São Paulo, Domingo, 16 de Janeiro de 2000 |
|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros Importados Historiador conta como o relato das viagens de Marco Polo despertou no leitor europeu do século 14 o sentimento do maravilhoso em relação ao Oriente Um extraordinário mundo novo
Jonathan Spence
Em 1392, nos conta John Larner nesse
livro erudito e extremamente pessoal, "Marco Polo and the Discovery of
the World", um patrício florentino que
ocupava o cargo de prefeito de um povoado italiano isolado durante o inverno
decidiu transcrever a íntegra do relato
das viagens de Marco Polo, "para passar
o tempo e afastar a melancolia".
Quando concluiu o exercício, o patrício expressou suas opiniões sobre o manuscrito de Polo: "O que ele diz parece
mais milagre do que mentira. E ainda
que aquilo de que fala possa ser verdade,
não acredito -se bem que no mundo
possamos encontrar muitas coisas diferentes de um país para outro. Mas essas,
me parece -ainda que copiá-las me tenha divertido-, são coisas em que não
se deve acreditar e às quais não se deve
dar fé, ou assim creio".
Na análise de Larner, Polo foi um homem de visão incomum, quiçá única, que sabia que tinha uma espantosa história geográfica a contar, mas não possuía as habilidades necessárias para fazê-lo. Larner intui que Marco talvez tivesse uma massa de anotações, recordações de suas viagens no Oriente, mas que elas seriam confusas e desorganizadas e que ele não sabia como organizá-las. Ele conclui também que Polo tinha interesse apenas periférico em suas experiências pessoais. Rustichello, por outro lado, um homem moderadamente conhecido no final do século 13 como narrador e autor de romances corteses, compreendeu as possibilidades narrativas do material de Marco, mas suas prioridades eram outras. O encontro fortuito dos dois em Gênova gerou um manuscrito híbrido, que é o que chegou a nós. Nas palavras de Larner, "o que o leitor moderno não está procurando, mas recebe, é um trabalho de geografia que Rustichello tentou seriamente enquadrar dentro das transições, fórmulas, diálogos e tradições retóricas gerais da literatura cavaleiresca". O valor de Polo Larner recorre a um grande número de fontes para elaborar esse tema e para traçar períodos exatos e até mesmo atlas e globos determinados -nos quais podemos encontrar geógrafos renascentistas posteriores percebendo o valor do trabalho de Marco escondido sob a carapaça fornecida por Rustichello. Muito do que ele oferece representa um trabalho de sólida erudição, defendida de forma elegante. Mas Marco, no geral, termina por atrair aqueles que o estudam a corridas desordenadas pelas frondosas avenidas da inferência. Isso é especialmente verdadeiro quando os estudiosos tentam definir seu caráter e natureza íntima. Larner encontra em um grupo de manuscritos uma versão de 1470, conhecida apenas por meio de uma cópia realizada no século 18, e uma versão do humanista veneziano Ramusio, publicada em 1559 -o que ele acredita ser "uma declaração mais pessoal de autoria" da parte de Polo, que inclui as opiniões dele sobre tópicos perigosos, como a tolerância religiosa. Ele também nos diz que esses manuscritos são "inquestionavelmente autênticos", ainda que, ao que parece, contenham muito material que poderia facilmente ter sido inserido muito tempo depois da morte de Polo. O curioso manuscrito de Marco se torna "uma meditação ocidental sobre a cultura geográfica chinesa na forma com que foi absorvida pelos governantes mongóis". Marco chega ao ponto de ganhar identidade como "um funcionário civil mongol de pouca importância", um estudante de topografia e geografia humana, costumes e folclore, e das estruturas de autoridade mongóis. "Depois, tendo optado por uma aposentadoria antecipada, ele saiu em busca de uma audiência paras as suas memórias." O tom do livro de Polo torna-se, para Larner, o de um homem cujo "lar era a China", o que explica por que seu livro não transmite um sentimento de "choque cultural". O retorno de Polo a Veneza, portanto, não teria sido exatamente uma volta ao lar, mas sim "virtualmente um exílio forçado da China mongol". Polo -e isso constitui alto romantismo da parte de Larner- trouxe de volta com ele à Europa não apenas os objetos preciosos mais tarde inventariados em seu testamento, "mas todo o Oriente onde ele passara a maior parte da sua vida e que tentaria agora recriar em palavras". Polo tinha motivos, acredita Larner, para esperanças tão grandes. O enigma Seu livro terminou por dar ao mundo europeu "uma abertura de horizontes sem paralelo" e foi "um triunfo" tanto para ele quanto para Rustichello. Larner reitera em sua conclusão a convicção de que o enigmático livro de Polo "tem uma poesia que lhe é própria e carrega o sabor da personalidade enigmática de seu autor". Para aqueles que não compartilham com tanto vigor dessa opinião, Larner demonstra generosidade. Para mim, um dos momentos mais graciosos de seu estudo é a maravilhosa paródia de Marco Polo que encontramos no "Decameron", de Boccaccio, citada no livro: "Assim, me fui, e depois de partir de Verdeza visitei as Calendas Gregas, e então cavalguei a trote rápido pelo Reino da Álgebra, passando por Bordel e chegando enfim a Manicômio". Só os autores mais graciosos conseguem satirizar seus temas, seus leitores e a si mesmos dessa maneira. Marco Polo and the Discovery of the World 250 págs., US$ 29,95 (Marco Polo e o Descobrimento do Mundo) de John Larner Yale University Press. Jonathan Spence é professor de história chinesa na Universidade Yale (EUA). Seus livros mais recentes são "Em Busca da China Moderna" e "O Filho Chinês de Deus" (Companhia das Letras). Tradução de Clara Allain. Texto Anterior: + livros - Bernardo Carvalho: Vozes de um mundo hipócrita Próximo Texto: Importados Índice |
|