São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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+ cultura

Concebido ao mesmo tempo como poema cosmogônico e tratado científico,"Eureka", último escrito do autor americano, antecipou questões da física contemporânea

A charada final de Edgar Allan Poe

Roland Campos
especial para a Folha

Já se escreveu tanto sobre a obra de Edgar Allan Poe [1809-49] que parece improvável a descoberta, em seus textos, de aspectos inusitados. Há, contudo, alguns tópicos menos conhecidos e/ou divulgados. Um deles é o da evolução do universo, elaborado no ensaio "Eureka" (1848), último escrito de Poe, concebido ao mesmo tempo como um poema cosmogônico e como um pequeno tratado científico. Nele o autor recorre às teorias de Newton e de Laplace, ainda que sem usar diretamente o formalismo matemático. A enunciação cosmológica flui em prosa poética, a partir de considerações geométrico-especulativas. Um intérprete pioneiro dessa cosmoproposta foi Paul Valéry. Em "Au Sujet d'"Eureka'" (A Propósito de "Eureka", 1921) ele assinala relações surpreendentes entre a formulação de Poe e certas idéias que acabaram posteriormente se firmando no âmbito da física teórica. Entre nós, as referências ao "(poe)ma cosmogônico" parecem ter surgido em épocas mais recentes. O astrônomo Rogério Mourão observa ("O Universo Inflacionário", 1983, ed. Francisco Alves) que Poe deu a explanação correta para o "paradoxo de Olbers". Em 1826 Wilhelm Olbers indagou: "Por que o céu é escuro à noite?". A pergunta, pueril na aparência, faz sentido. Uma avaliação matemática prova ser a intensidade da luz estelar que nos alcança, considerando-se estático o universo, aproximadamente igual à emitida, por unidade de área, pela superfície do Sol. Desse modo, a noite deveria ser tão clara quanto a superfície solar! A resposta é a recessão das galáxias, a qual torna mais fraca a luz proveniente das estrelas distantes, produzindo assim um céu noturno pouco luminoso. Mesmo no domínio da moderna cosmologia relativista é possível identificar ecos de "Eureka". Os buracos negros podem surgir quando a massa se comprime em uma região de volume ínfimo. No limite, temos um ponto, uma singularidade, como dizem os matemáticos, resultado do colapso gravitacional. Poe menciona enfaticamente um regresso da matéria à unidade. Os modelos esféricos de constante cosmológica negativa, ademais, propõem um "big crunch" a partir de um "big bang" prévio, isto é, sustentam a existência de singularidades, inicial e final. Constituem assim um universo oscilante formado de ciclos sucessivos (Poe: "Atração e repulsão. Irradiação a partir de um centro. Retorno à unidade absoluta"; "a onipresente lei das leis. A lei da periodicidade"; "... uma extensão sem fim nesse sistema de ciclos" etc. -tradução feita a partir do texto de "Eureka" apresentado em "The Science Fiction of E.A. Poe", 1979, Penguin Books).

Caminhos que se bifurcam
Embora sejam apenas hipóteses, os modelos em questão são momentosos. E nos remetem aos ciclos de Anaximandro, um dos "físicos" jônicos. Anaximandro postulava a existência do "ápeiron", o indefinido/ilimitado. Ele concebia a geração e a destruição ocorrendo circularmente. Propugnava uma série interminável de mundos, já que o "ápeiron" é imortal. Isso traz à tona, por sua vez, a interpretação dos "multiversos" (universos múltiplos) da física quântica: se um sistema tem num certo instante duas alternativas de percurso, então seguirá as duas, cada uma compondo um mundo diferente!


