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Em "A Pele de Onagro", Balzac arma um jogo filosófico decisivo entre vontade e desejo
Uma ilusão romântica
RENATO JANINE RIBEIRO
especial para a Folha
A Pele de Onagro"
é um dos romances mais comentados de
Balzac, pelo menos na França.
Até recebe destaque, no site na Internet de seu
bicentenário (http://perso.wanadoo.fr/f.bon/balzac.html). No entanto, retomando-o agora, 20
anos depois de um primeiro e entusiástico contato, sinto que talvez
se tenha tornado uma obra de difícil leitura, neste final de século 20.
As mulheres que nele ressaltam,
uma mulher fatal e uma mocinha
angelical, são estereótipos hoje
inaceitáveis. Mas, antes de perguntar por que esse livro envelheceu, lembremos que ele é o primeiro dos "estudos filosóficos",
nome que dá Balzac a toda uma
parte de sua "Comédia Humana"
e pelo menos por isso merece
atenção.
Na França de 1830, numa época
de sucessivas esperanças traídas,
um rapaz quer se matar. Contudo
ganha uma pele de onagro, um asno da Ásia dotada de um poder
mágico. Ela atende qualquer desejo de seu dono, mas encurtando-se e encurtando a vida dele.
Que tem a perder um moço suicida ante esse adicional de vida, e
seguro de que todos os seus desejos serão atendidos? Mas é óbvio
que, ao se ver satisfeito no que antes eram frustrações, e além do
mais apaixonado pela doce Paulina, ele já não quererá morrer.
Uma oposição governa o romance, entre vontade e desejo. O
desejo é mais carnal. É apetite. Pede comida, bebida e sexo. Já a vontade se entende por meio de uma
expressão como "força de vontade". Só há vontade se for forte. Ela
se baseia não na satisfação de um
desejo físico imediato, mas na renúncia a ele, em nome de um valor
mais alto. A vontade exige sair do
físico ou do imediato e subir ao espiritual e ao mediato.
Rafael de Valentim, o herói do
romance, começa a vida escrevendo uma obra ambiciosa, magna,
sua "Teoria da Vontade". Decide
gastar o pouco que lhe sobrou da
ruína de sua família vivendo modestamente, enquanto lê, estuda
(filosofia e ciências) e escreve. A
forma como age se harmoniza
com o conteúdo de sua ação: para
escrever sobre a vontade, mostra
contenção ou força de vontade.
Mas fracassa.
Porque entra em cena o desejo,
por intermédio de Fedora, a "belle dame sans merci", a bela impiedosa. Rafael controlava a vontade,
talvez, apenas porque ignorasse as
paixões. Fedora devasta seus sentimentos.
Ela é sincera: diz-lhe que não o
ama, nem a homem algum. Mas
isso não impede Rafael de se apaixonar e de se arruinar financeira e
moralmente. E é ao cair no abismo
que ele ganha o sursis de vida outorgado pela pele, que faz toda a
diferença entre o que seria um romance moralista, pouco original,
e o que é essa obra, abrindo uma
discussão interessante, embora
datada, sobre o desejo e a vida.
Se a pele realiza os desejos à custa da vida, é claro que, quanto
mais Rafael deseje, menos viverá.
Só prolongará seus dias se descer a
um grau zero de desejo. Mas o pior
não é o desgaste da vida nas banalidades do cotidiano ("o que o senhor deseja?", alguém lhe pergunta; "nada; traga-me um prato", responde ele). O grave é que,
quando encontra a mulher de seus
sonhos, o preço desses se revela
enorme.
Poderíamos discutir outros aspectos da filosofia de Balzac: o papel que atribui às ciências, num
misto de respeito e ironia, de desconfiança e admiração. Mas o decisivo é o jogo entre desejo e vontade. Por que um personagem que
apostava tanto na vontade acaba
morrendo pelo desejo?
Isso exige interrogar o que é esse
desejo. Ainda hoje, a maior parte
dos leitores da "Pele" aceita a
imagem que Balzac apresenta das
mulheres postas em cena. São
quatro, divididas em dois pares.
Há duas prostitutas de luxo
("cortesãs"), uma fria e calculista
(Eufrásia), outra de boa alma
(Aquilina). Deve-se a elas uma fala
arguta e terrível sobre a condição
feminina em seu tempo: denunciam a hipocrisia reinante, o papel
de esposa ou mãe a que as mulheres são reduzidas, o fato de muito
homem casar-se por interesse e
não por amor.
