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O livro dos Caudilhos
Em "Facundo", Sarmiento decifra relações de poder na Argentina
e ajuda a propor um futuro
para o país
nascente
EDITORA DA ILUSTRADA
Um dos principais
intelectuais argentinos do século 19
foi um personagem
histórico de trajetória única. Domingo Faustino
Sarmiento (1811-88) costumava gabar-se ao dizer que havia
nascido nove meses depois do
surgimento da nação -com a
Revolução de Maio de 1810.
Por conta disso, via-se imbuído da missão de terminar de
formar a pátria. E de certa forma o fez, com os escritos que
influenciaram o debate político
local e, tempos depois, como
presidente argentino entre os
anos de 1868 e 1874.
Nascido na Província andina
de San Juan, a mais de mil quilômetros de Buenos Aires, Sarmiento educou-se sozinho.
Apesar de ter crescido num lugar em que eram comuns as lutas violentas entre grupos ligados a caudilhos, cedo percebeu
o valor do conhecimento e passou a carregar essa bandeira
por toda a vida. Foi professor
em aldeias na juventude, para
na fase adulta fundar escolas e
desenhar planos de ensino.
Por conta da militância política, exilou-se no Chile em diversos momentos. Num deles,
escreveu "Facundo - Civilização e Barbárie" (1845), considerado um dos textos fundadores da Argentina, que é relançado agora no Brasil, em nova
tradução, pela editora Cosac
Naify (tradução de Sérgio Alcides, com lançamento previsto
para junho).
O livro foi escrito às pressas,
no embalo de um fluxo de raiva
do jovem agitador provinciano
contra o temido governador de
Buenos Aires Juan Manuel de
Rosas (1793-1877), que nunca
chegou a ser presidente da Argentina, mas conduziu o país
com mãos duras durante os períodos de 1829 a 1832 e 1835 a
1852.
"Facundo" é um engenhoso
jogo de narrativa em que se
conta uma história semifictícia
para atacar um problema real.
A obra pretende-se uma biografia do temido general Juan
Facundo Quiroga (1788-1835),
cujas histórias de violência
eram famosas no imaginário
popular da região de Cuyo
-que abrangia, além de San
Juan, as Províncias de San Luis
e Mendoza.
Ao descrever o meio geográfico e social que havia dado as
condições para o surgimento
de Quiroga, Sarmiento quis explicar também as razões geográficas e sociológicas que
fizeram possível surgir no cenário do poder uma figura como Rosas.
Palpite engenhoso
Não se trata de um ensaio sociológico rigoroso nem de um
registro histórico preocupado
com a precisão dos fatos. Muito
do que está ali em termos de datas e detalhes biográficos sobre
os personagens envolvidos são
reconhecidamente puro chute.
Sarmiento nunca teve pudores em inventar ou preencher
com a imaginação as lacunas de
suas lembranças. Vários amigos e opositores apontaram erros na narrativa quando a cotejavam com os fatos retratados.
Ele corrigiu alguns em edições
posteriores, mas muitos permaneceram. Captar o espírito
de seu tempo e transmitir sua
mensagem conclamando à luta
eram suas prioridades.
O livro tem um estilo agressivo de narrativa e é forte nas
imagens que cria para resumir
o que considerava serem os
grandes problemas da nação.
Com essas imagens, Sarmiento
acabou gerando um clichê historiográfico.
Obra mais conhecida do que
lida, o "Facundo" foi usado em
inúmeras interpretações como
tendo apresentado uma oposição fundamental para conhecer a América Latina: o conflito
entre "civilização" e "barbárie".
Apesar de não ser algo intencional, essa oposição foi incorporada à leitura do texto. Isso
porque a fórmula de algum modo fornecia uma chave para
compreender a transformação
na América hispânica como um
todo no período após as revoluções de independência. O continente, livre da Coroa espanhola, tinha de encontrar respostas com relação ao futuro.
Pela peculiaridade das condições sociológicas e históricas
daquele momento, pela variada
formação étnica da população e
pelas distintas alternativas de
modelo político, o século 19 latino-americano foi palco de um
intenso debate de ideias. Nesse
contexto, "Facundo" contribuiu para alimentar discussões
sobre o futuro desses Estados
nacionais embrionários.
Iluminismo
Em "Facundo", Sarmiento
propõe-se a pensar como a "civilização" poderia florescer em
seu país, que ainda estaria vivendo num estado de "barbárie". Por um lado, queria o fim
de atrocidades cometidas por
caudilhos locais. Por outro,
propunha um intercâmbio entre elementos "bárbaros" e "civilização".
O texto traz definições baseadas em seu conhecimento
raso do país. Ainda sem ter conhecido Buenos Aires, Paris ou
Washington (cidades que visitaria posteriormente), Sarmiento idealizou a "civilização"
como algo que seria alcançado
por sociedades bem-educadas,
regidas pela lei, tendo o progresso tecnológico, cultural e
econômico como meta e o ideário iluminista como guia.
A "barbárie" era para ele algo
bem mais concreto, que fazia
parte do dia a dia e da tradição
oral da região em que vivia.
Traduzia-se nas crueldades dos
caudilhos interioranos -a "degola", outro termo que usava
com frequência.
Rosas seria o exemplo mais
bem acabado da "barbárie". Ou
melhor, o líder de uma "barbárie" instituída no poder. Aos
poucos, e depois de "Facundo",
Sarmiento começou a observar
a barbárie de uma forma mais
oblíqua. Passaria a interessar-se mais pelo processo de civilização de um homem bárbaro e
menos com o resultado final
dessa "evolução".
"Civilização" e "barbárie"
vão ganhando novos significados e maior complexidade a
partir da experiência pessoal
de Sarmiento: seus enfrentamentos com Rosas por meio da
imprensa chilena, sua viagem à
Europa, sua participação na batalha de Caseros (que derrubou
Rosas, com a ajuda do Exército
imperial brasileiro) e, por fim,
sua experiência na vida política
da nação, no Senado, como embaixador da Argentina nos
EUA (baseado em Nova York) e
como presidente.
(SC)
Obras de Sarmiento em espanhol, incluindo "Facundo", podem ser acessadas em
www.proyectosarmiento.com.ar
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