São Paulo, domingo, 16 de maio de 2010

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O livro dos Caudilhos

Em "Facundo", Sarmiento decifra relações de poder na Argentina e ajuda a propor um futuro para o país nascente

EDITORA DA ILUSTRADA

Um dos principais intelectuais argentinos do século 19 foi um personagem histórico de trajetória única. Domingo Faustino Sarmiento (1811-88) costumava gabar-se ao dizer que havia nascido nove meses depois do surgimento da nação -com a Revolução de Maio de 1810.
Por conta disso, via-se imbuído da missão de terminar de formar a pátria. E de certa forma o fez, com os escritos que influenciaram o debate político local e, tempos depois, como presidente argentino entre os anos de 1868 e 1874.
Nascido na Província andina de San Juan, a mais de mil quilômetros de Buenos Aires, Sarmiento educou-se sozinho. Apesar de ter crescido num lugar em que eram comuns as lutas violentas entre grupos ligados a caudilhos, cedo percebeu o valor do conhecimento e passou a carregar essa bandeira por toda a vida. Foi professor em aldeias na juventude, para na fase adulta fundar escolas e desenhar planos de ensino.
Por conta da militância política, exilou-se no Chile em diversos momentos. Num deles, escreveu "Facundo - Civilização e Barbárie" (1845), considerado um dos textos fundadores da Argentina, que é relançado agora no Brasil, em nova tradução, pela editora Cosac Naify (tradução de Sérgio Alcides, com lançamento previsto para junho).
O livro foi escrito às pressas, no embalo de um fluxo de raiva do jovem agitador provinciano contra o temido governador de Buenos Aires Juan Manuel de Rosas (1793-1877), que nunca chegou a ser presidente da Argentina, mas conduziu o país com mãos duras durante os períodos de 1829 a 1832 e 1835 a 1852.
"Facundo" é um engenhoso jogo de narrativa em que se conta uma história semifictícia para atacar um problema real. A obra pretende-se uma biografia do temido general Juan Facundo Quiroga (1788-1835), cujas histórias de violência eram famosas no imaginário popular da região de Cuyo -que abrangia, além de San Juan, as Províncias de San Luis e Mendoza.
Ao descrever o meio geográfico e social que havia dado as condições para o surgimento de Quiroga, Sarmiento quis explicar também as razões geográficas e sociológicas que fizeram possível surgir no cenário do poder uma figura como Rosas.

Palpite engenhoso
Não se trata de um ensaio sociológico rigoroso nem de um registro histórico preocupado com a precisão dos fatos. Muito do que está ali em termos de datas e detalhes biográficos sobre os personagens envolvidos são reconhecidamente puro chute.
Sarmiento nunca teve pudores em inventar ou preencher com a imaginação as lacunas de suas lembranças. Vários amigos e opositores apontaram erros na narrativa quando a cotejavam com os fatos retratados.
Ele corrigiu alguns em edições posteriores, mas muitos permaneceram. Captar o espírito de seu tempo e transmitir sua mensagem conclamando à luta eram suas prioridades.
O livro tem um estilo agressivo de narrativa e é forte nas imagens que cria para resumir o que considerava serem os grandes problemas da nação.
Com essas imagens, Sarmiento acabou gerando um clichê historiográfico.
Obra mais conhecida do que lida, o "Facundo" foi usado em inúmeras interpretações como tendo apresentado uma oposição fundamental para conhecer a América Latina: o conflito entre "civilização" e "barbárie".
Apesar de não ser algo intencional, essa oposição foi incorporada à leitura do texto. Isso porque a fórmula de algum modo fornecia uma chave para compreender a transformação na América hispânica como um todo no período após as revoluções de independência. O continente, livre da Coroa espanhola, tinha de encontrar respostas com relação ao futuro.
Pela peculiaridade das condições sociológicas e históricas daquele momento, pela variada formação étnica da população e pelas distintas alternativas de modelo político, o século 19 latino-americano foi palco de um intenso debate de ideias. Nesse contexto, "Facundo" contribuiu para alimentar discussões sobre o futuro desses Estados nacionais embrionários.

Iluminismo
Em "Facundo", Sarmiento propõe-se a pensar como a "civilização" poderia florescer em seu país, que ainda estaria vivendo num estado de "barbárie". Por um lado, queria o fim de atrocidades cometidas por caudilhos locais. Por outro, propunha um intercâmbio entre elementos "bárbaros" e "civilização".
O texto traz definições baseadas em seu conhecimento raso do país. Ainda sem ter conhecido Buenos Aires, Paris ou Washington (cidades que visitaria posteriormente), Sarmiento idealizou a "civilização" como algo que seria alcançado por sociedades bem-educadas, regidas pela lei, tendo o progresso tecnológico, cultural e econômico como meta e o ideário iluminista como guia.
A "barbárie" era para ele algo bem mais concreto, que fazia parte do dia a dia e da tradição oral da região em que vivia.
Traduzia-se nas crueldades dos caudilhos interioranos -a "degola", outro termo que usava com frequência.
Rosas seria o exemplo mais bem acabado da "barbárie". Ou melhor, o líder de uma "barbárie" instituída no poder. Aos poucos, e depois de "Facundo", Sarmiento começou a observar a barbárie de uma forma mais oblíqua. Passaria a interessar-se mais pelo processo de civilização de um homem bárbaro e menos com o resultado final dessa "evolução".
"Civilização" e "barbárie" vão ganhando novos significados e maior complexidade a partir da experiência pessoal de Sarmiento: seus enfrentamentos com Rosas por meio da imprensa chilena, sua viagem à Europa, sua participação na batalha de Caseros (que derrubou Rosas, com a ajuda do Exército imperial brasileiro) e, por fim, sua experiência na vida política da nação, no Senado, como embaixador da Argentina nos EUA (baseado em Nova York) e como presidente. (SC)


Obras de Sarmiento em espanhol, incluindo "Facundo", podem ser acessadas em
www.proyectosarmiento.com.ar


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