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FORMA SEM FRONTEIRAS
Inquieto, arquiteto supera "custo Brasil" e continua
espírito internacionalista herdado do modernismo
TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A arquitetura sempre assombrou minha vida. A de dois
brasileiros, ainda mais (vivo
aqui). Um é Paulo Mendes
da Rocha. Paulinho, diz o "milieu".
O enfant terrible da arquitetura
brasileira. Dias atrás, antes do anúncio do Pritzker, com o qual ele agora
foi premiado, eu esperava por amigos no saguão da Pinacoteca.
A demora me permitiu rever, por
puro prazer retinal, a ação do arquiteto sobre o prédio. Os enormes janelões que ali um dia existiram foram arrancados por Mendes da Rocha, na reforma que desenhou. Seu
método é tanto tirar quanto pôr (como um certo Michelangelo). Os berrantes buracos na parede assim
abertos parecem, no entanto, a coisa
mais natural do mundo. Por eles o
interior do saguão vaza para fora e é
tomado pelo resto do prédio e pelo
dia vindo do teto translúcido.
E os lances de ferro, com peso visualmente reforçado, são o espaço
pelo alto, furando paredes e aproximando interiores. Na hora, não me
lembrei de que, em 2000, Mendes da
Rocha já recebera o Prêmio Mies
van der Rohe de arquitetura latino-americana, convalidado por essa reforma. Ele é mais que reincidente
em termos de prêmios, portanto.
Estive próximo dele outras vezes.
Uma, por acidente: mais interessado
(com razão) na arquitetura do que
em sua carreira universitária, Mendes da Rocha prestou tardiamente o
concurso para titular e, por torção
da história, eu estava em sua banca
examinadora, quando a norma seria
o inverso. Meu voto só poderia ser
em seu favor -e pelo máximo grau.
A segunda vez foi por escolha:
quando na direção do Museu de Arte Contemporânea (SP), sugeri uma
competição internacional para o
prédio-cidade do museu, projeto
que à época juntava apoios convergentes (depois, quase me processaram por isso). O pequeno orçamento permitiu convidar quatro arquitetos apenas, que honraram o MAC
com suas idéias: Arata Isozaki, Bernard Tschumi, Eduardo de Almeida
e Mendes da Rocha.
Dessa vez, meu voto não foi para
ele (não foi também para o escolhido pela comissão). Minha sensação
era de que o projeto de Mendes da
Rocha esmagava o museu -como
deve acontecer com todo bom projeto atual. Mas esmagava demais o
museu pelo qual eu respondia. Tirei
o chapéu para ele e votei em outro.
Nem ele ganhou nem eu. Nem o museu, afinal.
E, durante a reforma do MAC-Campus, o acaso outra vez nos colocou, ao museu e a mim, à sombra de
Mendes da Rocha: fomos para a Galeria do Sesi, na avenida Paulista,
duelar com o espaço que ele pôde arrancar da pirâmide empresarial.
Em certas áreas, a galeria aplasta a
arte, ainda mais se contemporânea.
Em outras, pelo contrário, o desenho arquitetônico -primo-irmão
do showroom da [loja] Forma, presença certa nos catálogos- propele
a arte para alturas impensáveis
quando se está do lado de fora, se o
museógrafo for bom. Dois anos de
diálogo silencioso com o arquiteto.
A convivência com ele é conflituosa. Não poderia ser diferente, já que
é um brutalista. Brutal, às vezes (o
portal de ferro que incrustou na cabeça da praça do Patriarca ainda nos
levará a um ajuste de contas...). Arquitetura de ferro na terra do espaço
em concreto armado sacramentado:
nada mais brutal.
Um crítico da "Architectural Record" apresenta Mendes da Rocha
como um arquiteto que atua numa
capital industrial "indelicada".
A idéia de São Paulo como cidade
indelicada é de uma delicadeza infinita. Eufemismo obsceno, na verdade. Mas o crítico acerta quando diz
que Mendes da Rocha tem, com a
arquitetura da cidade, uma aproximação contra-intuitiva.
É que ele recusa, digo eu, as idéias
feitas que recorrem ao concreto como matéria e às curvas harmônicas
como forma, como se soubesse que
esta cidade apavorada e apavorante
só reage quando sacudida: o bruto
defende do torpe.
Essa brutalidade poderia ter-lhe
aberto, mais do que fez, portas lá fora: este indelicado mundo grande é
vasto campo de manobra para o
brutalismo de Mendes da Rocha.
Se tivesse levado a conta do Centro
Pompidou [em Paris], em 1970, a
história seria outra. O problema é
que a história da arquitetura no Brasil, como tantas outras coisas, tem,
embutido, esse custo Brasil, que
sempre cobra alto pedágio: o custo
da pouca visibilidade, o custo da
margem. Nessa linha, o caso Pinacoteca na obra de Mendes da Rocha
(embora a questão ali fosse também
outra) é emblemático da situação do
arquiteto brasileiro, sempre mais
convocado para reformas e revisões
do que para obras novas.
Primeiro Mundo
Com esse outro prêmio, o Brasil
sai mais, talvez, como se pensa, do
lodaçal que é a zona das commodities (as matérias-primas e insumos
sem valor agregado, de preço instável) para entrar no ambiente refrigerado da criação, motor VIP da economia Primeiro Mundo da sociedade criativa e da inovação.
Sai da mesmice da venda do café
-bebida no entanto refinada- e
do futebol -contudo teatro contemporâneo do mítico jogo dos deuses (e que fantástico que aqui se jogue esse jogo com maestria e facilidade)-, para o cenário valorizado
da armação das idéias.
Mas não é a arquitetura brasileira
que está em jogo nem a que interessa. O que interessa é a arquitetura,
sem patronímicos, feita neste lugar
chamado Brasil. Nem a arquitetura
brasileira nem a latino-americana,
que lhe deu o grande prêmio anterior. Sua arquitetura é do mundo.
Mendes da Rocha é arquiteto, não
arquiteto brasileiro ou latino-americano. No legado dele, além de sua arte, há algo que recebeu pronto e agora repassa, reforçado: o espírito internacionalista herdado da proposta
moderna. O modernismo tem picos
agudos e rasas planícies estéreis
mais disto que daquilo.
Ele está num pico, armando uma
tensão com o outro arquiteto laureado daqui. Tensão intensa e emblemática. Oscar Niemeyer é o arquiteto oficial; Mendes da Rocha, o agitador incômodo, mais distante do monumento e mais próximo da rua indelicada.
No entanto ambos movem essa
idéia de uma arquitetura que ignora
fronteiras e nacionalismos identitários. Ambas as arquiteturas são de livre circulação, com raízes dinâmicas. A de Mendes da Rocha, talvez
mais. Quer dizer: há nele um valor
artístico e um outro, cultural. O primeiro não pode ser imitado; o segundo é para ser aplicado.
Um prêmio norte-americano dado a um brasileiro, a ser entregue em
Istambul: é bem o espírito da melhor
arquitetura contemporânea.
Teixeira Coelho é ensaísta, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da
USP. É autor de "Niemeyer" e "As Fúrias da
Mente" (ambos pela Iluminuras).
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