A esses discursos, os homens só
podem contrapor palavras vazias
("mas não é da alma que provém
a felicidade?", lhes pergunta Rafael, depois de ouvir um panorama devastador da sociedade em
que vive; "mas uma mulher sem
virtude não se torna odiosa?",
acrescenta seu amigo Emílio). Não
sabendo refutar o que elas dizem,
apenas as desqualificam.
E isso é curioso, porque, se o leitor-padrão do século 19 certamente se incomodaria com essas falas
de mulheres e se reconfortaria
com as bobagens masculinas, o
leitor minimamente inteligente de
nossos dias respeitará mais o que
elas dizem. Ele se sentirá incomodado, sim, mas não aceitará mais
o fácil conforto da ideologia do
trono e do altar.
Porém é outro par de mulheres
que define o eixo da obra. Já citei
Fedora, que pertence à linhagem
de mulheres fatais comentada por
Mario Praz em "A Carne, a Morte
e o Diabo na Literatura Romântica", que as compara a aranhas negras que devoram o macho. Mas
ela foi franca com Rafael, dizendo
que não o amava. A desgraça dele
resultou de não levar a sério o que
ela disse (mais uma vez, esses homens que não dão importância ao
que dizem as mulheres...).
Já Paulina é só pureza, uma
Amélia do século 19, que vara as
noites trabalhando para ajudar
Rafael, a quem ama e que por enquanto nada dá por ela.
Disso, o que concluir? Voltemos
ao tema filosófico. O interesse do
romance está em sua idéia (o desejo que, atendido, reduz a vida) e
em expor dificuldades com as
quais a sociedade lida há séculos.
Primeira dificuldade: o papel da
mulher. Não é que o século 19 ignorasse um discurso feminino rebelde. O que fez foi desprezá-lo,
emoldurando-o numa fala religiosa hipócrita ou ingênua: perante a
fome, invocar a alma, diante do
estupro, a virtude. A rebeldia não
é discutida a sério, em seus termos, que são racionais; em vez
disso, é enquadrada por frases feitas.
Segunda dificuldade: está em jogo aqui o sentido mesmo de vontade e desejo. Quase toda a tradição filosófica os contrapôs. Mas a
condição para isso, no romantismo, foi um maniqueísmo intensificado, que opunha luxúria e sacrifício, cortesãs e virgens dedicadas, desejo e vontade, mal e bem.
Esse recorte hoje envelheceu. Porém está presente nesse romance,
ainda bem romântico, de Balzac.
Isso é o que hoje clama para ser
revisto. Entre nós, com Flávio Gikovate e Jurandir Freire Costa, ou
no mundo afora, desde Denis de
Rougemont, critica-se o amor romântico, como um ideal que traz
mais infelicidade que real satisfação. "A Pele de Onagro" expressa
muito bem certos lugares-comuns
dessa ilusão.
Há a oposição tosca entre bem e
mal, entre a santa e as variações da
prostituta (três, se incluirmos Fedora, que só não recebe esse nome
porque não se entrega sexualmente nem cobra dinheiro de seus admiradores). Há o ponto de vista
excessivamente masculino, que
exige virtude da mulher, mas não
do varão.
Há, finalmente, o recorte radical
entre o mundo dos desejos, o que
um freudiano chamaria "id", e o
do que Rafael entende por vontade, aqui mais do lado do "superego" que do próprio "ego". É justamente porque seu ego é fraco e
constituído quase todo de preconceitos morais ("a verdadeira felicidade que vem da alma", por
exemplo), que se mostra tão frágil
quando se abre a voragem de seus
desejos. De desejos que são seus,
porém que ele prefere projetar numa figura externa, uma mulher.
Mas Freud nos levaria muito
longe... Talvez caiba concluir lembrando que os clássicos também
envelhecem e se tornam ilegíveis.
Às vezes, como no Brasil, porque é
cada vez mais difícil um povo pouco letrado entender a língua, tão
diferente da atual, em que se exprimiram nossos autores do século 19. Outras vezes, como no caso
de "A Pele de Onagro", não porque a linguagem envelheceu, mas
porque -respeitadas certas passagens que expressam o vigor dos
sentimentos juvenis de Rafael-
se tornaram obsoletos os preconceitos que sustentam a obra.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na USP, autor de "Ao Leitor sem Medo" (ed. Brasiliense) e "A Última Razão dos
Reis - Ensaios de Filosofia e de Política" (Companhia das Letras).
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