São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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FORMA SEM FRONTEIRAS

Inquieto, arquiteto supera "custo Brasil" e continua espírito internacionalista herdado do modernismo

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A arquitetura sempre assombrou minha vida. A de dois brasileiros, ainda mais (vivo aqui). Um é Paulo Mendes da Rocha. Paulinho, diz o "milieu".
O enfant terrible da arquitetura brasileira. Dias atrás, antes do anúncio do Pritzker, com o qual ele agora foi premiado, eu esperava por amigos no saguão da Pinacoteca.
A demora me permitiu rever, por puro prazer retinal, a ação do arquiteto sobre o prédio. Os enormes janelões que ali um dia existiram foram arrancados por Mendes da Rocha, na reforma que desenhou. Seu método é tanto tirar quanto pôr (como um certo Michelangelo). Os berrantes buracos na parede assim abertos parecem, no entanto, a coisa mais natural do mundo. Por eles o interior do saguão vaza para fora e é tomado pelo resto do prédio e pelo dia vindo do teto translúcido.
E os lances de ferro, com peso visualmente reforçado, são o espaço pelo alto, furando paredes e aproximando interiores. Na hora, não me lembrei de que, em 2000, Mendes da Rocha já recebera o Prêmio Mies van der Rohe de arquitetura latino-americana, convalidado por essa reforma. Ele é mais que reincidente em termos de prêmios, portanto.
Estive próximo dele outras vezes. Uma, por acidente: mais interessado (com razão) na arquitetura do que em sua carreira universitária, Mendes da Rocha prestou tardiamente o concurso para titular e, por torção da história, eu estava em sua banca examinadora, quando a norma seria o inverso. Meu voto só poderia ser em seu favor -e pelo máximo grau.
A segunda vez foi por escolha: quando na direção do Museu de Arte Contemporânea (SP), sugeri uma competição internacional para o prédio-cidade do museu, projeto que à época juntava apoios convergentes (depois, quase me processaram por isso). O pequeno orçamento permitiu convidar quatro arquitetos apenas, que honraram o MAC com suas idéias: Arata Isozaki, Bernard Tschumi, Eduardo de Almeida e Mendes da Rocha.
Dessa vez, meu voto não foi para ele (não foi também para o escolhido pela comissão). Minha sensação era de que o projeto de Mendes da Rocha esmagava o museu -como deve acontecer com todo bom projeto atual. Mas esmagava demais o museu pelo qual eu respondia. Tirei o chapéu para ele e votei em outro. Nem ele ganhou nem eu. Nem o museu, afinal.
E, durante a reforma do MAC-Campus, o acaso outra vez nos colocou, ao museu e a mim, à sombra de Mendes da Rocha: fomos para a Galeria do Sesi, na avenida Paulista, duelar com o espaço que ele pôde arrancar da pirâmide empresarial.
Em certas áreas, a galeria aplasta a arte, ainda mais se contemporânea. Em outras, pelo contrário, o desenho arquitetônico -primo-irmão do showroom da [loja] Forma, presença certa nos catálogos- propele a arte para alturas impensáveis quando se está do lado de fora, se o museógrafo for bom. Dois anos de diálogo silencioso com o arquiteto.
A convivência com ele é conflituosa. Não poderia ser diferente, já que é um brutalista. Brutal, às vezes (o portal de ferro que incrustou na cabeça da praça do Patriarca ainda nos levará a um ajuste de contas...). Arquitetura de ferro na terra do espaço em concreto armado sacramentado: nada mais brutal.
Um crítico da "Architectural Record" apresenta Mendes da Rocha como um arquiteto que atua numa capital industrial "indelicada".
A idéia de São Paulo como cidade indelicada é de uma delicadeza infinita. Eufemismo obsceno, na verdade. Mas o crítico acerta quando diz que Mendes da Rocha tem, com a arquitetura da cidade, uma aproximação contra-intuitiva.
É que ele recusa, digo eu, as idéias feitas que recorrem ao concreto como matéria e às curvas harmônicas como forma, como se soubesse que esta cidade apavorada e apavorante só reage quando sacudida: o bruto defende do torpe.
Essa brutalidade poderia ter-lhe aberto, mais do que fez, portas lá fora: este indelicado mundo grande é vasto campo de manobra para o brutalismo de Mendes da Rocha.
Se tivesse levado a conta do Centro Pompidou [em Paris], em 1970, a história seria outra. O problema é que a história da arquitetura no Brasil, como tantas outras coisas, tem, embutido, esse custo Brasil, que sempre cobra alto pedágio: o custo da pouca visibilidade, o custo da margem. Nessa linha, o caso Pinacoteca na obra de Mendes da Rocha (embora a questão ali fosse também outra) é emblemático da situação do arquiteto brasileiro, sempre mais convocado para reformas e revisões do que para obras novas.

Primeiro Mundo
Com esse outro prêmio, o Brasil sai mais, talvez, como se pensa, do lodaçal que é a zona das commodities (as matérias-primas e insumos sem valor agregado, de preço instável) para entrar no ambiente refrigerado da criação, motor VIP da economia Primeiro Mundo da sociedade criativa e da inovação.
Sai da mesmice da venda do café -bebida no entanto refinada- e do futebol -contudo teatro contemporâneo do mítico jogo dos deuses (e que fantástico que aqui se jogue esse jogo com maestria e facilidade)-, para o cenário valorizado da armação das idéias.
Mas não é a arquitetura brasileira que está em jogo nem a que interessa. O que interessa é a arquitetura, sem patronímicos, feita neste lugar chamado Brasil. Nem a arquitetura brasileira nem a latino-americana, que lhe deu o grande prêmio anterior. Sua arquitetura é do mundo.
Mendes da Rocha é arquiteto, não arquiteto brasileiro ou latino-americano. No legado dele, além de sua arte, há algo que recebeu pronto e agora repassa, reforçado: o espírito internacionalista herdado da proposta moderna. O modernismo tem picos agudos e rasas planícies estéreis mais disto que daquilo.
Ele está num pico, armando uma tensão com o outro arquiteto laureado daqui. Tensão intensa e emblemática. Oscar Niemeyer é o arquiteto oficial; Mendes da Rocha, o agitador incômodo, mais distante do monumento e mais próximo da rua indelicada.
No entanto ambos movem essa idéia de uma arquitetura que ignora fronteiras e nacionalismos identitários. Ambas as arquiteturas são de livre circulação, com raízes dinâmicas. A de Mendes da Rocha, talvez mais. Quer dizer: há nele um valor artístico e um outro, cultural. O primeiro não pode ser imitado; o segundo é para ser aplicado.
Um prêmio norte-americano dado a um brasileiro, a ser entregue em Istambul: é bem o espírito da melhor arquitetura contemporânea.


Teixeira Coelho é ensaísta, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP. É autor de "Niemeyer" e "As Fúrias da Mente" (ambos pela Iluminuras).


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