São Paulo, domingo, 16 de julho de 2000


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+ brasil 501 d.C.

Milton Santos

Revelações do território globalizado


A geografia brasileira foi a primeira a se aperceber da relação entre a globalização e a necessidade de atribuir novos fundamentos filosóficos e epistemológicos, o que a estabelece como intérprete autorizada da realidade nacional


Hoje, em Florianópolis, instala-se o 12º Encontro Nacional de Geógrafos. O programa da reunião prevê a realização de intensos debates sobre o futuro da disciplina, na universidade e na sociedade brasileiras. Também está previsto o lançamento de um manifesto, por um grupo de geógrafos da Universidade de São Paulo, acerca do papel ativo da geografia, isto é, "a possibilidade de uma intervenção válida dos geógrafos no processo de transformação da sociedade e a sua relação com a maneira como a disciplina e o seu objeto são conceituados". A intenção dos seus autores é provocar uma discussão que se prolongue no tempo, alcance todas as escolas e instituições de pesquisas e influencie na reformulação dos currículos, alguns dos quais estão sabidamente inadequados. Em 1978, no encontro realizado na cidade de Fortaleza, um grande movimento lançou as bases de uma notável renovação da disciplina, ao mesmo tempo em que se buscava uma saída para o impasse com o qual a subordinação aos interesses do regime militar e a grande dependência do modelo quantitativista haviam limitado o desenvolvimento da geografia como um campo do saber social. Já agora é possível, sobretudo por intermédio das teses e dissertações defendidas nos diferentes programas de pós-graduação, mas também no exercício do ensino, verificar os progressos obtidos.

Una e bifurcada
É verdade que uma certa morosidade em nossa vida acadêmica, acarretando uma menor densidade no debate de problemas substantivos, tem o papel de frear o movimento renovador. Herdeira de uma tradição tenaz, a geografia continua querendo ser una, mas ainda se exerce mais frequentemente de forma bifurcada, mesmo se os exageros de uma certa sociologização barata ou de um ecologismo bisonho, utilizando caminhos fáceis, buscam, favorecidos pela moda, impor-se como modelo, ainda que cientificamente ineficaz. O saldo geral é, todavia, positivo, pois nesses vinte e poucos anos tanto a geografia chamada humana quanto a geografia chamada física instalaram-se definitivamente como ciência social. É possível que a disciplina da descrição e da explicação das relações entre a humanidade e o planeta esteja conhecendo, na passagem do século, o mesmo conjunto de circunstâncias favoráveis que, mais de cem anos atrás, iria justificar a emergência da psicologia. Todos, então, reconheciam a distinção substantiva entre o corpo e a mente, apesar da profunda imbricação entre os dois. Mas, no início, ia-se pouco além dessa constatação. Foram as novas circunstâncias históricas e o próprio desenvolvimento da vida interpessoal que impuseram uma visão menos simplista e mais autônoma do que viria a ser o objeto da nova disciplina, tornada fundamental para explicar, de forma menos empírica e aleatória, os sentimentos, as volições, os impulsos, a orientação do acontecer pessoal como dados importantes das ações dos homens, individualmente uns sobre os outros e sobre a sociedade como um todo. Agora, quando a constituição do território é um dado essencial na produção da história, nesta era da globalização, também não basta proclamar que o espaço geográfico existe como um dado inseparável do resto da vida social. Lugares e regiões tornam-se tão fundamentais para explicar a produção, o comércio, a política, que se tornou impossível deixar de reconhecer o seu papel na elaboração do destino dos países e do mundo. O espaço geográfico torna-se algo dotado de grande autonomia no processo histórico e é exatamente esse fato -essa maturidade histórica- que leva a uma reafirmação da geografia no rol dos saberes. Assim, não basta descrever como são o mundo, o país, os lugares e impõe-se ir mais longe, detalhar suas interinfluências recíprocas com a sociedade, seu papel essencial sobre a vida do indivíduo e do corpo social, tarefas que exigem uma revisão aprofundada dos fundamentos e dos métodos da geografia.

Barreiras metodológicas
A geografia brasileira foi, certamente, a primeira a se aperceber da relação entre essa grande mudança histórica -a globalização- e a necessidade profunda de atribuir novos fundamentos filosóficos e epistemológicos. Dessa forma é que, entre nós, nos dois últimos decênios, a disciplina, antes limitada às escolas e, às vezes, a certas áreas do governo, ganha ao mesmo tempo um público mais amplo que os seus limites disciplinares e obtém uma relevância política que a estabelece como intérprete autorizada da realidade nacional.
Foi, para isso, necessário ultrapassar algumas barreiras metodológicas mantidas durante praticamente todo o século nos países que, fundadores do campo de estudo, se constituíam até então nos principais exportadores das idéias mestras e da metodologia a utilizar.
Não é preciso dizer que esse processo é o mesmo que, apesar de bolsões persistentes de resistência, vai permitir a constituição de uma geografia brasileira autônoma no fim do século 20. Duas idéias-força são basilares na produção dessa evolução. De um modo geral, a geografia tanto quanto o direito internacional e a ciência política costumavam trabalhar com uma noção de território como se ele fosse uma forma vazia, uma espécie de receptáculo, mesmo ao considerar o papel da população e seus movimentos, da produção e suas etapas e da lei.
Cuida-se agora de reconhecer a inseparabilidade estrutural, funcional e processual entre sociedade e espaço geográfico, no presente como no passado e no futuro. Desse modo o território é visto como um palco, mas também como um figurante, sociedade e território sendo simultaneamente ator e objeto da ação. Só desse modo a geografia pode alcançar um enfoque totalizador que autorize uma intervenção política interessando à maior parte da população.
O território, tomado como um todo dinâmico, é, hoje, o principal revelador dos grandes problemas nacionais, já que ele permite uma visão não-fragmentada e unificada dos diversos processos sociais, econômicos e políticos. Por exemplo, governantes talvez bem-intencionados, mas simplistas, continuam batendo na tecla já gasta da guerra fiscal, quando a questão é estrutural e substantiva, ligada ao modelo de país que continuamos abraçando. Não é à toa que as grandes empresas (incluindo os bancos) governam mais a vida e o destino das pessoas e coletividades lá onde moram e trabalham do que mesmo os governos eleitoralmente constituídos. Mas, políticos e administradores de todos os partidos ainda crêem que, mudando as regras de um jogo equivocado, vão suprimir essa famosa "guerra fiscal", quando o verdadeiro problema é a crise da nação, mostrada pela estrutura e o funcionamento do território.


Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de, entre outros, "Por uma Outra Globalização" (Record) e "Pensando o Espaço do Homem" (Ed. Hucitec). Ele escreve regularmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.

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