São Paulo, domingo, 16 de abril de 2000


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"O Desafio Brasileiro" reúne artigos de Gustavo Franco que discutem os dilemas recentes da economia do país
Atrevido e imaginoso

Antonio Barros de Castro
especial para a Folha

Em seu discurso de despedida do Banco Central, reproduzido em "O Desafio Brasileiro", Gustavo Franco atribui à crise da Ásia e à moratória da Rússia, "que nada tinham que ver com o Real" (pág. 291), a responsabilidade pelas dificuldades enfrentadas pela economia brasileira.
No caso dos problemas atravessados pelo país no início dos anos 80, porém, a postura do autor é muito diferente. Neste caso haveria que buscar "causas mais profundas" (pág. 37). Entenda-se: no passado, sim, os problemas teriam sido criados pelo governo brasileiro, sendo "superficial", segundo Gustavo Franco, atribuí-los aos choques adversos ocorridos entre os anos de 1979 e 1982 (choque do petróleo, dos juros e cessação dos empréstimos aos países endividados).
Estamos, pois, diante desse tipo de personagem. Atrevido, voluntarioso e, reconheçamos, imaginoso. Parece ter tantos pesos e tantas medidas quanto as brigas em que se mete.
Tomemos de passagem a questão cambial. Em "O Plano Real e Outros Ensaios" (1995, Ed. Francisco Alves, do mesmo autor), a surpreendente apreciação cambial ocorrida após o lançamento do novo plano é apresentado como resultado da decisão do Banco Central de "abster-se de intervir no mercado de câmbio" (pág. 59). Já em "O Desafio Brasileiro", ela surge como o equivalente a uma "agressiva liberalização das importações" (pág. 145), destinada a "apressar tendências que talvez demorassem muito tempo" (pág. 143).
Essa abordagem para o tratamento das reformas, referida como "do tipo big-bang", faria parte da "nova sabedoria" que passara a ser recomendada pelo Banco Mundial, especialmente no caso de "países que deixavam para trás o socialismo" (pág. 146). A apresentação oficiosa do Plano Real, feita por Edmar Bacha na "Revista do BNDES" (junho de 1995), porém, não permite vislumbrar sequer que se tratava de um big bang. Aliás, segundo o presidente da República (em sua introdução a "O Plano Real e Outros Ensaios"), ao "invés de arrogantemente apostar em formas tecnocráticas", o Plano Real se caracterizaria por valorizar "o diálogo e a transparência" (pág. 10).

Motivações pessoais
Mas Gustavo Franco é também um historiador da economia. Diversas vezes situa as questões em seu contexto, fazendo considerações maiores, que em muito transcendem a aridez usual dos textos de economia. Mesmo aí, porém, prevalecem, por vezes, as motivações pessoais, as fixações e os preconceitos. E, em alguns desses casos, a realidade estoura pelas costuras dos argumentos. Uma ilustração: ele quer porque quer responsabilizar o Modelo de Substituição de Importações por todos os males da economia. Assim, falando da chegada de empresas estrangeiras e da sua importância "avassaladora" (pág. 30), afirma que a elas se deve o início da globalização da economia brasileira. Seria, pois, de esperar que o autor concluísse que o modelo brasileiro de industrialização não era "fortemente nacionalista e estatizante" -e que a política de substituição de importações não era "rígida" (págs. 31 e 99). Mas não. Encasquetou que o tal Modelo de Substituição de Importações equivale a um passado de trevas. Resta-lhe, pois, concluir que as empresas estrangeiras, apesar de sua importância "absolutamente fundamental" (pág. 31), entraram em cena de forma "espontânea" (pág. 98), quase despercebidas. E o país fez prosa (globalização), sem o saber. Li essa passagem com verdadeiro susto. Afinal, nada mais conhecido do que o fato de que o protecionismo brasileiro decididamente favoreceu -e atraiu- o investimento externo; que a instrução 113 da Sumoc (de 1955) beneficiou enormemente as empresas estrangeiras; que o Befiex era ampla e generosamente concedido (e isso o próprio autor reconhece, mas trata como exceção). Contra todas as evidências, no entanto, a abertura proporcionada pelas empresas estrangeiras permanece referida como um mero "apêndice do projeto de auto-suficiência" (pág. 100). O estranho equívoco não é contudo mero lapso. Se admitisse que o seu herói (o capital estrangeiro) estava contaminado por políticas de promoção levadas a efeito pelo governo brasileiro, o autor teria como alternativas: lançá-lo na vala comum dos que se aproveitam de benesses públicas (onde se encontram as empresas nacionais); ou admitir que as políticas praticadas neste país tiveram certa racionalidade. Mas, neste caso, o passado não seria só de erros, caindo por terra o seu esquema -e perdendo vigor a sua retórica. Em certo momento e em ácida resposta a diversos críticos, procura Gustavo Franco esclarecer o que "realmente disse" (pág. 203), no seu rumoroso ensaio de 1996 (convertido no capítulo um de "O Desafio Brasileiro").

Tropeços empíricos
Em vez de repetir argumentos de outros analistas, teria ali mostrado que o esgotamento do Modelo de Substituição de Importações se deve à "progressiva estagnação da taxa de crescimento da produtividade". Nesse ponto, com certeza, o autor foi bastante infeliz. E isso por diversas razões. Limito-me, contudo, no que segue, a alguns tropeços de natureza empírica.
Primeiramente, a partir dos anos 1970, o aumento da produtividade (dita "total dos fatores", a que se refere o autor) não caiu apenas no Brasil. A queda também foi observada, genericamente, nos países desenvolvidos. O próprio Chile, aliás, em plena guinada "para fora", apresenta produtividade constante (estagnada, diria Gustavo Franco). Já a China, cujas instituições e políticas certamente não aquecem o coração de Gustavo Franco, exibe (durante a década dos 80) espantosos aumentos de produtividade do trabalho da ordem de 9,3% ao ano.
Nada do que aqui foi dito torna dispensável a leitura de "O Desafio Brasileiro". Se não fosse pelo fato de que Gustavo Franco fez história, pela fácil constatação de que se trata de um polemista de grande talento.



O Desafio Brasileiro
352 págs., R$ 32,00 de Gustavo Franco. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/816-6777).



Antonio Barros de Castro é professor de política econômica na Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor, entre outros, de "A Economia Brasileira em Marcha Forçada" (Ed. Paz e Terra).


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