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DE VOLTA AO REAL
Arquiteto radicalizou cisão entre Rio e SP
ao voltar-se
para a integração urbana
LUIZ RECAMÁN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Causará espanto, ao olhar desatento, o desvão entre as
jóias de nossa arquitetura,
agora novamente reconhecidas internacionalmente, e a realidade das nossas cidades. E mesmo entre a arquitetura média projetada
por grande parte dos arquitetos locais e seus mestres consagrados.
As obras de Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha confrontam o
ambiente urbano deteriorado no
qual se inserem, insistindo como alternativa de desenvolvimento a partir de critérios autônomos da forma
(que inclui a pretensão à racionalidade, emancipação e utopia). Essa
imposição do pensamento poderia
alterar a realidade espacial e, essencialmente, social das grandes cidades brasileiras e os disparates de seu
desenvolvimento industrial.
Afastam esses mestres não apenas
uma geração mas os desafios a que
responderam no momento de formação de seu repertório arquitetônico. Oscar Niemeyer, protagonista
dentre os brilhantes arquitetos do
primeiro período (1936-1957), sintetiza a busca de uma identidade nacional, exemplarmente alcançada
em sua arquitetura, seguindo as vicissitudes do nosso modernismo e
sua normatização.
Comandada por um Estado centralizador e desenvolvimentista, a
criação da nação industrial foi forjada na decantação de elementos
constituintes da diversidade cultural
e social de um país dividido politicamente, no período anterior à Revolução de 30. Tal síntese não teve, portanto, nada de espontânea ou endógena: o período de formação da arquitetura moderna brasileira corresponde ao período mais autoritário
da era Vargas, que vai do Pavilhão de
Nova York (Oscar Niemeyer e Lúcio
Costa), em 1939, ao conjunto da
Pampulha (Oscar Niemeyer), finalizado em 1942.
Curva ideológica
Dessa equação inicial depreende-se seu impasse insuperado: o conservadorismo dessa alternativa de desenvolvimento alijava a arquitetura
brasileira da razão de ser, ideológica,
do movimento moderno: sua extroversão social com ênfase na habitação e no plano.
A forma curva, que vai caracterizar
essa matriz hegemônica da arquitetura brasileira, sintetiza e simplifica
(daí seu grande apelo de massa) ícones da nacionalidade: a exuberância
do barroco colonial, da paisagem e
da sensualidade de seus habitantes.
Associa a essa simplificação o saber técnico que arrisca estruturas
inusitadas, explorando a plasticidade do concreto armado numa linguagem abstrata (conseguida por
meio da irracionalidade social das
fôrmas de madeira). Essa fórmula
vigora, com força ideológica enquanto perdura o Estado nacional-desenvolvimentista, incluindo aí
seus momentos, longos, de caráter
autoritário.
Nos anos 50 a cidade de São Paulo
surge como força urbano-industrial,
o que exige uma outra formulação
arquitetônica em relação à síntese ligada ao Estado nacional e à capital
federal. Nesse momento a presença
de Oscar Niemeyer na cidade é fundamental. No entanto, dadas as especificidades urbanas, sociais e econômicas da jovem metrópole, o modelo da chamada "escola carioca"
encontra aí seus limites.
Ao contrário do que apregoa o
senso comum, o edifico Copan, como bem analisa o próprio arquiteto,
é demonstração clara da inadequação dessa matriz à realidade urbana
e social da cidade.
Os conflitos reais desse desenvolvimento conservador vão ter como
cenário a pujança do setor privado e
a consolidação da periferia pobre da
capital paulista.
A arquitetura que aí surge, a partir
da ação de seu arquiteto mais inovador, Vilanova Artigas [1915-1985],
reage prontamente a esse modelo
urbano devastador. Mas, ao contrário da idealização niemeyeriana
-que exige pano de fundo neutro
para o edifício-, a arquitetura de
Artigas e de seus contemporâneos se
opõe -mas considera- à realidade
urbana na qual se insere.
O edifício ensimesmado, introverso, recria no terreno disponível (no
mais das vezes, lotes urbanos em
bairros nobres da cidade) uma sociabilidade distinta daquela, injusta,
que desenha e destrói a cidade ao redor. Mas dela herda sua circunstância formal -o volume, que parte de
geometrias ortogonais, fechado no
lote- e social: a união do saber técnico e racional e a mão-de-obra do
trabalhador urbano alienado.
Surgem, como didática dessa
união ideológica -o intelectual e o
técnico com o proletariado urbano-, os grandes vãos de concreto
armado com marcas de fôrmas de
madeira manualmente aparelhadas.
A obra de Vilanova Artigas sugere
diversas aproximações, além dessa
apresentada. Porém, é essa característica apontada que é levada às últimas conseqüências pelo seu jovem
seguidor Paulo Mendes da Rocha.
Nas circunstâncias exacerbadas
dos anos 60, Mendes da Rocha consolida um rico vocabulário, que vai
influenciar as novas gerações: abstração formal, pré-fabricação, engenhosidade técnica que inclui o desenvolvimento de detalhes construtivos de escala mecânica e a redução
da arquitetura a seus elementos espaciais e construtivos essenciais.
Determinação histórica
Porém não é essa a grande novidade que a pesquisa recente desse arquiteto traz e que o coloca numa posição única entre os arquitetos de
sua geração.
A partir das questões postas pela
geração dos anos 50 e 60, Mendes da
Rocha paradoxalmente se abre à cidade real, às suas determinações físicas e históricas. Não se pode falar em
inflexão, pois lentamente sua obra,
desde a origem e com ênfases distintas, se contamina pela cidade que a
princípio deveria se contrapor.
Se isso fica mais evidente nos projetos a partir dos anos 80, pode-se dizer que foi gestado lentamente nos
conflitos e contradições em suas
obras de formação.
Um momento recente e contundente dessa abertura para a práxis
urbana -principalmente para seus
conflitos sociais- pode ser encontrada nesta mesma Folha, em 25/ 1/
2006: ao contrário de seus inúmeros
seguidores amaneirados, que repetem formas do próprio mestre para
resolver falsos problemas da cidade,
na comemoração de seu 452º aniversário, o arquiteto Mendes da Rocha constrange a demanda por um
projeto redentor e faz a defesa do
fortalecimento dos organismos públicos que deveriam controlar e dirigir seu crescimento (como a
Emurb/Empresa Municipal de Urbanização) e critica a implosão da
"cracolândia", que se abre à voracidade dos negócios imobiliários que
caracterizam a dinâmica urbana excludente da cidade.
O modelo da arquitetura moderna
brasileira, que afastou sem tréguas
essa arquitetura de nossa realidade
urbana, esgotou-se na catástrofe social a que assistimos abismados. Reconhecer a complexidade da realidade urbana e social brasileira exige
mais que as belas formas que nossa
arquitetura consagrou. Nisso, a passagem de uma radicalidade formal
para uma radicalidade urbana (e
portanto social), pode contribuir como alternativa para a ação da arquitetura nos anos que correm. Essa alternativa, se pode ser intuída até
agora, não está configurada.
Luiz Recamán é arquiteto e professor de
estética do departamento de arquitetura e
urbanismo da USP e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (SP). É co- autor de
"Arquitetura Moderna Brasileira" (Phaidon).
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