São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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Em "Cartas de um Sedutor", que está sendo relançado, Hilda Hilst completa sua "trilogia obscena" e subverte o gênero pornográfico com requintes de linguagem

A cortina de fumaça da obscenidade

Heitor Ferraz
especial para a Folha

Em certo momento de sua carreira literária, a escritora Hilda Hilst resolveu, como ela mesma disse, que "tinha de fazer umas coisas porcas". Embrenhou-se pelo que chamou de literatura pornográfica, publicando "O Caderno Rosa de Lori Lamby" (1990). Em seguida, veio o segundo livro: "Contos d'Escárnio/Textos Grotescos", no mesmo ano. A trilogia obscena da autora se completou no ano seguinte com "Cartas de um Sedutor", que acaba de ser relançado pela editora Globo.
A trilogia foi uma tentativa de conquistar os leitores que ainda andavam distantes de sua obra. Porém ela mesma reconheceu que a busca falhou, já que sua literatura pornográfica era tão exigente quanto a literatura que praticara em seus outros livros (que incluem poemas, peças de teatro e ficções). "Diziam que eu era dificílima na literatura pornográfica", declarou numa entrevista ("Cadernos de Literatura Brasileira", nš 8).
"Cartas de um Sedutor" é um exemplo depurado dessa exigência e falha. A falha é que o livro não segue a linha do vale-tudo da literatura de aventura pornográfica, com cenas "calientes" que revirem os olhinhos do leitor à procura somente de entreter-se com vastas emoções. A falha é ela mesma filha da exigência da autora, que não abre mão da montagem de quadros amplos e complexos como os deste livro. A questão da obscenidade, que se transformou numa característica bastante divulgada da obra de Hilst, surge como uma força irônica e crítica dentro do livro -algo como uma estratégia da autora que acaba por debochar da literatura pornográfica ao praticá-la com requintes de linguagem que hoje são raros nesse gênero.
E ainda se pode dizer que a obscenidade vira uma espécie de cortina de fumaça sobre questões que a transcendem.
Logo no começo do livro, o personagem Stamatius, um escritor que perdeu tudo e se tornou mendigo, revirador de lixo, diz para Eulália, garota de rua que vive com ele: "Sou um escritor brasileiro, coisa de macho, negona". Pouco antes, a jovem lhe havia sugerido que escrevesse sobre ela: "Escreve de mim, da minha vida antes deu te encontrar, da surra que Zeca me deu, da doença quele me passou, da minha mãe que morreu de dó do meu pai quando ele pôs o fígado inteirinho pra fora, do nenê queu perdi, do Brasil ué!".
Na página seguinte, inicia-se a série obscena de cartas de Karl para sua irmã Cordélia. Os dois mantiveram relações sexuais na adolescência. Cordélia, por sua vez, teve uma relação sexual com o pai. As cartas de Karl giram em torno dessas relações familiares e em torno do seu desejo por homens do povo, como o mecânico Alberto, que ele chama de "Albert", em homenagem a Camus. Há aí jogos de dominações de toda ordem, de rebaixamentos, de pulsões e esnobismos de uma elite decadente.
A armação da autora é astuciosa e realça o choque entre dois mundos: o do escritor falido que é Stamatius, que se debate entre uma literatura não-comercial e a comercial, ao mesmo tempo em que ironiza a pobre Eulália, "o Brasil ué", e o do escritor aristocrata e vaidoso que é Karl, que esnoba a literatura enquanto escreve cartas para sua irmã Cordélia, relatando -e se vangloriando de- sua vida sexual. Para montar essa narrativa intrincada, Hilda Hilst trabalha de um lado com o romance epistolar, acrescentando a ele uma linguagem devedora certamente da literatura erótica do século 18, como a de Bocage; de outro, com a narrativa curta, explorando uma variação de pequenos contos na surpreendente parte final do livro.
O humor que a autora cria em cada uma dessas páginas é corrosivo e inquietante. Espalha sugestões de leitura que não se reduzem ao obsceno ou ao pornográfico. Num belíssimo ensaio de 1970, o crítico Anatol Rosenfeld já notava que Hilst se utilizava de todos os gêneros literários para compor sua prosa (a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa de ficção).
Característica que permanece em sua obra. É uma literatura, como ele dizia, que visa "a enunciar a totalidade do homem através de sua multiplicidade -e essa visão prismática ou caleidoscópica forçosamente teria que recorrer a todos os gêneros para exprimir-se na sua plenitude". E não só: é uma literatura que se enraíza em problemas brasileiros -como a pobreza, a desigualdade, a marginalidade, a falta de perspectiva etc.- de forma sutil e refinada.


Heitor Ferraz é poeta e jornalista, autor de "A Mesma Noite" e "Hoje como Ontem ao Meio-Dia" (ed. 7 Letras).


Cartas de um Sedutor
194 págs, R$ 25,00 de Hilda Hilst. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902, SP, tel. 0/ xx/11/3362-2000).



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