São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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Ponto de fuga

Um tom de cinza sujo

Jorge Coli
especial para a Folha

"Num cinema pornô, aposentados asmáticos/ Contemplavam, sem acreditar/ As carícias mal filmadas de dois casais lascivos;/ Não havia história./ Aí está, eu disse para mim mesmo, o rosto do amor,/ o autêntico rosto./ Alguns sedutores; seduzem sempre,/ e outros flutuam." Esse é um poema de Michel Houellebecq, que faz parte de seu livro "La Poursuite du Bonheur" [A Busca da Felicidade, ed. J'Ai Lu". Houellebecq é francês. O mais importante prêmio literário da França, o Goncourt, lhe foi negado. Houellebecq não é chique; sua escrita abomina a "boa" literatura, feita de estilo pretensamente elevado. Ele decerto nunca obterá o Nobel. Recusa todas as formas de venalidade sentimental, despreza o politicamente correto, não acredita na dignidade humana: ao contrário, escreve com desencanto e descrença sobre sua perda, sobre sua ocultação. Mas recebeu, no dia 17 de maio passado, um prêmio recentemente instituído na Irlanda, de 100 mil euros [cerca de R$ 250 mil": o International IMPAC Dublin Literary Award, que vem ganhando prestígio pela ousadia de suas escolhas. A esse reconhecimento se acrescentam as traduções em diversos países, incluindo o Brasil.
É um dos romancistas mais estimulantes de nosso tempo. Não que sua escrita exalte. Mostra-se antes acinzentada e neutra, próxima da linguagem oral, sem palavras escolhidas para o efeito. Mesmo em lugares ou situações exóticas, o cotidiano, tratado em modo hiper-realista, banaliza tudo, infiltrando-se na alma, pesando sem remédio sobre qualquer desejo de felicidade ou pretensão à grandeza.
Caldo - "Quanto mais uma religião se aproxima do monoteísmo, mais ela é desumana e cruel; e o islã é, de todas as religiões, aquela que impõe o monoteísmo mais radical." Um personagem do livro "Plataforma" [ed. Record], escrito por Houellebecq, se exprime assim. São páginas onde pulsa violenta raiva contra a intolerância. A fé num deus único, que forçosamente elimina a diversidade das crenças, é assinalada como cega e raivosa na sua essência exclusiva, fonte de ódios e guerras.
Essas idéias provocaram reações indignadas, que acusaram o autor de racismo. As atitudes de Houellebecq derivam de um tal desencanto diante da natureza humana, reduzida à lástima, que sua coerência encontra de fato sentido apenas na leitura inteira dos romances. Há neles pimenta provocadora que arde com frequência; há humor impiedoso contra o Ocidente; há descrições despudoradas de cenas sexuais, explícitas, merencórias, tão pouco eróticas, onde o autor busca um último refúgio para algum traço verdadeiramente sensível que possa existir em homens e mulheres. Mas há admiráveis digressões, onde o texto envereda pela cultura, pela literatura: assim, uma análise comparada entre Sherlock Holmes e Agatha Christie irrompe bem no meio de "Plataforma".
Com isso tudo, Houellebecq provoca paixões e ódios em seus leitores. Existe, na internet, um site dos amigos de Houellebecq e outro dos inimigos dos amigos de Houellebecq. Estes últimos acham que os primeiros não veneram o mestre da maneira correta...
Cabeça - Houellebecq escreve romances e poesias mas ensaios também. O livro "Interventions" reúne textos sobre a cultura, em que obsessões persistem: solidão, frustração como princípio constitutivo do universo contemporâneo, submetido à lógica liberal que o esteriliza. Há um outro livro, consagrado a Lovecraft ("H.P. Lovecraft contre le Monde, contre la Vie" [Lovecraft contra o Mundo, contra a Vida"), em que Houellebecq não atenua nem disfarça as intensas convicções racistas daquele escritor esplêndido. Ao contrário, funda o imaginário inquietante de Lovecraft nessa animosidade racial. Lovecraft, fraco, raté, suga energias em seus ódios para, com eles, fazer estupenda literatura.
Instrumentos - Flammarion publicou uma novela de Houellebecq, intitulada "Lanzarote", nome de uma ilha vulcânica perdida no meio do Atlântico. Passou férias ali; tirou fotografias, que foram editadas num álbum à parte. Elas são perturbadoras como imagens de outro planeta, cuja aridez é impiedosa.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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