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Em texto exclusivo, o poeta Ferreira Gullar escreve sobre sua amizade
com o crítico, que conheceu em 1951, durante a época de criação
da poesia e da arte concretas brasileiras
A Mário Pedrosa, com carinho
por Ferreira Gullar
A imagem que guardo de Mário Pedrosa é de
uma pessoa rara, cujas qualidades só fazem
crescer minha admiração por ele com o passar
do tempo. Já em nosso primeiro encontro -eu,
um jovem de 20 anos, ele, com 51, um crítico respeitado-, surpreendeu-me sua modéstia e tolerância diante
de minhas idéias pretensiosas e mal definidas. Foi em
seu apartamento da rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, aonde me levou uma amiga comum, Lucy Teixeira.
Visão da arte
Tornamo-nos amigos. Em suas conversas e nos livros que me emprestou, fui formando a
base de meu conhecimento da arte contemporânea. Ensinou-me como ver um quadro, como perceber-lhe as
qualidades, mas, sobretudo, ampliou minha visão da
arte para nela incluir não apenas as inovações da vanguarda, como também a "arte virgem" de Emygdio, Raphael, Diniz, grandes artistas revelados nos ateliês do
Centro Psiquiátrico Nacional do Engenho de Dentro, e
a arte das crianças, a que ele dedicava atenção nas visitas
que fazia ao curso ministrado por Ivan Serpa.
Fez-me viver um conflito: poeta, eu buscava uma poesia para além da razão, enquanto ele defendia a arte
concreta, que era pura razão. Mergulhei nessa contradição, me fiz companheiro de aventura de Lygia Clark,
Serpa, Amilcar, Weissmann, Hélio Oiticica, Carvão, Lígia Pape (todos frequentadores da casa de Mário), além
dos poetas que, como eu, tentaram reinventar a poesia.
Discípulo rebelado
Essa aventura me levou, mais
tarde, a divergir de Mário em pontos essenciais -como
quando me engajei na política e rejeitei a arte de vanguarda-, mas nem isso conseguiu mudar suas relações comigo. Tornara-me o discípulo rebelado, chegando a divergir dele em debate público. Mário -que já vivera aquela mesma experiência- seguiu em frente,
pensando com audácia e sempre aberto às experiências
dos jovens. Mas voltamos a nos encontrar quando a ditadura acabou e ele pôde retornar a seu apartamento de
Ipanema. Lá fui ouvi-lo com a admiração de sempre,
quando propunha criar o Museu das Origens, que reuniria as primeiras manifestações de arte no Brasil, antes
de Cabral.
De repente, adoeceu. Um tombo durante um passeio
na praia pôs à mostra o câncer que nele se instalara insidiosamente. Certa tarde o encontrei, naquela mesma
praia, acompanhado de uma enfermeira. Aproximei-me para falar-lhe, mas ele não me reconheceu. Senti um
aperto no coração, meus olhos se encheram d'água,
afastei-me dali arrasado. Só tive coragem de revê-lo, no
hospital, às vésperas de sua morte.
Falo aqui de Mário Pedrosa, meu querido mestre e
amigo, um outro pai que a vida me ofereceu. Mas devo
dizer, a quem não o conheceu e ainda não lhe leu os livros, que ele foi o grande pensador da arte contemporânea no Brasil, o fundador da crítica de arte brasileira
moderna, pois aliava a seu conhecimento amplo da arte, da estética e da história da arte, uma intuição crítica
excepcional e uma sensibilidade de poeta. Pena que já
não possa encontrá-lo em seu apartamento da Visconde de Pirajá.
Ferreira Gullar é poeta e crítico de arte, autor de, entre outros, "Muitas
Vozes" (José Olympio) e "Etapas da Arte Contemporânea" (Revan).
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