São Paulo, domingo, 16 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Em texto exclusivo, o poeta Ferreira Gullar escreve sobre sua amizade com o crítico, que conheceu em 1951, durante a época de criação da poesia e da arte concretas brasileiras
A Mário Pedrosa, com carinho

por Ferreira Gullar

A imagem que guardo de Mário Pedrosa é de uma pessoa rara, cujas qualidades só fazem crescer minha admiração por ele com o passar do tempo. Já em nosso primeiro encontro -eu, um jovem de 20 anos, ele, com 51, um crítico respeitado-, surpreendeu-me sua modéstia e tolerância diante de minhas idéias pretensiosas e mal definidas. Foi em seu apartamento da rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, aonde me levou uma amiga comum, Lucy Teixeira.

Visão da arte
Tornamo-nos amigos. Em suas conversas e nos livros que me emprestou, fui formando a base de meu conhecimento da arte contemporânea. Ensinou-me como ver um quadro, como perceber-lhe as qualidades, mas, sobretudo, ampliou minha visão da arte para nela incluir não apenas as inovações da vanguarda, como também a "arte virgem" de Emygdio, Raphael, Diniz, grandes artistas revelados nos ateliês do Centro Psiquiátrico Nacional do Engenho de Dentro, e a arte das crianças, a que ele dedicava atenção nas visitas que fazia ao curso ministrado por Ivan Serpa. Fez-me viver um conflito: poeta, eu buscava uma poesia para além da razão, enquanto ele defendia a arte concreta, que era pura razão. Mergulhei nessa contradição, me fiz companheiro de aventura de Lygia Clark, Serpa, Amilcar, Weissmann, Hélio Oiticica, Carvão, Lígia Pape (todos frequentadores da casa de Mário), além dos poetas que, como eu, tentaram reinventar a poesia.

Discípulo rebelado
Essa aventura me levou, mais tarde, a divergir de Mário em pontos essenciais -como quando me engajei na política e rejeitei a arte de vanguarda-, mas nem isso conseguiu mudar suas relações comigo. Tornara-me o discípulo rebelado, chegando a divergir dele em debate público. Mário -que já vivera aquela mesma experiência- seguiu em frente, pensando com audácia e sempre aberto às experiências dos jovens. Mas voltamos a nos encontrar quando a ditadura acabou e ele pôde retornar a seu apartamento de Ipanema. Lá fui ouvi-lo com a admiração de sempre, quando propunha criar o Museu das Origens, que reuniria as primeiras manifestações de arte no Brasil, antes de Cabral.
De repente, adoeceu. Um tombo durante um passeio na praia pôs à mostra o câncer que nele se instalara insidiosamente. Certa tarde o encontrei, naquela mesma praia, acompanhado de uma enfermeira. Aproximei-me para falar-lhe, mas ele não me reconheceu. Senti um aperto no coração, meus olhos se encheram d'água, afastei-me dali arrasado. Só tive coragem de revê-lo, no hospital, às vésperas de sua morte.
Falo aqui de Mário Pedrosa, meu querido mestre e amigo, um outro pai que a vida me ofereceu. Mas devo dizer, a quem não o conheceu e ainda não lhe leu os livros, que ele foi o grande pensador da arte contemporânea no Brasil, o fundador da crítica de arte brasileira moderna, pois aliava a seu conhecimento amplo da arte, da estética e da história da arte, uma intuição crítica excepcional e uma sensibilidade de poeta. Pena que já não possa encontrá-lo em seu apartamento da Visconde de Pirajá.


Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte, autor de, entre outros, "Muitas Vozes" (José Olympio) e "Etapas da Arte Contemporânea" (Revan).


Texto Anterior: Cronologia
Próximo Texto: por Mário Pedrosa: Giorgio Morandi
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.