São Paulo, Domingo, 16 de Maio de 1999
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Em "A Pele de Onagro", Balzac arma um jogo filosófico decisivo entre vontade e desejo
Uma ilusão romântica

RENATO JANINE RIBEIRO
especial para a Folha

A Pele de Onagro" é um dos romances mais comentados de Balzac, pelo menos na França. Até recebe destaque, no site na Internet de seu bicentenário (http://perso.wanadoo.fr/f.bon/balzac.html). No entanto, retomando-o agora, 20 anos depois de um primeiro e entusiástico contato, sinto que talvez se tenha tornado uma obra de difícil leitura, neste final de século 20.
As mulheres que nele ressaltam, uma mulher fatal e uma mocinha angelical, são estereótipos hoje inaceitáveis. Mas, antes de perguntar por que esse livro envelheceu, lembremos que ele é o primeiro dos "estudos filosóficos", nome que dá Balzac a toda uma parte de sua "Comédia Humana" e pelo menos por isso merece atenção.
Na França de 1830, numa época de sucessivas esperanças traídas, um rapaz quer se matar. Contudo ganha uma pele de onagro, um asno da Ásia dotada de um poder mágico. Ela atende qualquer desejo de seu dono, mas encurtando-se e encurtando a vida dele.
Que tem a perder um moço suicida ante esse adicional de vida, e seguro de que todos os seus desejos serão atendidos? Mas é óbvio que, ao se ver satisfeito no que antes eram frustrações, e além do mais apaixonado pela doce Paulina, ele já não quererá morrer.
Uma oposição governa o romance, entre vontade e desejo. O desejo é mais carnal. É apetite. Pede comida, bebida e sexo. Já a vontade se entende por meio de uma expressão como "força de vontade". Só há vontade se for forte. Ela se baseia não na satisfação de um desejo físico imediato, mas na renúncia a ele, em nome de um valor mais alto. A vontade exige sair do físico ou do imediato e subir ao espiritual e ao mediato.
Rafael de Valentim, o herói do romance, começa a vida escrevendo uma obra ambiciosa, magna, sua "Teoria da Vontade". Decide gastar o pouco que lhe sobrou da ruína de sua família vivendo modestamente, enquanto lê, estuda (filosofia e ciências) e escreve. A forma como age se harmoniza com o conteúdo de sua ação: para escrever sobre a vontade, mostra contenção ou força de vontade. Mas fracassa.
Porque entra em cena o desejo, por intermédio de Fedora, a "belle dame sans merci", a bela impiedosa. Rafael controlava a vontade, talvez, apenas porque ignorasse as paixões. Fedora devasta seus sentimentos.
Ela é sincera: diz-lhe que não o ama, nem a homem algum. Mas isso não impede Rafael de se apaixonar e de se arruinar financeira e moralmente. E é ao cair no abismo que ele ganha o sursis de vida outorgado pela pele, que faz toda a diferença entre o que seria um romance moralista, pouco original, e o que é essa obra, abrindo uma discussão interessante, embora datada, sobre o desejo e a vida.
Se a pele realiza os desejos à custa da vida, é claro que, quanto mais Rafael deseje, menos viverá. Só prolongará seus dias se descer a um grau zero de desejo. Mas o pior não é o desgaste da vida nas banalidades do cotidiano ("o que o senhor deseja?", alguém lhe pergunta; "nada; traga-me um prato", responde ele). O grave é que, quando encontra a mulher de seus sonhos, o preço desses se revela enorme.
Poderíamos discutir outros aspectos da filosofia de Balzac: o papel que atribui às ciências, num misto de respeito e ironia, de desconfiança e admiração. Mas o decisivo é o jogo entre desejo e vontade. Por que um personagem que apostava tanto na vontade acaba morrendo pelo desejo?
Isso exige interrogar o que é esse desejo. Ainda hoje, a maior parte dos leitores da "Pele" aceita a imagem que Balzac apresenta das mulheres postas em cena. São quatro, divididas em dois pares.
Há duas prostitutas de luxo ("cortesãs"), uma fria e calculista (Eufrásia), outra de boa alma (Aquilina). Deve-se a elas uma fala arguta e terrível sobre a condição feminina em seu tempo: denunciam a hipocrisia reinante, o papel de esposa ou mãe a que as mulheres são reduzidas, o fato de muito homem casar-se por interesse e não por amor.
