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Em artigos anteriores à "Comédia" Balzac exercita a arte de dar nós no real
As mil gravatas
MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação
Por volta de 1830, quando iniciava o ciclo de novelas e ensaios que
formariam "A Comédia Humana", Balzac redigiu quatro artigos
dedicados a analisar "cientificamente" os costumes da época.
São todos eles textos de ocasião,
provavelmente escritos numa sentada, em que Balzac aproveitava
para espicaçar seus contemporâneos enquanto ganhava uns trocados das revistas "L'Europe Littéraire" e "La Silhouette".
Esses artigos ligeiros e de título
pomposo -"Teoria do Andar",
"Tratado dos Excitantes Modernos", "Fisiologia do Vestir" e
"Fisiologia Gastronômica"- já
trazem, no entanto, a marca do
autor da "Comédia": uma forte
inclinação para o fantástico temperada por um espírito analítico.
Um traço que já estava no "Código dos Homens Honestos ou a Arte de Não Se Deixar Enganar pelos
Larápios" (Nova Fronteira, 165
págs., R$ 20,00), de 1825, um livro
de espantosa atualidade. É por
causa dessa mistura pouco comum entre invenção compulsiva e
espírito analítico que os delírios
balzaquianos -ao contrário de
certos devaneios em moda, sem
eira nem beira- são sempre certeiros, dirigidos a uma realidade
de objetos e sujeitos identificáveis.
Assim, na "Fisiologia do Vestir", um comentário sobre os vários modos de usar uma gravata se
transforma de repente numa crítica ao classicismo francês e num
panfleto romântico -a grande
polêmica daqueles anos, conhecida como "querela dos antigos e
modernos". Criticando um manual de moda escrito pelo barão
do Apresto ("A Arte de Colocar a
Gravata"), Balzac exclama que "a
gravata é essencialmente romântica", só para depois disparar contra o normativismo dos barões da
moda e das letras: "É de morrer
de rir. Divisões, separações de tipos, classificações, proibições, toda uma legislação aristotélica, verdadeiro código à maneira de Boileau... E assim se anula o gênio".
A gravata balzaquiana serve ainda para estrangular nacionalismos
e pregar a convivência pacífica entre os povos. "Se o sistema que
defendo necessitasse do apoio de
alguma autoridade na matéria,
poderia citar o exemplo de toda
uma nação, a Inglaterra, clássica
no vestir com soltura e sem afetação. Talvez algumas mentes estreitas me acusem aqui de ser pouco
patriota porque busco inspiração
fora do meu país. Mas rechaço os
preconceitos dos ódios nacionais,
que não nos permitem imitar o
que está bem em qualquer outro
lugar. Todos os povos são irmãos,
já proclamou a filosofia", dizia
um Balzac que, se hoje fosse vivo,
certamente se espantaria com a
guerra de Kosovo.
No "Tratado dos Excitantes
Modernos", dedicado à aguardente, ao tabaco e ao café, Balzac
assume ares de cientista moral, relata histórias de pessoas arruinadas pelo vício e analisa os "terríveis efeitos" que as drogas produzem no organismo (leia trecho
abaixo). Os leitores de "La Silhouette" deviam aplaudir a defesa dos bons costumes feita pelo articulista, mas dificilmente se davam conta do deboche escondido
sob a atitude bem-comportada do
autor. E lá ia Balzac, condenando
o fumo, mas elogiando o narguilé
(tipo de cachimbo persa "em que
se podem fumar vários produtos
botânicos"), falando mal do álcool, mas confessando nos seguintes termos uma noite de bebedeira: "Desde então concebi claramente o prazer da embriaguez".
Como naquele tempo não havia
o politicamente correto, Balzac
podia distinguir as mulheres em
apenas duas categorias, sem maiores escrúpulos, segundo o movimento de seus corpos. De um lado, as angulosas e castas, de outro,
as sinuosas e pecadoras. "Vocês
nunca se riram de uma mulher cujos movimentos de braços, cabeça
e pés produzem ângulos retos? (...)
Esse tipo de mulher costuma ser
virtuoso. A virtude nas mulheres
está intimamente ligada ao ângulo
reto. Todas as mulheres que cometeram as assim chamadas faltas
se destacam pela gostosa redondez
de seus movimentos."
Mas uma das observações mais
sugestivas desses artigos é a que se
lê na "Teoria do Andar". Ali Balzac verifica que os grandes personagens da história -imperadores, cientistas, intelectuais- tinham o hábito de inclinar a cabeça
da direita para a esquerda: "Não
cabe dúvida de que os homens
mais destacados inclinam todos a
cabeça para a esquerda. (...) Após
um exame detido, me declaro a favor desta atitude". Mais uma vez
o autor da "Comédia" certamente se decepcionaria ao constatar
que, hoje, a maioria dos governantes e intelectuais passou a pender a cabeça para a direita.
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