneza, portanto, não teria sido exatamente uma volta ao lar, mas sim "virtualmente um exílio forçado da China mongol". Polo -e isso constitui alto romantismo da parte de Larner- trouxe de volta com ele à Europa não apenas os objetos preciosos mais tarde inventariados em seu testamento, "mas todo o Oriente onde ele passara a maior parte da sua vida e que tentaria agora recriar em palavras". Polo tinha motivos, acredita Larner, para esperanças tão grandes.

O enigma
Seu livro terminou por dar ao mundo europeu "uma abertura de horizontes sem paralelo" e foi "um triunfo" tanto para ele quanto para Rustichello. Larner reitera em sua conclusão a convicção de que o enigmático livro de Polo "tem uma poesia que lhe é própria e carrega o sabor da personalidade enigmática de seu autor".
Para aqueles que não compartilham com tanto vigor dessa opinião, Larner demonstra generosidade. Para mim, um dos momentos mais graciosos de seu estudo é a maravilhosa paródia de Marco Polo que encontramos no "Decameron", de Boccaccio, citada no livro: "Assim, me fui, e depois de partir de Verdeza visitei as Calendas Gregas, e então cavalguei a trote rápido pelo Reino da Álgebra, passando por Bordel e chegando enfim a Manicômio". Só os autores mais graciosos conseguem satirizar seus temas, seus leitores e a si mesmos dessa maneira.



Marco Polo and the Discovery of the World
250 págs., US$ 29,95 (Marco Polo e o Descobrimento do Mundo)
de John Larner
Yale University Press.



Jonathan Spence é professor de história chinesa na Universidade Yale (EUA). Seus livros mais recentes são "Em Busca da China Moderna" e "O Filho Chinês de Deus" (Companhia das Letras).
Tradução de Clara Allain.


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