A esses discursos, os homens só podem contrapor palavras vazias ("mas não é da alma que provém a felicidade?", lhes pergunta Rafael, depois de ouvir um panorama devastador da sociedade em que vive; "mas uma mulher sem virtude não se torna odiosa?", acrescenta seu amigo Emílio). Não sabendo refutar o que elas dizem, apenas as desqualificam.
E isso é curioso, porque, se o leitor-padrão do século 19 certamente se incomodaria com essas falas de mulheres e se reconfortaria com as bobagens masculinas, o leitor minimamente inteligente de nossos dias respeitará mais o que elas dizem. Ele se sentirá incomodado, sim, mas não aceitará mais o fácil conforto da ideologia do trono e do altar.
Porém é outro par de mulheres que define o eixo da obra. Já citei Fedora, que pertence à linhagem de mulheres fatais comentada por Mario Praz em "A Carne, a Morte e o Diabo na Literatura Romântica", que as compara a aranhas negras que devoram o macho. Mas ela foi franca com Rafael, dizendo que não o amava. A desgraça dele resultou de não levar a sério o que ela disse (mais uma vez, esses homens que não dão importância ao que dizem as mulheres...).
Já Paulina é só pureza, uma Amélia do século 19, que vara as noites trabalhando para ajudar Rafael, a quem ama e que por enquanto nada dá por ela.
Disso, o que concluir? Voltemos ao tema filosófico. O interesse do romance está em sua idéia (o desejo que, atendido, reduz a vida) e em expor dificuldades com as quais a sociedade lida há séculos.
Primeira dificuldade: o papel da mulher. Não é que o século 19 ignorasse um discurso feminino rebelde. O que fez foi desprezá-lo, emoldurando-o numa fala religiosa hipócrita ou ingênua: perante a fome, invocar a alma, diante do estupro, a virtude. A rebeldia não é discutida a sério, em seus termos, que são racionais; em vez disso, é enquadrada por frases feitas.
Segunda dificuldade: está em jogo aqui o sentido mesmo de vontade e desejo. Quase toda a tradição filosófica os contrapôs. Mas a condição para isso, no romantismo, foi um maniqueísmo intensificado, que opunha luxúria e sacrifício, cortesãs e virgens dedicadas, desejo e vontade, mal e bem. Esse recorte hoje envelheceu. Porém está presente nesse romance, ainda bem romântico, de Balzac.
Isso é o que hoje clama para ser revisto. Entre nós, com Flávio Gikovate e Jurandir Freire Costa, ou no mundo afora, desde Denis de Rougemont, critica-se o amor romântico, como um ideal que traz mais infelicidade que real satisfação. "A Pele de Onagro" expressa muito bem certos lugares-comuns dessa ilusão.
Há a oposição tosca entre bem e mal, entre a santa e as variações da prostituta (três, se incluirmos Fedora, que só não recebe esse nome porque não se entrega sexualmente nem cobra dinheiro de seus admiradores). Há o ponto de vista excessivamente masculino, que exige virtude da mulher, mas não do varão.
Há, finalmente, o recorte radical entre o mundo dos desejos, o que um freudiano chamaria "id", e o do que Rafael entende por vontade, aqui mais do lado do "superego" que do próprio "ego". É justamente porque seu ego é fraco e constituído quase todo de preconceitos morais ("a verdadeira felicidade que vem da alma", por exemplo), que se mostra tão frágil quando se abre a voragem de seus desejos. De desejos que são seus, porém que ele prefere projetar numa figura externa, uma mulher.
Mas Freud nos levaria muito longe... Talvez caiba concluir lembrando que os clássicos também envelhecem e se tornam ilegíveis. Às vezes, como no Brasil, porque é cada vez mais difícil um povo pouco letrado entender a língua, tão diferente da atual, em que se exprimiram nossos autores do século 19. Outras vezes, como no caso de "A Pele de Onagro", não porque a linguagem envelheceu, mas porque -respeitadas certas passagens que expressam o vigor dos sentimentos juvenis de Rafael- se tornaram obsoletos os preconceitos que sustentam a obra.


Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na USP, autor de "Ao Leitor sem Medo" (ed. Brasiliense) e "A Última Razão dos Reis - Ensaios de Filosofia e de Política" (Companhia das Letras).



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