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Terreno
particular
"Reflexões sobre o Direito à Propriedade" reaplica ao Estado
atual os argumentos liberais contra o
Antigo Regime, dos séculos 17 e 18
RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Surgiu no Brasil, nos
últimos anos, em parte devido à rotina eleitoral, uma safra de
pensadores que reivindicam sua inscrição na estirpe da "direita". Diferenciam-se da direita histórica brasileira pela ausência de vínculos com
o regime militar, mas também
por sua preocupação em renovar a paleta doutrinária e política dessa corrente.
Os dois articulistas mais ativos do grupo são Olavo de Carvalho e Denis Rosenfield. Apesar da similitude de suas observações sobre a conjuntura, da
retórica da Guerra Fria e da
pauta comum -um roteiro que
pouco difere do apresentado
pelo jornalista Ali Kamel-,
seus princípios e ideário são
bastante distintos.
O epíteto mais adequado a
Carvalho seria o de "conservador", por sua defesa da "comunidade religiosa" e rejeição da
modernidade.
Já Rosenfield adota uma
postura "reformista", em sua
militância neoliberal e fundamentalista de mercado.
Outra novidade típica desses
autores é sua pretensão acadêmica. Rosenfield se apresenta
como "professor titular de filosofia e pesquisador 1-A do
CNPq" [Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e
Tecnológico].
O seu novo livro, "Reflexões
sobre o Direito à Propriedade",
porém, mantém a mixórdia de
seus artigos na imprensa, transitando aleatoriamente da formulação de princípios à opinião sobre assuntos do dia.
A tensão entre esses dois gêneros e estilos faz com que o fio
teórico do texto, enunciado no
título, se encontre amiúde obscurecido pelos exemplos, em
geral, aplicações descontextualizadas, contraditórias e panfletárias dos princípios, o que
não deixa de ressaltar suas obsessões.
Tábuas da lei
As reflexões do livro acerca
da propriedade se restringem à
reprodução da argumentação
dos clássicos dos séculos 17 e 18,
Locke, Paine e Sieyès.
Esses autores, como se sabe,
consideram a propriedade como a pedra angular da liberdade e dos direitos civis, em contraposição aos privilégios do Antigo Regime. Acatadas reverentemente como "tábuas da
lei", suas ponderações -e o
ideal de sociedade que delas
emana, a "república dos proprietários"- são erigidas em
normas a partir das quais Rosenfield julga a fase atual e a
história do capitalismo.
Rosenfield anota várias infrações no Brasil de hoje: a legalização da posse da terra de comunidades quilombolas, o sistema de cotas raciais ou sociais
nas universidades, o programa
Bolsa Família, o projeto do Estatuto da Igualdade Racial, a
desapropriação de latifúndios
improdutivos para efeito de reforma agrária, os planos diretores dos municípios etc.
Ele não hesita em afirmar
que no Brasil, desde a Constituição de 1988, não vigora o
"Estado de Direito":
"A lei, no sentido verdadeiro
do termo, reside em proteger a
liberdade e a propriedade. Logo, não é qualquer lei nem qualquer Constituição que correspondem a essa definição. Há leis, por exemplo, que permitem atentados à propriedade
como a da "função social da propriedade"."
Como se vê, Rosenfield, na tipologia definida por T.H. Marshall, aceita os direitos civis e
políticos, mas, à maneira de
Hayek, rejeita peremptoriamente os "direitos sociais", pilares do Estado de Bem-Estar e
alvos prioritários do neoliberalismo. A tópica "direito à propriedade" constitui apenas a
arma escolhida em sua batalha
contra o Estado.
Não escapa ao autor que tal
direito, levado ao extremo, impossibilita qualquer forma de
regulação, mesmo a ambiental
ou moral. Afinal, como impedir
os proprietários das matas de
consumi-las ou refrear o tráfico
consentido de drogas, mulheres ou órgãos humanos?
A maior parte do livro consiste, assim, em um libelo contra o
Estado. Rosenfield reutiliza os
argumentos liberais contra o
Antigo Regime aplicando-os ao
Estado contemporâneo, que
designa como "burocrático-distributivo".
Para levar adiante essa analogia tosca e improcedente, Rosenfield ignora solenemente as
transformações do capitalismo: o fim da política econômica
mercantilista e a incorporação,
pelo "capitalismo de Estado",
das demandas e reivindicações
do "outro" da "república dos
proprietários" -o mundo do
trabalho.
Sem mediações
O autor passou grande parte
de sua vida lendo e ensinando
Hegel. No entanto lhe escaparam algumas das mediações
dialéticas mais elementares da
sociedade atual. A incorporação pelo Estado burguês do planejamento socialista, a regulação keynesiana, deteve o ciclo
de crises, guerras e revoluções
que ameaçava a continuidade
do sistema capitalista.
A luta do MST (Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra) alterou o uso da propriedade rural no Brasil, contribuindo para a substituição do
latifúndio pouco produtivo pelo agronegócio. Por fim, a implementação radical do receituário neoliberal na América Latina, ao destruir um Estado
que subsidiava apenas as empresas e a camada mais abastada da população, possibilitou a
emergência de governos com
coloração mais à esquerda que
tendem a ampliar a cobertura
social dos despossuídos.
RICARDO MUSSE é professor no departamento
de sociologia da USP.
REFLEXÕES SOBRE O DIREITO
À PROPRIEDADE
Autor: Denis Rosenfield
Editora: Campus-Elsevier (tel. 0800-265340)
Quanto: R$ 39 (224 págs.)
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