Mesmo no domínio da moderna cosmologia relativista é possível identificar ecos de "Eureka"


Desaparece a desagradável compulsão de termos que eleger uma das opções, descartando a outra. Haveria, nesse contexto, uma seqüência ilimitada de orbes, um dos quais singularmente habitamos. É o "jardim de caminhos que se bifurcam", de Jorge Luis Borges. Labirintos do espaço-tempo... Ricardo Araújo assinala que a interjeição "heureca", por exprimir um estado de ânimo perante a descoberta, como na famosa exclamação de Arquimedes, em seu banho, exterioriza um esforço contemplativo do qual aflora uma iluminação repentina, dando ao descobridor uma sensação sublime, talvez afeiçoada à visão romântica (em "Edgar Allan Poe -Um Homem em Sua Sombra", 2002, Ateliê Editorial). Assim teria sido o envolvimento de Poe com seu ensaio. E o autor de "Eureka" fez questão de externar, com traços dramáticos, o impacto desse episódio. Sem tencionar excluir tal instância lírico-visionária de entrelaçamento do artista com sua composição e que ocasionalmente traz a impressão de poder e de majestade, por conta da "luz súbita", devemos ressaltar que os estudos heurísticos indicam a existência de uma "intralógica" nos processos mentais do inventor, vinculada a uma espécie de "algoritmo" aparentemente impenetrável, mas executado a preceito. Os proponentes de novas idéias parecem, de fato, portar uma faculdade de elaboração bastante precisa, ainda que subjetiva e enigmática. É justo, então, destacar também a veemência dos mecanismos racionais que fazem emergir o "produto". O próprio Poe, aliás, apontou esse caminho em "A Filosofia da Composição". A heurística, ciência do pensamento criador, cresceu muito a partir do decênio de 1960. Mostrou a similaridade dos processos criativos nas diversas áreas do conhecimento, aproximando ciência e arte. Em ambas, após uma primeira etapa de perquirição consciente, o artífice mantém maquinações cerebrais inconscientes cuja finalização se dá, nos casos bem-sucedidos, no instante do "grito de Arquimedes". Daí transparece a elucidação do problema. Esse salto abrupto é popularmente encarado como um momento mágico de inspiração e quase sempre relacionado a uma inesperada concessão divina ou ao "estado de alma" do artista, o que é um equívoco, pois mascara o regime laboral interno da mente criadora. No estágio seguinte, logo após o "estalo", revém a percepção voluntária, que permite a codificação do achado. Uma vertente profícua da heurística principiou sob o signo da cibernética. Entre seus desdobramentos está a parceria homem-computador. Para tais análises, desde Shannon e Wiener, a máquina enxadrista é tomada como protótipo. O xadrez aciona um número colossal de possibilidades, colocando em confronto o cálculo e a "antevisão", quer dizer, a lógica e a intuição.

Duelo com o cosmos
Vale sublinhar que a locução "heureca", vinculada ao "poema cosmogônico", frisa bem o instante de conquista da chave de uma comunicação cifrada. Isso nos faz admitir uma vereda acessória de abordagem, que medeia as da ciência e da arte, para o tema do universo. É provável que Poe enfrentasse o "duelo" com o cosmos recorrendo, em certos momentos, à conduta do charadista. Sendo assim, o cunho prodigioso da empreitada e o pressentimento do tempo exíguo para rematá-la podem ter precipitado um artifício resolutivo. Especulo que o autor de "Eureka", diante do mistério imenso, opressivo, tenha retrucado com uma solução plurívoca ("multiversos", ciclos, recâmbios), forqueando e pospondo o desfecho cosmológico. É como se o enigma dos enigmas, em vista de sua complexidade, tivesse chaves múltiplas.
O brado arquimediano refletiria nessa circunstância menos uma decodificação sectária, impositiva, do que o fantástico anseio de obtê-la. De um lado, Poe manifesta a convicção de ter discernido a verdade. De outro, ensina uma atitude de "humildade realmente sincera" e "um sentimento de temor" ante o inexcedível assunto que arrosta.
Ele talvez reputasse a explicação que alcançou poética em alto grau, porém cientificamente vulnerável. Isso, aliás, não desmerece a genialidade do criador de Dupin, o detetive-decifrador. Dizia John von Neumann sobre o xadrez: "Não é um jogo, é uma forma de computação. Só que não sabemos as respostas". Se até hoje nos faltou aptidão para esclarecer esse miúdo teatro de 64 casas e 32 peças, como vamos reivindicar o direito de abranger o gigacenário cósmico?

Roland Campos é físico, autor de "Arteciência" (ed. Perspectiva).


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