São Paulo, Domingo, 16 de Maio de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Em artigos anteriores à "Comédia" Balzac exercita a arte de dar nós no real
As mil gravatas

MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

Por volta de 1830, quando iniciava o ciclo de novelas e ensaios que formariam "A Comédia Humana", Balzac redigiu quatro artigos dedicados a analisar "cientificamente" os costumes da época. São todos eles textos de ocasião, provavelmente escritos numa sentada, em que Balzac aproveitava para espicaçar seus contemporâneos enquanto ganhava uns trocados das revistas "L'Europe Littéraire" e "La Silhouette".
Esses artigos ligeiros e de título pomposo -"Teoria do Andar", "Tratado dos Excitantes Modernos", "Fisiologia do Vestir" e "Fisiologia Gastronômica"- já trazem, no entanto, a marca do autor da "Comédia": uma forte inclinação para o fantástico temperada por um espírito analítico. Um traço que já estava no "Código dos Homens Honestos ou a Arte de Não Se Deixar Enganar pelos Larápios" (Nova Fronteira, 165 págs., R$ 20,00), de 1825, um livro de espantosa atualidade. É por causa dessa mistura pouco comum entre invenção compulsiva e espírito analítico que os delírios balzaquianos -ao contrário de certos devaneios em moda, sem eira nem beira- são sempre certeiros, dirigidos a uma realidade de objetos e sujeitos identificáveis.
Assim, na "Fisiologia do Vestir", um comentário sobre os vários modos de usar uma gravata se transforma de repente numa crítica ao classicismo francês e num panfleto romântico -a grande polêmica daqueles anos, conhecida como "querela dos antigos e modernos". Criticando um manual de moda escrito pelo barão do Apresto ("A Arte de Colocar a Gravata"), Balzac exclama que "a gravata é essencialmente romântica", só para depois disparar contra o normativismo dos barões da moda e das letras: "É de morrer de rir. Divisões, separações de tipos, classificações, proibições, toda uma legislação aristotélica, verdadeiro código à maneira de Boileau... E assim se anula o gênio".
A gravata balzaquiana serve ainda para estrangular nacionalismos e pregar a convivência pacífica entre os povos. "Se o sistema que defendo necessitasse do apoio de alguma autoridade na matéria, poderia citar o exemplo de toda uma nação, a Inglaterra, clássica no vestir com soltura e sem afetação. Talvez algumas mentes estreitas me acusem aqui de ser pouco patriota porque busco inspiração fora do meu país. Mas rechaço os preconceitos dos ódios nacionais, que não nos permitem imitar o que está bem em qualquer outro lugar. Todos os povos são irmãos, já proclamou a filosofia", dizia um Balzac que, se hoje fosse vivo, certamente se espantaria com a guerra de Kosovo.
No "Tratado dos Excitantes Modernos", dedicado à aguardente, ao tabaco e ao café, Balzac assume ares de cientista moral, relata histórias de pessoas arruinadas pelo vício e analisa os "terríveis efeitos" que as drogas produzem no organismo (leia trecho abaixo). Os leitores de "La Silhouette" deviam aplaudir a defesa dos bons costumes feita pelo articulista, mas dificilmente se davam conta do deboche escondido sob a atitude bem-comportada do autor. E lá ia Balzac, condenando o fumo, mas elogiando o narguilé (tipo de cachimbo persa "em que se podem fumar vários produtos botânicos"), falando mal do álcool, mas confessando nos seguintes termos uma noite de bebedeira: "Desde então concebi claramente o prazer da embriaguez".
Como naquele tempo não havia o politicamente correto, Balzac podia distinguir as mulheres em apenas duas categorias, sem maiores escrúpulos, segundo o movimento de seus corpos. De um lado, as angulosas e castas, de outro, as sinuosas e pecadoras. "Vocês nunca se riram de uma mulher cujos movimentos de braços, cabeça e pés produzem ângulos retos? (...) Esse tipo de mulher costuma ser virtuoso. A virtude nas mulheres está intimamente ligada ao ângulo reto. Todas as mulheres que cometeram as assim chamadas faltas se destacam pela gostosa redondez de seus movimentos."
Mas uma das observações mais sugestivas desses artigos é a que se lê na "Teoria do Andar". Ali Balzac verifica que os grandes personagens da história -imperadores, cientistas, intelectuais- tinham o hábito de inclinar a cabeça da direita para a esquerda: "Não cabe dúvida de que os homens mais destacados inclinam todos a cabeça para a esquerda. (...) Após um exame detido, me declaro a favor desta atitude". Mais uma vez o autor da "Comédia" certamente se decepcionaria ao constatar que, hoje, a maioria dos governantes e intelectuais passou a pender a cabeça para a direita.


Onde encomendar:
"Dime Cómo Andas, Te Drogas, Vistes y Comes... y Te Diré Quién Eres" pode ser encomendado à Livraria Letraviva (av. Rebouças, 2.080, tel. 011/883-3279, São Paulo).




Texto Anterior: Volumes da 'Comédia' no Brasil
Próximo Texto: Ponto de fuga - Jorge Coli: Idolatrada, salve, salve!
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.