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"O Desafio Brasileiro" reúne artigos de Gustavo Franco que discutem os
dilemas recentes da economia do país
Atrevido e imaginoso
Antonio Barros de Castro
especial para a Folha
Em seu discurso de despedida do Banco Central, reproduzido em "O Desafio Brasileiro", Gustavo Franco atribui à
crise da Ásia e à moratória da Rússia,
"que nada tinham que ver com o Real"
(pág. 291), a responsabilidade pelas dificuldades enfrentadas pela economia
brasileira.
No caso dos problemas atravessados
pelo país no início dos anos 80, porém, a
postura do autor é muito diferente. Neste
caso haveria que buscar "causas mais
profundas" (pág. 37). Entenda-se: no
passado, sim, os problemas teriam sido
criados pelo governo brasileiro, sendo
"superficial", segundo Gustavo Franco,
atribuí-los aos choques adversos ocorridos entre os anos de 1979 e 1982 (choque
do petróleo, dos juros e cessação dos empréstimos aos países endividados).
Estamos, pois, diante
desse tipo de personagem. Atrevido, voluntarioso e, reconheçamos,
imaginoso. Parece ter tantos pesos e tantas medidas
quanto as brigas em que
se mete.
Tomemos de passagem
a questão cambial. Em "O Plano Real e
Outros Ensaios" (1995, Ed. Francisco Alves, do mesmo autor), a surpreendente
apreciação cambial ocorrida após o lançamento do novo plano é apresentado
como resultado da decisão do Banco
Central de "abster-se de
intervir no mercado de
câmbio" (pág. 59). Já em
"O Desafio Brasileiro", ela
surge como o equivalente
a uma "agressiva liberalização das importações"
(pág. 145), destinada a
"apressar tendências que
talvez demorassem muito
tempo" (pág. 143).
Essa abordagem para o tratamento das
reformas, referida como "do tipo big-bang", faria parte da "nova sabedoria"
que passara a ser recomendada pelo
Banco Mundial, especialmente no caso
de "países que deixavam para trás o socialismo" (pág. 146).
A apresentação oficiosa do Plano
Real, feita por Edmar Bacha na "Revista
do BNDES" (junho de 1995), porém,
não permite vislumbrar sequer que se
tratava de um big bang.
Aliás, segundo o presidente da República (em sua introdução a "O Plano
Real e Outros Ensaios"), ao "invés de
arrogantemente apostar em formas
tecnocráticas", o Plano Real se caracterizaria por valorizar "o diálogo e a
transparência" (pág. 10).
Motivações pessoais
Mas Gustavo Franco é também um historiador da
economia. Diversas vezes situa as questões em seu contexto, fazendo considerações maiores, que em muito transcendem a aridez usual dos textos de
economia. Mesmo aí, porém, prevalecem, por vezes, as motivações pessoais,
as fixações e os preconceitos. E, em alguns desses casos, a realidade estoura
pelas costuras dos argumentos. Uma
ilustração: ele quer porque quer responsabilizar o Modelo de Substituição
de Importações por todos os males da
economia. Assim, falando da chegada
de empresas estrangeiras e da sua importância "avassaladora" (pág. 30),
afirma que a elas se deve o início da globalização da economia brasileira.
Seria, pois, de esperar que o autor
concluísse que o modelo brasileiro de
industrialização não era "fortemente
nacionalista e estatizante" -e que a
política de substituição de importações
não era "rígida" (págs. 31 e 99). Mas
não. Encasquetou que o tal Modelo de
Substituição de Importações equivale a
um passado de trevas. Resta-lhe, pois,
concluir que as empresas estrangeiras,
apesar de sua importância "absolutamente fundamental" (pág. 31), entraram em cena de forma "espontânea"
(pág. 98), quase despercebidas. E o país
fez prosa (globalização), sem o saber.
Li essa passagem com verdadeiro
susto. Afinal, nada mais conhecido do
que o fato de que o protecionismo brasileiro decididamente favoreceu -e
atraiu- o investimento externo; que a
instrução 113 da Sumoc (de 1955) beneficiou enormemente as empresas estrangeiras; que o Befiex era ampla e generosamente concedido (e isso o próprio autor reconhece, mas trata como
exceção). Contra todas as evidências,
no entanto, a abertura proporcionada
pelas empresas estrangeiras permanece
referida como um mero "apêndice do
projeto de auto-suficiência" (pág. 100).
O estranho equívoco não é contudo
mero lapso. Se admitisse que o seu herói (o capital estrangeiro) estava contaminado por políticas de promoção levadas a efeito pelo governo brasileiro, o
autor teria como alternativas: lançá-lo
na vala comum dos que se aproveitam
de benesses públicas (onde se encontram as empresas nacionais); ou admitir que as políticas praticadas neste país
tiveram certa racionalidade. Mas, neste
caso, o passado não seria só de erros,
caindo por terra o seu esquema -e
perdendo vigor a sua retórica.
Em certo momento e em ácida resposta a diversos críticos, procura Gustavo Franco esclarecer o que "realmente disse" (pág. 203), no seu rumoroso
ensaio de 1996 (convertido no capítulo
um de "O Desafio Brasileiro").
Tropeços empíricos
Em vez de repetir argumentos de outros analistas,
teria ali mostrado que o esgotamento
do Modelo de Substituição de Importações se deve à "progressiva estagnação
da taxa de crescimento da produtividade". Nesse ponto, com certeza, o autor
foi bastante infeliz. E isso por diversas
razões. Limito-me, contudo, no que segue, a alguns tropeços de natureza empírica.
Primeiramente, a partir dos anos
1970, o aumento da produtividade (dita
"total dos fatores", a que se refere o autor) não caiu apenas no Brasil. A queda
também foi observada, genericamente,
nos países desenvolvidos. O próprio
Chile, aliás, em plena guinada "para fora", apresenta produtividade constante
(estagnada, diria Gustavo Franco). Já a
China, cujas instituições e políticas certamente não aquecem o coração de
Gustavo Franco, exibe (durante a década dos 80) espantosos aumentos de
produtividade do trabalho da ordem de
9,3% ao ano.
Nada do que aqui foi dito torna dispensável a leitura de "O Desafio Brasileiro". Se não fosse pelo fato de que
Gustavo Franco fez história, pela fácil
constatação de que se trata de um polemista de grande talento.
O Desafio Brasileiro
352 págs., R$ 32,00
de Gustavo Franco. Editora 34
(r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/816-6777).
Antonio Barros de Castro é professor de política
econômica na Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor, entre outros, de "A Economia Brasileira em
Marcha Forçada" (Ed. Paz e Terra).
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